Henrique Dória, o labirinto das referências

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov.com


Apresentação do livro Coração, solitário labirinto, de Henrique Dória. Grémio Lusitano, Porto, 17 de junho de 2022


“A poesia é a única religião ainda possível,
porque só ela pode penetrar no mistério”. Henrique Dória

O livro que hoje apresentamos, Coração, solitário labirinto, de Henrique Dória, reúne uma coleção de narrativas numa primeira parte; na segunda, pensamentos e  esboços de texto. A todo o conjunto podíamos dar o nome usual para este tipo de textos, o de micronarrativas.

Textos curtos, esboços e fragmentos, porquê?, é caso para perguntar. É fácil responder se olharmos para o quotidiano de Henrique Dória: ele tem posto ao serviço da sociedade um aparato de transmissão de arte e conhecimento que ultrapassa a sua capacidade de fazer sobreviver a sua própria criação, que é essencialmente a poesia, mesmo quando se veste de ficção. Rádio, vídeo, a revista virtual InComunidade, ocasionalmente publicada em papel, tudo isto rouba tempo aos seus próprios livros. Creio não cometer nenhuma inconfidência se disser que boa parte dos seus trabalhos de advogado são obra social propriamente dita, exercida pro bono.  Observando de perto o que ele vem fazendo na rubrica “Política impura”, fica clara a defesa dos três pilares do templo utópico, os quais, justamente por esse apelo à utopia, exigem trabalho individual e social contínuo: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Resumindo: a sua obra social, dedicada aos outros, em prol do nosso desenvolvimento intelectual, não deixa tempo a Henrique Dória para polir e multiplicar a parte individual da sua própria obra, a de criação literária.

Embora o título nos dê o coração como centro do livro, diria eu que o solitário labirinto diz mais respeito à cabeça, basta ver que ele se divide em duas partes bem nítidas; micronarrativas na primeira, e na segunda vemos reflexões sobre obras de arte, sobre textos de natureza filosófica, um esboço de arte poética, o que nos leva para as referências maiores do escritor neste livro: romancistas como os russos, poetas como Lautréamont e Dante, filósofos como  Nietzsche,  Cioran e Platão, músicos como Schubert e Beethoven, e pintores como Miguel Ângelo, Tintoretto e Ticiano. São referências na geografia do livro, a distinguir de autores favoritos, se bem que alguns o possam ser, como Dante, a quem Henrique Dória dedica um dos seus mais extensos fragmentos.

As referências são muito variadas. Em Coração, solitário labirinto, o autor recua à infância e juventude para recordar, na primeira pessoa, festas campesinas, aspetos da vida rural, algumas a rodarem em torno da igreja, figuras famosas do tempo, como o Barrigana, jogador do Futebol Clube do Porto, ou então, ainda na primeira pessoa, um caso de divórcio que passou pelo seu escritório de advogado. Realmente, as referências biográficas não dominam o livro quanto ao teor diegético, e julgo que ao menos um caso me passou sob os olhos, de narração numa primeira pessoa do género feminino, no texto “Lea”; este fator e outros afastam o livro da sua expressão biográfica mais direta; por tal se entenda biografia exterior, reconhecível na pessoa, tempo ou lugar, caso da história do baile no Ateneu. Mas é claro que uma obra de criação é sempre um espelho da alma, por isso o relato assume às vezes caráter oculto e difuso que, no limite, salta do realismo para outra dimensão literária bem oposta.

Neste ponto é bom alargar ao leitor a capacidade de referir, pois não é simples o estabelecimento de elos de relação entre dado elemento de um texto e algo exterior a ele. Tomo um exemplo que me chamou a atenção, o do texto “Palavras”, em que o narrador se vê a calcar palavras calçado com sapatos de verniz escarlate. Freud acharia no sonho matéria para um ensaio, porém no meu caso quero apenas definir alguns aspetos da referência. Vamos supor que ao escrever a frase “sapatos de verniz escarlate” Henrique Dória se referia unicamente à sua visão das palavras a escorregarem por ele abaixo e a serem esmagadas pelos pés assim calçados. Quando eu li, em primeiro lugar pensei em sangue, claro. Depois, pensei nos contos de fadas, o da menina que perde o sapatinho de cristal depois do baile, mas também pensei na Rita Redshoes, a cantora portuguesa. E porque é que a jovem escolheu o nome red shoes, sapatos vermelhos? Porque há um outro conto de fadas, assinado por Hans Christian Anderson, “Os sapatinhos vermelhos”, em que uma jovem usa os sapatos vermelhos e dança com eles. “Red shoes” é quase um símbolo de espetáculo musical. O conto “Os sapatinhos vermelhos” põe em cena uma jovem que até na igreja os usa, não pára de dançar com eles, por isso será castigada: os sapatos passam a controlá-la e a dança será permanente. Esta história tem sido usada em abundância em todo o mundo, em espetáculos e edições variados, daí que se conheça mais pelo título inglês do que pelo original dinamarquês. Enfim, para sintetizar, as referências constituem a rede de contextualização operada pelo leitor a partir de certo elemento. Face a um estímulo da leitura, os dados da nossa memória são postos em ação.