A IDEIA DE VIAGEM DE HOMERO A CAMÕES (3) Essa forte componente cristã da viagem de Perceval, na Demanda do Santo Graal, torna-a uma viagem interior de procura do conhecimento e amor de Deus, da virtude moral e do autoconhecimento. Tem uma relação com a anábase, o movimento ascendente para a contemplação dos mistérios celestiais que culminam na visão da Nova Jerusalém, revelada no livro do Apocalipse do Novo Testamento. A viagem e errância de Perceval apresenta pluralidade de modulações de iniciação ao divino. Neste sentido, é portadora de transformação espiritual, como as peregrinações a lugares santos, a mosteiros, ou a peregrinação interior do homo viator, na sua anábase, para a morada celestial. O topos do homo viator, está implícito nos romances de cavalaria e quanto a nós ausente ou disperso no ideal de cruzada em Orlando Furioso (1), é a expressão de uma via de anábase para o divino, implícita nos romances cavaleirescos, articula-se com a ideia de caminho do espírito humano, do corpo mortal para a vida eterna, figurada na Jerusalém Celeste; relaciona-se ainda com a ancestral procura de imortalidade por parte dos heróis épicos, desde Gilgamesh. É possível estabelecer uma articulação entre a questão da mortalidade e da imortalidade, presente nos poemas Gilgamesh, Odisseia e Eneida e o topos do homo viator, na Divina Comédia, em Os Lusíadas e na lírica de Camões. No poema épico Gilgamesh, o herói atravessa as águas da morte para consultar Uta-Napistim e alcançar a imortalidade (2.) A descida de Eneias aos Infernos proporciona-lhe a imortalidade. Também os heróis dos romances arturianos, sujeitando-se a provações e assumindo os riscos de uma certa forma de descida aos infernos, procuram a imortalidade. Dante, na sua própria viagem imaginária no Inferno, e do Inferno para o Purgatório e o Paraíso, mantém o seu corpo e o seu espírito no caminho para a imortalidade. Em contrapartida, a ideia de viagem na Odisseia está relacionada com a recusa da imortalidade, por parte de Ulisses, quer quando é entrevistado pelo rei Alcínuo, na ilha dos Feácios (3), quer quando lhe é prometida por Calipso, na ilha de Ogígia (4). Essa recusa de imortalidade prende-se com a renovação da vida, através da experiência vivificante das aventuras que convergem no seu retorno a Ítaca. No final do poema, fica em aberto que Ulisses, após ter regressado a Ítaca, pode voltar a partir, porque a ela voltará, ciclicamente renovado. A viagem de Ulisses é a aceitação dos limites da vida e da condição humana, nas suas vicissitudes, dramas, tristezas, ausências, lutas com o medo e a morte, recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os heróis da epopeia clássica, se assim o desejassem, por determinação de ninfas ou deuses. Na epopeia camoniana, a consciência da fugacidade e insegurança da vida (5) funciona como um desafio para a criação de “obras valerosas” que vão conferindo o estatuto de herói a quem as pratica “E aqueles que por obras valorosas / Se vão da lei da Morte libertando” (6). O estatuto de herói envolve a procura de imortalidade, não só da tradição greco-latina e iniciática antiga e medieval, mas também congeminada pelos valores da glória e imortalidade, conferidas a heróis e poetas, a partir de Dante e Petrarca. O canto épico, segundo Camões, é o “canto imortal”, por oposição à consciência da mortalidade do seu cantor que, por sua vez, será transcendida pela imortalidade da obra “Inspira imortal canto e voz divina / Neste peito mortal, que tanto te ama” (7). Em Os Lusíadas, Baco, no concílio dos deuses marinhos, chama a atenção dos deuses para o risco de a sua imortalidade vir a ser ofuscada pela imortalidade dos heróis navegantes que irão adquirindo um estatuto quase divino, uma vez que, como é anunciado desde a proposição, “se vão da lei da morte libertando”. Nos dois últimos cantos, na “ínsula divina” (8), deslocada por Vénus no Oceano, e nele por ela fixada, para acolher os nautas na viagem de regresso, a união física com as ninfas e a coroação dos heróis por elas, constitui uma marca inestimável de experiência de acesso à companhia dos imortais, embora se refira que essa companhia se realiza eternamente, na vida e morte dos nautas: Se prometem eterna companhia, No final de Os Lusíadas, o ascenso de Vasco da Gama ao monte supremo para, guiado por Tethys, contemplar a Máquina do Mundo, é um sinal de que a inteligência e o esforço heróico podem atingir níveis divinos, conotados com a procura de imortalidade e da visão directa do invisível que é Deus e está para além da Máquina do Mundo, vista em miniatura. A procura de Deus que “ninguém entende” (9) é um modo de fugir à mortalidade, de procurar a imortalidade ou o deus imortal. Na épica e na lírica camonianas, a fuga à mortalidade é realizada pelo processo da viagem interior, no rasto da viagem interior de Petrarca, profundamente enraizada no amor, na interioridade, e na procura do divino. É na Ilha do Amor, em parte conotada com a procura de imortalidade, que se acumulam inúmeras metáforas, numa alegoria complexa que constitui um eixo fulcral de leitura da epopeia e da lírica camonianas. Não se trata de um processo disfórico ou gerador de decepção, mas de um inesgotável reforço de valores humanos e divinos que convergem numa potencialidade visionária do futuro da humanidade. É ainda profética, no sentido de aspirar à união com a beleza do mundo, ao amor humano e divino, e convidar os leitores a uma mudança interior. A profecia pode ser um apelo à mudança interior do homem, depois de um longo caminho de experiência e de tomada de consciência. Este processo global da profecia, na Ilha do Amor, está ligado ao seu potencial visionário. Enquanto que, no poema Beowulf, o poder visionário se exprime na capacidade de esconjurar o mal, matando os monstros dos quais o dragão é vencido e vencedor, na proporção em que Beowulf o vence e por ele é vencido10; enquanto que, na Divina Comédia, a capacidade visionária de Dante se exprime esgotando a viagem como viagem, a alegoria da Ilha do Amor não esgota a viagem, mas abre caminho para uma nova visão do mundo e do futuro. Não é uma alegoria perfeita como a de Dante, mas uma alegoria aberta que sempre procura e sempre questiona o autor e o leitor. Metáfora do labirinto A alegoria de Dante, na Divina Comédia abarca todas as viagens interiores a catábase ou descida ao inferno intra-telúrico, a anábase para o Paraíso e para a visão directa de Deus, depois de ter atravessado o Purgatório , dando uma nova dimensão visionária ao tópico do homo viator; abarca ainda a viagem literária que atravessa todos os géneros e presta homenagem a todos os poetas e textos que o precederam, guiado por Virgílio; a viagem na história da humanidade e na história sua contemporânea; a viagem iniciática que sintetiza uma das vertentes positivas da metáfora da viagem labiríntica (11): a descida ao centro do inferno, ao encontro de Lúcifer; a subida ao centro do paraíso, em círculos concêntricos e simétricos de descida e ascenso, a qual permite a criação de um eixo, de dimensão vertical absoluta, no cimo da qual se encontra a luz suprema que lhe é dado contemplar com o seu próprio corpo. Um outro aspecto positivo das esferas celestes, da assunção dos valores pagãos e cristãos é a sua escuta da música celestial (12). A intensidade da música é crescente, acompanhada pelo canto e a voz de Beatriz, à medida que o corpo de Dante e o seu espírito vai percorrendo como uma seta os sete céus, até ao céu das estrelas fixas e finalmente o céu cristalino, girando ele próprio no décimo céu que é imaterial e pura luz, morada de Deus e dos eleitos; para além dele, mais nada existe. Os eleitos, bem-aventurados, santos e anjos brilham na luz da Rosa Branca cujo centro é Deus. Esta viagem de Dante, na Divina Comédia, contém os ingredientes da metáfora do labirinto como descida e ascenso em espiral, num eixo perfeito; é uma viagem perfeita e única na literatura mundial (13). Também se considera a descida aos Infernos de Ulisses e Eneias, as peregrinações dos cavaleiros medievais, o enfrentar de monstros por parte Ulisses, Eneias, Beowulf, a passagem de grutas e portões, pelos heróis épicos e pelos cavaleiros dos romances medievais, como conotadas com a viagem labiríntica de descida e subida, de acesso a uma libertação, a segredos recônditos, a um conhecimento superior. Em contraste com a magnanimidade e a densidade dos heróis e das viagens que temos vindo a analisar, as viagens que Ariosto imaginou, em Orlando Furioso, para além da referida descida ao Inferno intra-telúrico, realizam-se apenas sobrevoando mares e continentes, num cavalo alado, longe da vida, da história, da aceitação do Outro diferente, nos vários continentes. Orlando viaja com Olímpia, a filha do Conde da Holanda, para comprar a sua liberdade; Astolfo, filho do rei da Inglaterra viaja para o Oceano Índico e Formosa através do Golfo Pérsico até ao Cairo. Ruggiere tinha também viajado do Sul da França para o Japão através do Pacífico. A viagem ainda mais inesperada, em Orlando Furioso, está relacionada com a loucura de Orlando, a qual ocupa precisamente o centro do poema o canto XXIII (14). Orlando enlouquece por se ter apaixonado por Angélica, filha de um chefe africano não cristão. Vemos como a falta de aceitação do Outro, diferente pela raça, o continente e a religião é motivo de loucura do herói central do poema de Ariosto. Astolfo, depois de ter descido ao Inferno para impedir que as harpias de lá saíssem regularmente para atacarem o Preste João, voa para o lugar que Ariosto considera o Paraíso terreal, onde é saudado por João, autor do livro do Apocalipse, com a finalidade de resgatar a cristandade e Carlos Magno. Astolfo continua a ser guiado pelo evangelista João para o círculo da lua, numa visão antecipada e quase burlesca dos cosmonautas do século XX. Ao descerem na lua, descrevem tudo o que lá vêem e que corresponde ao que se perdeu na terra. É possível que a ideia do guia tenha sido aproveitada de Dante. O que é também inesperado, em Orlando Furioso, para a mundividência do leitor do século XVI, conhecedor da importância da procura da verdade, do conhecimento de novos espaços do planeta terra, é o facto de Ariosto, através das suas personagens, sobrevoar a terra para imaginar uma viagem até à lua, para nela encontrar o que se perdeu na terra e que não chegou a conhecer. É uma forma de fuga que ultrapassa os códigos e as conotações positivas possíveis da utopia, eliminando-as à partida. Ariosto imagina que Astolfo pode trazer da lua, e só da lua, remédio para que Orlando recupere a lucidez que perdera na terra. São fluidas as fronteiras entre loucura e lucidez por enveredarem ambas pela fuga. Trata-se do antídoto da metáfora do labirinto como viagem complexa e densa, quer subterrânea, quer subaquática, quer ascensional; o antídoto da plurissemia da viagem alegórica e simbólica, nas epopeias da Antiguidade, da Idade Média e do Renascimento, nos romances cavaleirescos medievais, por não ser conotável, em nosso entender, com um universo denso de significações, muito embora Orlando Furioso tenha marcado, pela sua construção e elaboração complexas a arquitectura da epopeia ocidental. De tudo o que expusemos até agora, deduz-se que é evidente a relação entre catábase e anábase com a metáfora do labirinto, a noção de monstro e de metamorfose, na literatura ocidental de que nos ocupamos, assim como na arte ocidental e na literatura de outras culturas (15). O estudo exclusivo da metáfora do labirinto, pela sua natureza simbólica e geométrica, parece-nos redutora, quer para Camões quer para a idiossincrasia da cultura de Quinhentos, aberta a novos espaços aquáticos, novos continentes e novos imaginários, a ela não se adequando, pois, uma hermenêutica exclusivamente simbólica. Na poesia de Camões encontramos pluralidade de metáforas e alegorias da viagem. Nela encontramos pluralidade de labirintos (16), como tomada de consciência e noção dos limites da existência humana. Essa profunda tomada de consciência ligada à arte poética, marcada pela nostalgia da epopeia, ecoa e continua, no século XX, na obra poética ímpar de Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner e Manuel Alegre (17). ____________ 1 Jean-Claude Margolin tem opinião contrária no que respeita à presença do homo viator em Orlando Furioso. Ver Jean-Claude Margolin, «Voyager à la Renaissance», in Voyager à la Renaissance, Actes du Colloque de Tours 1983, Paris, Editions Maisonneuve et Larose, 1987, p 936. 2 Ver Gilgamesh, he who saw everything, a verse translation of the epic of Gilgamesh by Robert Temple, London, Rider, 1991. 3 Ver Homero, Odisseia, VII, 133-232. 4 Odisseia, V, 148-227. 5 Ver Os Lusíadas, I, 106. 6 Os Lusíadas, I, 2, 5-6. 7 Os Lusíadas, III, 1, 3-4. 8 Os Lusíadas, IX, 21,3. 9 Os Lusíadas, X, 80,7. 10 Beowulf - a verse translation by Michael Alexander, Penguin Classics, 1973. 11 Lima de Freitas, O Labirinto, Lisboa, Arcádia, 1975. 12 Dante, La Divine Comédie, Le Paradis Paradiso. 13 Na metáfora do labirinto, é possível discernir o labirinto da arquitectura do Mundo, da construção de um labirinto musical que sucede a essa arquitectura do Mundo. Encontramos esta dualidade num ditirambo sobre o lamento de Ariadne a quem Dioniso, seu segundo marido, lhe diz “sois raisonnable, tu as de petites oreilles, tu as mes oreilles”. Pode interpretar-se como a construção de um labirinto musical que sucede ao labirinto da arquitectura do Mundo, no qual o companheiro de Ariadne era não Dioniso, mas Teseu, segundo a tradição grega. 14 Ariosto, Orlando Furioso, Canto XXII. 15 Ver Lima de Freitas, O Labirinto, Lisboa, Arcádia, 1975. 16 Ver o conjunto de artigos sobre Camões de Vítor Aguiar e Silva que o autor reuniu num volume a que deu o título de Camões, Labirintos e Fascínios, Lisboa, Edições Cotovia, 2ª edição, 1999. 17 Ver Fernando Pessoa, Obra Poética, Rio de Janeiro, Aguilar, s/d; Sophia Mello Breyner, Obra Poética, I, II, III, Lisboa, Caminho, 1990-1; Manuel Alegre, Obra Poética, Lisboa, Dom Quixote, 1999. Ver o prefácio de Eduardo Lourenço da mesma obra de Manuel Alegre e ver o prefácio de Aguiar e Silva in Manuel Alegre, Senhora das Tempestades, Lisboa, Dom Quixote, 1998.
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