A BORDO DO FIORE Dasy deixava sobressair a sua silhueta de carcaça de bailarina viajante a todos o que poderiam sonhar que ela estivera em palco, algumas décadas atrás. Só ela é que conhecia todos os bailarinos e todos os coreógrafos mundiais e sobretudo só ela é que sabia tudo e tinha sempre razão. Os pais de Dasy tinham emigrado do Sul de Itália para a Alemanha onde conseguiram tornar-se negociantes em cinco anos e acrescentar uma fortuna em marcos à que já possuíam em liras. Era o estatuto da moeda e do saber narcísico em excesso que moldavam o comportamento de Dasy. Conseguia que todos se comportassem como ela determinava. Quem queria ser inteligente, cultivar a estupidez ou ficar sem colesterol podia recorrer às suas artes. Todos os que gostavam de a imitar sentiam-se confortados. Conseguia que os incautos se instalassem no estatuto da proa hirta e ondulante que infalivelmente domina os fracos. Sabia de cor como angariar amizades consoante as suas conveniências. Quando uma pessoa já tinha esgotado todos os modos de a ajudar, porque ela mudava com frequência de país e precisava sempre de ajuda, Dasy afastava-se para ir conquistar outros que lhe servissem para a próxima etapa. Todavia o seu inegável amor à beleza e o cumprimento semanal das festas de caridade temperavam o vazio dos seus passeios solitários e o tédio da sua permanência em cruzeiros. No convés do Fiore, Dina e Dasy combinavam encontros próximos que as demarcasse do espaço saturado dos paquetes. - Sabes, Dina, ainda tenho esperança de voltar a encontrar uma antiga aluna que me ajude a encontrar uma sala com espelhos quando eu me fixar num país que vou escolher e onde já tenha trabalhado. Tenho de tomar uma decisão. Não posso ser viajante de cruzeiros toda a vida. - Compreendo, Dasy, mas não vai ser fácil. Tens alguma preferência? - Gosto de todos os países e todas as culturas, mas estou mais à vontade nos países menos evoluídos. - Por quê, Dasy? - Porque não gasto tanto tempo a cozinhar o meu charme. - Então procuras um país onde tenhas menos trabalho para conseguires quem te ajude? - Penso que sim. Já viajei muito e sei como é arriscado estar a mudar tantas vezes de país. No fundo, não tenho verdadeiras raízes. - Então por que não regressas à tua terra natal, Dasy? A tua família veio da Normandia para a Sicília e até tens um nome inglês. Não podias ser mais internacional. Depois os teus pais emigraram para a Alemanha. - Por isso mesmo, sinto que quase não tenho raízes. E à medida que a vida vai avançando, sinto que não gostaria de morrer longe do meu país. Todas as noites me lembro de Palermo e faço muito esforço para não chorar. E Dasy continuou a hesitar, sem saber que país escolher. O comandante do Fiore também hesitava entre ir para Malta ou Tenerife. Dina persistia na sua ginástica de anti-memória. Arrepiava-se de frio outonal quando se lembrava que o seu avô tinha sido pescador. O excesso de mimo e de protecção criaram-lhe uma visceral alergia ao gingerale, não sabia que companheiro escolher e foi mudando de filosofia como quem muda de camisa. Quando alcançava um objectivo, nele enraizava a dúvida pouco metódica, numa encruzilhada de carreiros de formigas cujas direcções não conseguia controlar. A bordo do Fiore, instalava-se o tédio e o pânico. O comandante pedia uma reunião com os passageiros para ver se mantinham ou não a rota prevista. Marcos, liras e francos rolavam nas mesas, estantes e bancos dos escritórios próximos do convés, além dos que estavam registados em milhares de cheques. Eram tantos os rios de dinheiro que o Fiore poderia aportar onde os passageiros, por maioria ou unanimidade decidissem, desde que não houvesse colisão com o tráfego marítimo previsto para aquele estio quase eterno. E todos ficavam parados e perplexos sem saber que rota lhes seria mais conveniente. - Por favor, já não é a primeira vez que os senhores passageiros hesitam em manter a rota. O que se passa outra vez no nosso paquete? - interrogava o comandante. - Vamos todos pensar, dizia Dasy, já a meio caminho da sua escolha do país para o fim da vida - Eu não queria passar perto do Algarve, murmurava Dina. Ai que arrepio no peito, que frio que não suporto. Como é possível, nesta tarde tão quente? Dina não queria pensar em Lagos nem passar pela costa do Algarve. Era o berço onde o avô consertava as suas redes nos fins de dia, para se entregar de noite à rota certa da pesca e do pão. O comandante aceitou a proposta de Dina e seguiu para Guadalupe, como estava previsto, depois de ter ouvido todos os passageiros com a maior paciência. Todos se atarefavam para enfrentar as piscinas e as praias para onde viajaram vezes sem fim, ao sabor do tempo. |