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Helena Langrouva
A ARTE, A VIDA E OS GRANDES DE ESPÍRITO
Alciati Emblematum Liber.
Segunda colecção, 1546.
Emblema 71: folio 35v
Emblema 69: folio 38v
 

Falta quem procure dar e quem dê vida à estátua que fabrica, como o escultor Pigmalião que - no mito clássico e ovidiano, narrado por Orfeu (Ovídio, Metamorfoses, X) - procurou que Vénus animasse a sua estátua. Segundo o mito de Pigmalião, o que pode transformar tudo é o amor e não a arte. Falta quem acredite que é o amor, a fraternidade, a beleza, o contínuo movimento do espírito que dão vida à estátua. Falta quem compreenda que a estátua mais funda é a estátua interior que cada um vai construindo, libertando-se da bipolaridade entre o ser e o dever-ser que desde o Sonho de Cipião de Cícero (De Republica, VI, 15-16) ao discurso de todo o poema Os Lusíadas de Luís de Camões, às bipolaridades infindáveis do pensamento e da vida do Homem moderno e contemporâneo, tanto têm preocupado os que procuram a dimensão mais funda - a do espírito - do Homem, na sua travessia do corpo, do tempo, da caducidade. Falta sobretudo quem atravesse a vaga da vida sem perder o fascínio da aventura e da intrepidez. São cada vez mais raros os que procuram a beleza temperada pela lucidez, os desafios, a consciência dos limites, a fibra da vida. E a vida é cada vez mais forte e frágil quando nos apercebemos da sua efemeridade, da sua impotência perante as catástrofes que em segundos podem destruí-la. A vida do espírito é a fibra da esperança que não pode morrer para além desta passagem da caducidade para a eternidade.

É essa fibra da vida que falta nas esferas da cultura a metro, da cultura como refúgio de um vazio visceral que submerge jovens, mulheres e homens que imitam percursos de quem ousou enfrentar a vida e ser. Os raros que, sem o saberem, são grandes almas, grandes de espírito - mahatmas, na expressão hindú -, que cultivam profundas forças de espírito e de ser, aqueles que se expuseram a perder carreiras de prestígio ou de fachada - por não recorrerem a estratégias de sedução nem manipulação de outrem - por vezes não tiveram tempo para concretizar cedo na sua vida uma obra visível de arte literária, musical, plástica ou outra, são os que são imitados.

As pessoas vazias ou inteligentes não cessam de tentar imitar percursos mais fundos dos mahatmas, para ascenderem ao prestígio e ao estatuto do poder, do grande artista, do grande escritor, do ser narcísico e fascinante que todos subjuga pelo seu modo de escrever ou de criar, pela sua personagem autoral de simpatia e sedução, ou de qualquer outra figura de proa, recorrendo a subtis estratégias de sedução para atrair a atenção de outrem, não raro para se afirmar, escapar a desgostos pessoais e/ou por inúmeras outras razões.

Os humanistas e Camões (Os Lusíadas, IX, 25-27) chamavam filáucia a essa excessiva concentração sobre o ego, esse excessivo amor de si próprio, o egoismo, o narcisismo excessivo. No emblema 69 de Alciato (primeira metade do século XVI), uma figura que se mira excessivamente na água inclina a sua cabeça até quase atingir as águas correntes, concentrando-se no reflexo da sua imagem, esquecendo-se de tudo o que a rodeia. O texto latino do emblema é dirigido em parte a Narciso - “Narcisse” - e a palavra philautia está entre parêntesis rectos quer no texto quer no título do emblema. Donde se deduz que a figura ilustra o tema e será uma das inúmeras representações de Narciso com a conotação de apego à imagem do seu reflexo sobre as águas e do excesso de amor de si próprio – philautia significa em grego o amor de si próprio.

Alciati Emblematum liber
Emblema LXIX
[Philautia]

Quod nimium tua forma tibi, Narcisse, placebat,
  In florem, et noti est versa stuporis olus.
Ingenii est marcor, cladesque [philautia], doctos
  Quae pessum plures datque, deditque viros:
Qui veterum abiecta methodo, nova dogmata quaerunt,
  Nilque suas praeter tradere phantasias.

A “filáucia” é a excessiva concentração sobre o pequeno ego, o que está na base da rivalidade insana e da inveja que tudo entrava, o contrário do verdadeiro amor como sentimento profundo, fraterno, solidário, com abertura para o Outro e a comunidade. Os seres excessivamente narcísicos só pensam em si, inventam estratégias de sedução da comunidade para que ela se concentre sobre eles. E assim vão proliferando cortejos de admiradores de seres que cultivam a “filáucia” em vários planos da arte e da vida, deixando proliferar o egoismo em inúmeras áreas artísticas, sociais e da vida humana, sob aparências não raro muito subtis, sendo muitas vezes dificílimo distinguir o trigo do joio, ou seja, é dificílimo aprender a discernir.

A auto-insegurança inteligente consiste em imitar os grandes de espírito como suporte interior, criando uma obra sedutora, ou construindo uma fachada de personagem que seja convincente e calculada, mesmo com a aparência de autenticidade, ou inventando qualquer outro modo de manipular os destinatários.

Os grandes de espírito apenas abrem caminhos, não manipulam nem exibem a confusão da mistura de autenticidades com obsessões pessoais. Os miméticos vazios e/ou inteligentes constroem a sua vida sobre a rivalidade insana ou a inveja implícitas, procuram autocompensar-se pela imitação dos grandes e não raro tentam ignorar ou eliminar a relação com os únicos ou poucos mahatmas que encontraram na vida.

Os grandes de espírito que ficarão inscritos do tempo para a eternidade construíram ao longo da sua vida uma visão do mundo, com pilares e cúpulas de sabedoria, de arte temperada pela cultura vivenciada ou interiorizada, pela amizade, a procura de paz, de luz, de serenidade, no meio de todos os desastres da vida; não calcularam estratégias de sedução, na sua infindável procura de neutralizar forças negativas que os puderam invadir como a cada ser humano. Procuraram toda a vida distinguir o trigo do joio, cultivar uma verdadeira capacidade de amar que ainda hoje não se pode reduzir a palavras, mas pode ser a procura da palavra exacta, a exactidão dos actos que sejam libertadores, criadores e regeneradores de vida entre os seres humanos, e por que não, entre os seres vivos.

A excessiva concentração no pequeno ego, disfarçado por vezes na procura de uma identidade pessoal, com argumentos válidos como o desejo de comunicar essa mesma procura, ou a esperança de ajudar outros, o culto excessivo do ego e do dinheiro abafam o movimento interior de elevação do espírito. As obsessões pessoais como argumento de autenticidades não raro desprovidas de pudor constituem excelentes estratégias de manipulação e de sedução de leitores, dos destinatários de obras de arte.

Há que tomar consciência de toda a cadeia de subjugados à arte, à literatura que acaba por ser kitsch – expressão alemã para exprimir a predominância do que é falso e manipulador na arte - porque o leitor, ouvinte ou espectador se funde, sem sequer dar por isso, com a obra, como nas relações humanas que não permitem o crescimento e a independência de pessoas que permanecem em relações fusionais umas com as outras, estão como que coladas umas às outras. É possível ter uma relação empática e sintonizante com uma obra de arte (1) sem cair no desastre da relação fusional que em todas as áreas é atrofiante. Há que encontrar sempre novos modos de expressão artística ou literária que permitam dar liberdade de viver, de meditar, de respirar, de deixar respirar a obra e quem a recebe, de fazer pausas e criar um saudável distanciamento entre a obra e os seus receptores ou destinatários, mesmo no processo de adesão ao que se lê, ao que se ouve ou vê.

Há também que procurar novos modos de estar atento a quem se admira, sem antecipação mimética, sem a imitação antecipada de projectos de outrem que se admira, pois pode ter por detrás o mecanismo da rivalidade insana, com o objectivo de apagar, eliminar relações ou tentar esquecer quem se admira e com quem muito se aprende ou aprendeu. Pode tratar-se não raro do mecanismo violento e agressivo da inveja que tanto preocupou os humanistas cívicos europeus do século XV e XVI, os poetas clássicos como Ovídio – este último com os versos exactos (Metamorfoses, II, 768-770) que inspiraram o emblema 71 de Alciato (2):

Alciati Emblematum liber
Emblema LXXI
Invidia
Squallida vipereas manducans foemina carnes,
  Cuique dolent oculi, quaeque suum cor edit,
Quam macies et pallor habent, spinosaque gestat
  Tela manu: talis pingitur Invidia.

Pode tratar-se da “pura inveja”, na expressão de Camões (Carta I) ou de “inveja ardente”, na expressão de Sophia de Mello Breyner, no seu poema “Camões e a tença” (Obra Poética III, p. 162)(3).

Há que repensar muito sobre o facto de sermos todos destinatários da arte, da passagem da vida, para não nos deixarmos levar sem nos apercebermos pelas estratégias de sedução que a todos os títulos dominam, não são libertadoras, não deixam respirar eventualmente qualquer um de nós. O destinatário crítico tem de saber distanciar-se, estar muito atento na sua procura de separar o trigo do joio. Em tudo há que distinguir os limites, em particular os limites da arte e da vida.

A arte pode transformar o artista e os seus destinatários. O artista pode exprimir elos profundos com a beleza, os seus afectos com o invisível que tem dentro de si como força de vida e de luz. A autora destas linhas já tem tido experiências aproximáveis destas palavras. Segundo o mito de Pigmalião é o amor que dá vida à estátua e se sobrepõe à arte que é geradora apenas de beleza.

Há também que procurar uma nova maneira de compreender, saber distinguir, aceitar e imitar os que são verdadeiramente grandes de espírito e nos abrem caminhos na arte, na vida e no espírito
 
Notas

(1) Vide Helena C. Langrouva, “Mar-Poesia: Poética do espaço e da viagem”, De Homero a Sophia. Viagens e Poéticas, Coimbra, 2004, Angelus Novus, publicação patrocinada pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, Ministério da Cultura, pp.173-213; “Artes Poéticas, aedos e espaço-cidade na obra de Sophia de Mello Breyner”, op. cit. , pp. 153-172. Estes ensaios demonstram, entre outras vertentes, que o leitor de Sophia pode fazer uma leitura crítica, no sentido de quem procura discernir e aprofundar a poesia de Sophia muito embora manifeste também a sua sintonia com a poesia e o pensamento poético de Sophia.

(2) Vide Helena C. Langrouva, “As Cartas de Camões - da viagem ao pensamento”, versão integrada em Humanismo para o nosso Tempo - Homenagem a Luís de Sousa Rebelo, Lisboa, 2004, edição organizada por A A Nascimento, H.C. Langrouva, J.V. de Pina Martins e T.F. Earle, patrocinada pela Fundação Calouste Gulbenkian (distribuída e comercializada pela APPACDM, Braga). Neste ensaio está reproduzida uma pintura alegórica: “Alegoria da Justiça” do Museu – Palais des Beaux Arts de Lille, de um pintor anónimo da 2ª metade do século XVI: Abaixo do trono da Justiça e aos pés de um Homem Sábio e Bondoso que empunha a estatueta da Verdade – com a inscrição VERITAS - perante a Justiça, a representação da inveja – com a inscrição INVIDIA -, por terra, com olhar terrível e agressivo, com víboras na cabeça (os seus pensamentos venenosos), o chicote ou troncos espinhosos na mão (é agressiva e torna a vida dos outros difícil), a morder o seu próprio coração (perde a capacidade de amar por estar excessivamente concentrada no seu ego). Esta representação da Invidia foi inspirada nos versos de Ovídio, Metamorfoses, II, 768-770 e na imagem do acima reproduzido emblema 71 de Alciato.

(3) Lisboa, 1991, Editorial Caminho.