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Helena Langrouva
ITINERÁRIO POÉTICO DE LIBERTO CRUZ
(Sintra, 1935)
NÉVOA OU SINTAXE

No ano seguinte (1959) publica Névoa ou Sintaxe. O segundo poema deste livro introduz-nos num universo de quem procura a paz interior, a aventura da vida, “ na secreta angústia, serena..”

Na paz súbita do canto

Me surpreendo

Em manso aviso

E, insone, embarco

Na jangada incerta.

 

Não isentas, as veias sabem

E em silêncio depõem,

De coragem, rios.

E a calma é tão fecunda

Que adolescente, parto.

 

Na secreta angústia,

Serena, a memória me confina

E válido, num grito me anuncio.

( Na paz súbita do canto”, p. 11)

Antes deste poema, a dedicatória prolongada à sua amada e antes do corpo principal deste livro, “Poema maldito: as exclamações, interrogações e algumas afirmações sobre a incompreensibilidade da guerra, da violência encadeada que não se sabe onde começa nem onde acaba.

Nos primeiros dois pequenos ciclos de poemas deste livro – “Dádiva”, “Estela de Três Pontas” - predomina a sua deslumbrada e enraizada relação com o feminino matricial, na relação com a sua mãe que se funde na relação com a terra-mãe, não nomeada mas aludida. A poesia de Liberto Cruz é da poesia ao longo de cujo percurso mais encontrei a expressão de felicidade, de ligação afectiva ao feminino, a um ser humano, a sua mãe, a sua mulher, a um espaço físico de origem. Para além desse espaço, a consciência do vazio, da ignorância, da infância infeliz das crianças que brincam aos mortos, a ausência de voz, a sensação de se estar parado, inerte, bloqueado, no quotidiano dos anos 50:

Onde está nossa prenhe e sibilante voz?

……………………………

Que infância é esta,

onde brincamos aos mortos

e aprendemos de cor

as formas legais da contingência?

Que brisa venal, que velada voz

Nos empurra para o abismo da inércia?

…………………………………..

(poema 2 de “Estela de Três Pontas”, p.26)

É notória a procura de vida, do sabor da vida, - pelo recurso a frequentes metáforas da “seiva”, “vinho”, “húmus”, “semente”-, a festa da vida e do vinho (poema “Brinde a Baco”, p.32), à procura do divino e do amor divino fundido na relação amorosa, a consciência da inevitabilidade da morte, a procura de libertação do opressivo, a procura de renovação e de esperança.

Neste sentido, poderíamos dizer que a melancolia que também neste livro se anuncia não é fruto de uma infelicidade de ausência de amor matricial, mas a da consciência da vida opressiva que se vive, a consciência da brevidade e da caducidade da vida, da inevitabilidade da morte, que Liberto Cruz começa a exprimir na sua poesia, desde muito jovem.

Nos “Três poemas de Lamentação” que se seguem, neste livro, surpreende-nos não só a expressão da consciência da imobilidade, da frustração e da violência da comunidade, mas também a certeza de que os anjos, como metáfora do espírito criador e do sopro de vida não regressam e se vive na ignorância e na ausência de liberdade:

Estamos sós e calmos,

Embrulhados de vento entre salgueiros.

 

E como são mansos todos os dias,

Tão beatos de ignorância,

Tão estrangeiros de liberdade!

(“Três poemas de Lamentação”, p. 39)

Nesse ambiente de recusa de sopro de espírito e de impregnação de violência - “ o necessário vento recusado” em que “os dedos sabem o sangue” (p.42), de deserto sem água nem uma árvore – “.. existe um lago e nos deram acácias/ e constantes nos perdemos no saibro/ sem um fluído, sem uma árvore” (p.42, ibidem), a esperança de que a poesia possa vivificar a alma do poeta, cuja palavra se anuncia como “química poética dos sons”:

Este é um dos livros de Liberto Cruz que privilegia a tomada de consciência da infelicidade, do sufoco da voz e da liberdade, do impedimento e da petrificação, da crucificação e do sofrimento inútil metaforizado na alusão à crucifixão do Senhor. Este é o livro que apesar de incluir um “Novo poema de esperança” (p.51):

Com o sangue e os óleos que nos separam

Exacta, de novo voltas em lentos passos

termina com “Poema contra a cidade”(p.54) , como metáfora do mundo ou do país em que a vida não tem força nem sentido – “são inúteis todos os rios de resina/ todas as amoras maduras,/ que pisámos bravos,/ no intervalo das estações” - e os seres humanos não podem exprimir-se, não podem terminar seus gestos - lembrando-nos a palavra de Sophia de Mello Breyner “o gesto criador é impedido”:

Aqui na cidade nossos dedos não acabam gestos

E a incauta presença nos suga

O esforçado mel de todos os dias

É um livro que também exprime interrogações sobre a vida, porque nela ainda encontra pouca clareza, porque tem consciência de uma certa obnubilação não do seu olhar mas da “névoa” como metáfora do que não é claro, do que impede a visão e a nitidez na vida. A “sintaxe” será a metáfora da procura de uma certa lógica interna, ou a expressão, pelo reverso, da consciência do que Camões chamava a “desrazão”, a falta de sentido, na vida; será a procura de clareza na palavra poética, no interior do próprio sujeito lírico e sobretudo na vida da comunidade que parece desfeita.

Exprime ainda o amor que procura, vive, reconhece e em que deseja perseverar, que irá desenvolver no livro seguinte - Itinerário. Este livro termina dizendo que, na cidade, como metáfora deste mundo ou deste país, nos anos 50, não há espaço para o amor:

Mas a amada perde-se em florestas de ar puro

E meus dedos não acabam gestos,

Não conseguem a calma da sua presença

(p.54)

Helena Langrouva é licenciada em Filologia Clássica (Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa), Maître ès Lettres Modernes – Cinéma (Montpellier III- Université Paul Valéry), pós-graduada – DEA ( Universidade de Paris III- La Sorbonne Nouvelle), Master of Arts e Master of Philosophy (Universidade de Londres – King’s College) – e doutorada (Universidade Nova de Lisboa) em Estudos Portugueses. Foi Leitora de Língua e Cultura Portuguesas nas Universidades de Montpellier e Rouen, ensinou Literatura Portuguesa Clássica, Teoria da Literatura, Introdução aos Estudos Literários e Francês, no ensino superior, em Portugal, com passagem pelo ensino secundário onde leccionou Grego, Latim e Português. Equiparada a bolseira pelo Ministério da Educação e Cultura, foi bolseira da Fundação Oriente e da Fundação Calouste Gulbenkian, tendo investigado em bibliotecas e museus europeus. Escritora, investigadora interdisciplinar, nas áreas da cultura clássica, renascentista e do século XX, tem-se dedicado em especial ao estudo de Literatura e Arte dos séculos XV e XVI.

É autora de A Viagem na Poesia de Camões, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian- FCT, 2006; Actualidade d’Os Lusíadas, Lisboa, Roma Editora - apoio FCT, 2006; De Homero a Sophia. Viagens e Poéticas, Coimbra, Angelus Novus – patrocínio IPLB-, 2004; Arpejos de uma Viandante/ Arpèges, Lisboa, 2003. Co-editou, com Aires A. Nascimento, José V. De Pina Martins e Thomas Earle, Humanismo para o nosso tempo. Homenagem a Luís de Sousa Rebelo, Lisboa, edição patrocinada pela Fundação Calouste Gulbenkian e comercializada pela APPACDM, Braga.

Publicou ensaios nas revistas Brotéria, Critério e O Tempo e o Modo (Lisboa), Traduziu e seleccionou Lanza del Vasto, Não-Violência e Civilização- Antologia, Lisboa, Edições Brotéria, 1978 e traduziu ainda Jean Joubert, O Homem de Areia (romance), Lisboa, Difel, 1991.

Estudou Artes Musicais – Canto Gregoriano e Canto Clássico - Artes Plásticas – Desenho e Pintura- e Iconografia. Tem ainda cultivado o canto ao longo da sua vida, fez exposições individuais de Pintura em Sintra, Lisboa e Évora e dedica-se em particular à pintura de ícones.

É membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Associação Portuguesa de Críticos Literários, da Sociedade Portuguesa de Autores, da Associação Internacional de Lusitanistas.

Contacto:

musas@netcabo.pt