No ano seguinte (1959) publica Névoa ou Sintaxe. O segundo poema deste livro introduz-nos num universo de quem procura a paz interior, a aventura da vida, “ na secreta angústia, serena..”
Na paz súbita do canto
Me surpreendo
Em manso aviso
E, insone, embarco
Na jangada incerta.
Não isentas, as veias sabem
E em silêncio depõem,
De coragem, rios.
E a calma é tão fecunda
Que adolescente, parto.
Na secreta angústia,
Serena, a memória me confina
E válido, num grito me anuncio.
(“ Na paz súbita do canto”, p. 11)
Antes deste poema, a dedicatória prolongada à sua amada e antes do corpo principal deste livro, “Poema maldito”: as exclamações, interrogações e algumas afirmações sobre a incompreensibilidade da guerra, da violência encadeada que não se sabe onde começa nem onde acaba.
Nos primeiros dois pequenos ciclos de poemas deste livro – “Dádiva”, “Estela de Três Pontas” - predomina a sua deslumbrada e enraizada relação com o feminino matricial, na relação com a sua mãe que se funde na relação com a terra-mãe, não nomeada mas aludida. A poesia de Liberto Cruz é da poesia ao longo de cujo percurso mais encontrei a expressão de felicidade, de ligação afectiva ao feminino, a um ser humano, a sua mãe, a sua mulher, a um espaço físico de origem. Para além desse espaço, a consciência do vazio, da ignorância, da infância infeliz das crianças que brincam aos mortos, a ausência de voz, a sensação de se estar parado, inerte, bloqueado, no quotidiano dos anos 50:
Onde está nossa prenhe e sibilante voz?
……………………………
Que infância é esta,
onde brincamos aos mortos
e aprendemos de cor
as formas legais da contingência?
Que brisa venal, que velada voz
Nos empurra para o abismo da inércia?
…………………………………..
(poema 2 de “Estela de Três Pontas”, p.26)
É notória a procura de vida, do sabor da vida, - pelo recurso a frequentes metáforas da “seiva”, “vinho”, “húmus”, “semente”-, a festa da vida e do vinho (poema “Brinde a Baco”, p.32), à procura do divino e do amor divino fundido na relação amorosa, a consciência da inevitabilidade da morte, a procura de libertação do opressivo, a procura de renovação e de esperança.
Neste sentido, poderíamos dizer que a melancolia que também neste livro se anuncia não é fruto de uma infelicidade de ausência de amor matricial, mas a da consciência da vida opressiva que se vive, a consciência da brevidade e da caducidade da vida, da inevitabilidade da morte, que Liberto Cruz começa a exprimir na sua poesia, desde muito jovem.
Nos “Três poemas de Lamentação” que se seguem, neste livro, surpreende-nos não só a expressão da consciência da imobilidade, da frustração e da violência da comunidade, mas também a certeza de que os anjos, como metáfora do espírito criador e do sopro de vida não regressam e se vive na ignorância e na ausência de liberdade:
Estamos sós e calmos,
Embrulhados de vento entre salgueiros.
E como são mansos todos os dias,
Tão beatos de ignorância,
Tão estrangeiros de liberdade!
(“Três poemas de Lamentação”, p. 39)
Nesse ambiente de recusa de sopro de espírito e de impregnação de violência - “ o necessário vento recusado” em que “os dedos sabem o sangue” (p.42), de deserto sem água nem uma árvore – “.. existe um lago e nos deram acácias/ e constantes nos perdemos no saibro/ sem um fluído, sem uma árvore” (p.42, ibidem), a esperança de que a poesia possa vivificar a alma do poeta, cuja palavra se anuncia como “química poética dos sons”:
Este é um dos livros de Liberto Cruz que privilegia a tomada de consciência da infelicidade, do sufoco da voz e da liberdade, do impedimento e da petrificação, da crucificação e do sofrimento inútil metaforizado na alusão à crucifixão do Senhor. Este é o livro que apesar de incluir um “Novo poema de esperança” (p.51):
Com o sangue e os óleos que nos separam
Exacta, de novo voltas em lentos passos
termina com “Poema contra a cidade”(p.54) , como metáfora do mundo ou do país em que a vida não tem força nem sentido – “são inúteis todos os rios de resina/ todas as amoras maduras,/ que pisámos bravos,/ no intervalo das estações” - e os seres humanos não podem exprimir-se, não podem terminar seus gestos - lembrando-nos a palavra de Sophia de Mello Breyner “o gesto criador é impedido”:
Aqui na cidade nossos dedos não acabam gestos
E a incauta presença nos suga
O esforçado mel de todos os dias
É um livro que também exprime interrogações sobre a vida, porque nela ainda encontra pouca clareza, porque tem consciência de uma certa obnubilação não do seu olhar mas da “névoa” como metáfora do que não é claro, do que impede a visão e a nitidez na vida. A “sintaxe” será a metáfora da procura de uma certa lógica interna, ou a expressão, pelo reverso, da consciência do que Camões chamava a “desrazão”, a falta de sentido, na vida; será a procura de clareza na palavra poética, no interior do próprio sujeito lírico e sobretudo na vida da comunidade que parece desfeita.
Exprime ainda o amor que procura, vive, reconhece e em que deseja perseverar, que irá desenvolver no livro seguinte - Itinerário. Este livro termina dizendo que, na cidade, como metáfora deste mundo ou deste país, nos anos 50, não há espaço para o amor:
Mas a amada perde-se em florestas de ar puro
E meus dedos não acabam gestos,
Não conseguem a calma da sua presença
(p.54)