Escrito entre 1959-60 e publicado em 1962, Itineráriotem a ver com a expressão da energia fulcral do feminino com quem comunga o amor que irá desejando. É visível que esse feminino matricial da sua mãe e da sua terra – Sintra- modelou a sua capacidade de se relacionar e de se exprimir na procura de felicidade com a presença da sua amada. O livro chama-se Itinerário porque é dedicado a sua filha Alexandra acabada de nascer, como que formulando um voto para que ela viesse também a percorrer um itinerário na sua vida.
Dividido em três poemas fragmentados: “O Rio”, “Dádiva” e “Viagem exacta”, continua a tomada de consciência sobre a precariedade e o enigma da vida, a procura e a experiência de dádiva do amor que o possa transcender. Neles perpassa a metáfora do rio enigmático e enérgico de vida que nos percorre cuja origem e sentido desconhecemos, cujos barcos desconhecemos, cujas palavras não nos bastam porque vivemos de excessos numa existência incerta e precária:
Somos um rio de palavras
Que não nos bastam
Porque exagerada é a água
Em que navegamos
E incerto e vário
É todo o barro
Em que vivemos
(p.15)
É a dádiva, a certeza e a solidez do amor, no poema “Dádiva”, dedicado a sua mulher, que faz brotar o sujeito lírico do rio de incertezas da vida, para a procura da “Viagem exacta”, metáfora da esperança de um novo caminho, aberto pelo amor, num espaço onde se vive o contrário, no impedimento e na imobilidade: já não há “o incêndio de palavras” (p.28), onde “nos cortaram as mãos/ e a catedral da nossa esperança/ agoniza todas as noites, /entre estátuas e estátuas” (p.28):
Todavia é no ressaibo dos líquidos,
Na aresta dos tempos,
Na confusa música dos corpos
Aptos e certos para o amor,
Que esperamos a tua visita
(p.29)
Esta metáfora da “tua visita” é ainda de esperança.
Para o fim de “Viagem exacta”, a procura de uma enigmática face libertadora ou redentora que se procura e se vai encontrando, ao longo do tempo:
A concluir a metáfora da viagem exacta, o envio do seus versos para o alto,
E, tranquilo, lanço meus versos
À transparente noite
Do teu canto
(p.33)
Estes últimos versos lembram o reenvio do final das canções camonianas, da própria estrutura da canção quinhentista, em que aos próprios versos, o sofrimento e a palavra do sujeito lírico é reenviada para o alto (1).
2. O Diário de guerra: Jornal de Campanha (escrito em Buela, Luanda e Sintra, entre Maio de 62 e Janeiro de 65), Peregrinação, Cacilhas, 1986
Vimos como “Poema maldito” da colectânea Névoa ou Sintaxe (1959) manifesta a incompreensibilidade da violência encadeada que é a guerra, ao longo da história. Mobilizado para a guerra de Angola, Liberto Cruz redigiu em verso o seu Diário de combatente forçado, a que deu o título de Jornal de Campanha. Trata-se de um livro raro na literatura portuguesa sobre a guerra colonial, em brevíssimas palavras a que Eugénio Lisboa, no prefácio, chama “disparos”. Teve a maior dificuldade em publicá-lo em Portugal antes e depois do 25 de Abril. Só conseguiu publicá-lo, em 1986, numa editora portuguesa radicada na Suiça que depois o difundiu em Portugal. Todavia um júri em Portugal reconheceu o seu grande valor e atribuiu-lhe o Prémio de Poesia Cidade de Lisboa nesse mesmo ano.
A brevidade dos seus versos tem a ver com o facto de ser tão grande a ignomínia e a inutilidade da guerra, a hórrida violência, que não há palavras, apenas o essencial da experiência terrível que lhe atravessa o corpo, a vista, os corpos dos jovens despedaçados, a ânsia de que a guerra acabe. O livro está dividido em duas partes: “Situações” (p. 15-79) e “Posições” (p. 80-118) e termina assim:
“Uma novidade: a partir de agora alguns pais vão passar a receber no dia 10 de Junho, no Terreiro do Paço, uma medalha em troca dos seus filhos” (p.118)
Vejamos de “Situações”:
Cumpro ordens como quem rouba pão (20)
Num dos versos está subjacente o versículo 4 do Salmo bíblico de exílio do povo judeu, 137(136), Sobre os rios de Babilónia: “Como cantaremos o cântico do Senhor em terra alheia?”, para exprimir uma forma de exílio forçado e a injustiça da guerra, num país alheio:
Quem sonha no país alheio?
Quem ama na terra alheia? (24)
Já viste um jovem morrer?
Acaso esqueceste o brilho dos seus olhos (27)
“O silêncio é uma arma adormecida” (p.38)
“Lento o tempo vai tecendo a teia do desespero” (41)
“Falecem folhas nas árvores e amigos feitos soldados” (44)
“Nada sei. Nada espero. Sobrevivo.” (50)
“Inertes vamos rasgando o corpo.
E quem nos devolve o sangue?” (64)
Retomando o tópico humanista de Armas e Letras, nos séculos XV e XVI, na Europa – como na expressão de Camões: “Numa mão sempre a espada e noutra a pena” - : Liberto Cruz escreve:
“Na mão a arma rápida. No peito a pena encravada”:
Neste verso, a espada é substituída pela arma moderna e a pena é a pena como sofrimento encravado no peito; é também a pena como metáfora da escrita que poderia aliviar o sofrimento mas que é irrealizável: a pena de escrever também está encravada no seu peito. Não pode escrever de tal modo está trespassado pelo sofrimento e imobilizado pela violência da guerra:
Recorre à expressão das situações de absurdo que a guerra provoca:
“Um tenente-coronel na missa. Um capelão bêbado.
Um miliciano dando tiros. Um cabo a ler Camilo.
É a guerra. (p.85)
Este último verso “é a guerra”é uma paródia a uma publicação de Aquilino Ribeiro, de 1912, com este título, em que o autor tem uma posição ambígua sobre a guerra..
“Situação normal” disse o Alferes.
Reparei que um soldado tinha um cinto de orelhas (p. 86)
Perpassa neste livro o sujeito cujo corpo foi atravessado pela guerra que denuncia, desaprova, que foi forçado a experimentá-la. Em 1963 escreveu um poema em prosa sobre a guerra angolana que publicou em Abril de 1964 na Revista Estudos de Castelo Branco, nº 12: chama-se “Discurso claro como o Inverno”, acompanhado de um glossário próprio, de que cito um breve passo, do início
Chegou o tempo de colocarmos o nosso capacete do vento, de tropeçarmos na erva ou numa pedra e nos deitarmos no chão na companhia das formigas, esperando a tua vinda como quem planta uma árvore ou verifica um astro.
Estamos há tanto tempo instalados no comprido branco do disfarce, neste silêncio de marabunta, que uma liana nos prende a esta morena teia de vidros e espadas, de abutres e sapos, aqui onde sabemos o teu nome, o teu necessário nome
-claro como o Inverno –
que antílopes deslocaram para as matas e dedos de hiena e sangue transformaram no mais súbito dos vulcões.
Espero que este poema venha a ser publicado em livros futuros.
3. Gramática Histórica, Comércio do Funchal, Funchal, 1971(assinada com o pseudónimo de Álvaro Neto)
Liberto Cruz nunca se considerou poeta experimental, no sentido contemporâneo da chamada “poesia experimental, visual, concreta”. São as escritas que dão origem às teorias e não contrário. Liberto Cruz, com o pseudónimo Álvaro Neto, escreveu Gramática Histórica entre 1962 e 1966 e os Cadernos de Poesia Experimental começaram a ser publicados em Portugal, em 1964. Gramática Histórica é um livro fácil de ler, cheio de jogos que ajudam o leitor a separar o trigo do joio. A chamada poesia experimental da época ajudou para a publicação da obra, mas não esteve na sua origem porque a obra já estava feita.
Continuando a tradição portuguesa das cantigas de escárnio e maldizer, Álvaro Neto recorre à ironia, à caricatura, à paródia da normatividade dos manuais escolares, em particular da gramática da língua portuguesa para criticar o quotidiano português. Teve dificuldade na sua publicação e a obra esgotou-se em muito pouco tempo, num circuito restrito de destinatários interessados. Acaba de ser reeditada, em Lisboa (2). Além da ironia e da caricatura, recorre a uma análise muito subtil de fonética, morfologia, sintaxe, semântica e versificação que possibilitam a construção de textos de uma falsa exemplaridade que põe em causa. A Gramática Histórica de Álvaro Neto revisita categorias da gramática normativa tradicional que veiculava a ideologia dominante. A poesia experimental, em Portugal foi uma das tentativas de superar o isolamento, o atraso cultural e a ausência de discussão estética, na década de 60. Escrita entre 1962 e 1966 - quase a par do Jornal de Campanha - e publicada em 1971, foi prefaciada por Haroldo de Campos, conhecido autor de poesia concreta brasileira (falecido) que a considera “uma contribuição positiva, no âmbito da nova literatura portuguesa, para a aventura textual da poesia, hoje”. Nela se encontram inúmeros cruzamentos de sentido através de palavras que criticam o quotidiano e que exemplificam categorias gramaticais de que escolhemos algumas:
VERBOS REFLEXOS
TODOS NOS QUEIXAMOS
PERIFRÁSTICOS
Vamos pôrtoda a esperança no futuro do país
PALAVRAS DIVERGENTES
Tirania
Paz
Alegria
Miséria
Trabalho
Dor
Esperança
Sangue
Liberdade
Escravatura
Povo
Prisão
PLEBEISMOS VULGARES
Um gajo sem cunhas pediu uma Bolsa.
Nicles, claro!
Dizem que ficou com uma grande cachola.
Que artolas!
ARCAISMOS
Casou por amor
O patrão aumentou-lhe o ordenado
Deixamos ao leitor a procura de inúmeras surpresas que o ajudarão a avançar no espírito crítico, no seu verdadeiro sentido, ou seja ou de saber discernir – Criticar não é condenar, é discernir, é ajudar a discernir, ajudar a saber distinguir, a separar o trigo do joio: trabalho de uma vida inteira. É esse sentido original que falta repor à palavra criticar, mas que não falta na crítica subtil de Liberto Cruz. Na segunda e última edição revista e aumentada da Gramática Histórica, Liberto Cruz inseriu textos que então não poderiam ser editados e outros que através das categorias de uma gramática normativa continuarão a ajudar o leitor a descobrir (cito o Prefácio de João Fernandes) “ os contrasensos de um senso comum imposto como bom senso dominante”
4. Poesia e exílio: Distância ( poema escrito em Rennes, Bretanha, entre Dezembro de 1967 e 20 de Abril de 1974), Perspectivas e Realidades, Lisboa, 1976
O longo poema fragmentado Distância marca uma viragem na poesia lírica de Liberto Cruz. O início da escrita deste poema dista cerca de sete anos da conclusão da escrita de Itinerário (1960) que como vimos, é um itinerário fulcral da energia e do enigma da vida, ao amor e à procura de um caminho, da “viagem exacta” que culmina com o reenvio, em movimento ascendente, dos seus versos para a “noite do teu canto”. A poesia lírica de Liberto Cruz ficou em suspenso, depois deste movimento ascendente ou anabático porque foi a guerra que ele teve de atravessar, de que nos deixou Jornal de Campanha e a consciência cívica que construíu na Gramática Histórica que ocuparam a seu trabalho poético, de 1962 a 1966. Disciplinadamente retomou a escrita mais pessoal e lírica no ano seguinte, em 1967, para demorar sete anos a construir este poema composto por pequenos poemas de versos breves em que se nota um progressivo processo de dissecação das palavras. É um poema construído com o tempo, longe de Portugal e de Angola. Por isso lhe chamou Distância. É um poema marcado pela contenção da palavra, a procura da palavra essencial, já não em forma de disparo, como comentava Eugénio Lisboa, a propósito de Jornal de Campanha, mas um outro modo de viver e sobreviver à experiência de exílio não forçado mas voluntário de Portugal, em França, que prolongou durante vinte e dois anos, nas funções que assumiu na Universidade de Rennes e na Embaixada de Portugal, em Paris. Numa entrevista que deu ao Público, em 1994, disse que não tem pressa de publicar a sua poesia, que não acredita na inspiração para a escrita poética, mas no labor, na transpiração, considerando-se também um estrangeirado.
No poema Distância Liberto Cruz entrecruza o amor, o enigma e o quotidiano de um modo novo e muito menos acessível que nos primeiros livros, sem ser hermético. É como que o seu respirar ou transpirar em terra alheia, na companhia de quem ama, mas onde não sente eco de si próprio. A expressão desse Outro vai-lhe pesando pouco a pouco, segundo se pode deduzir, embora não esteja explícito, porque, no centro do poema, o regresso a Sintra, também não explícito, marca uma viragem determinante no conjunto do poema. Para retomar a intranquilidade em terra alheia, a experiência de tolerar o “solo alheio”, e o chamamento profundo da Pátria, exprimindo o suporte da língua materna nas repugnâncias, no pranto, nos pormenores do quotidiano no estrangeiro; a presença e a inevitabilidade da morte, num espaço de outrem que pode tornar-se quase uma prisão, onde tem de se trabalhar, até quase se ficar espartilhado pelo exílio. A ponto de a saudade ser tentacular como um polvo e o exílio, expresso na metáfora “babilónias”, poder ser conducente à loucura – “destruindo a razão”- e o sujeito exilado se enterrar vivo, à procura de uma redenção ( “Messias secreto”). Esta poderá ser uma voz colectiva do exílio:
Só no último verso do final do poema aparece a palavra exílio, relacionado com a memória, a palavra, a escrita dos afectos de quem está distante:
Sôfrega a memória
Brilha. Fogo lento
A palavra
Crepita.
O país define-se
Prática ilícita de
Um critério. Imagem
Empírica.
Objecto solto,
Afectuosa escrita,
Coincidente apelo,
A voz elimina
O discurso. Digo país
Escrevo exílio
5. Ante-pausa: Ciclo, Oficina da Fénix, Porto, 1982 ( para comemorar os 25 anos da publicação de Momento)
Antes de se debruçar sobre o balanço da sua vida e da sua escrita, Liberto Cruz faz uma pausa a que chamo ante-pausa, porque a pausa verdadeira é a que se aproxima. Compõe um pequeno poema fragmentado em dez pequenos poemas que abrem com o regresso à “terra vasta da infância”, o retrato e a memória dos pais, os sonhos, o rio, a ordem, o medo, a memória da adolescência:
Continua a travessia da experiência do amor e sua fusão com a natureza, como nos livros de juventude, com uma expressão muito despojada, para concluir sobre o ciclo do corpo, o fogo que tudo devora, o ciclo da terra, a efemeridade do que se harmoniza no mundo, o “provisório concerto”:
6. Balanço da sua vida e obra e regresso às origens: Caderno de Encargos ( escrito em Paris e Sintra entre 1984 e 1990), Colibri, Lisboa, 1994
É no seu livro Caderno de Encargosque o poeta faz uma pausa para fazer o balanço da sua vida e da sua obra.Trata-se de uma colectânea em que escolheu a forma do soneto como modo de continuar a disciplinar-se na expressão contida mas com uma componente muito mais elaborada que nos livros anteriores por ter como estrutura o soneto que até então não escrevera. Caderno de Encargosé uma obra de maturidade de vida e de vivência poética, marcada pela síntese, a questionação sobre a vida e a morte, a contenção, a diversidade e unidade de temas, a disciplina e a depuração estética de sessenta e seis sonetos de redondilha maior, exigindo do leitor experiência, vivência e maturidade. Parafraseando Camões, conforme a vida, o amor, que tivermos, assim teremos o “entendimento” destes belíssimos versos. O autor faz o balanço da sua vivência poética e existencial, das experiências do amor, a intuição e a certeza da morte, a tristeza, o deserto e os limites da vida, o envelhecimento do seu corpo, o afastamento de Portugal pela guerra de Angola, o exílio, o refúgio da memória, a atitude de quem se interroga, sofre, acabando por aceitar com sabedoria “ as coisas que são o que são” (soneto 64, p.76), a inquietação da brevidade da vida (soneto 21, p. 33), a força e construção da escrita (sonetos 34,43,37,55), a viagem final “da terra misteriosa para a terra do mistério”, (soneto 66, p.78). Não esconde o humor discreto (son.54),- “sabemos só navegar” - a encenação e teatro da vida (soneto 61, p.73), escolhendo a imagem do peixe que se movimenta no aquário, como “um modelo transparente e só de estar na vida (soneto 62, p. 74), o que corresponde a um dos seus modos de conter a vivência existencial e poética. Caderno de Encargos é um livro de um homem solitário, de meia-idade (p.22 e 77), cuja epígrafe é de Alberto Caeiro:
Ser poeta não é ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho
Eis alguns sonetos - chave:
Dia a dia anotando
Vou da vida os encargos.
Da viagem já passada
Ou perdida o balanço
Faço. E por ele corro
O tempo recuperando.
Só em seres e haveres
Me perco. Quem se inventa
Nunca seu mundo repete.
Entre o provável e o certo
O erro vejo dos dados
O lance das coisas sigo.
Quem cedo o sono perde
O real tarde alcança?
(Soneto 10 , p. 22)
Liberto Cruz tem consciência de que a criatividade renova o sabor da vida – “quem se inventa/nunca seu mundo repete” (soneto 10, p. 22).
O movimento para fora da pátria é expresso já não com uma certa angústia do longo poema Distância de que atrás falámos, mas de quem já superou o exílio e o encara com abertura, adaptabilidade, confiança de vencer e até de prolongar
Quem da pátria desanda
Parte só para vencer
……….
E se acaso não volta
Todavia sempre longe
Sua Pátria prolonga”
(soneto 17, p. 29)
Para o poeta, a nossa pátria é também o espaço interior que sempre se procura, o que está por fazer, a inventar, não o espaço imóvel:
A nossa pátria é
Por dentro de cada um
Sem limites nem fronteiras
Falas ou religiões.
A nossa Pátria é
espaço a inventar
(soneto 26, p. 38)
O espaço de reencontro com o local onde se nasce e se vai morrer é um dos fulcros deste livro:
Voltamos sempre ao crime
Do local onde nascemos
………………………………………
Rápidos ali morremos
(soneto 60, p.72)
Como sintrense modelado pela beleza e o mistério de Sintra, Liberto Cruz concentra em alguns sonetos o seu regresso às origens e à casa paterna (son. 22, p. 34), à Serra de Sintra – a “montanha divina” (soneto 20, p. 32), ao rio da sua infância (soneto 39, p. 51), à atitude meditativa que a sua companheira árvore lhe inspira (son. 48, p.60)
São longarinas de vento
Na montanha estendidas.
É dos pinheiros o cheiro
E das flores é a cor.
Uma ave que desliza
O silêncio que passa.
Água fugindo viva
Por entre pedras e ervas.
É do mundo o começo
Aqui ou aqui termina?
São estes sinais dum deus
Ou o deus derradeiro?
Entre a vida e a morte
É a montanha divina
(Soneto 20, p.32)
Aqui havia um rio
O rio da minha infância.
Dele parti para longas
Viagens e longas terras.
Aqui havia um rio:
Um rio inominado
De névoa e mistérios
O rio da minha infância.
Aqui havia a minha
Infância e um rio
E deles parti há muito.
A eles regresso agora:
Quem poluiu o meu rio
Quem usou a minha infância?
(Soneto 39, p. 51)
Na luz branda do caminho
Não dorme nem me vigia.
Mas quando a vejo sei:
A sua vista me basta.
Avanço e olho. Ando
Sem que nada me desvie
E desde que a noite chega
Tenho sonhos exaltantes.
Não sei sequer o seu nome
Mas em memória tenho
O seu perfil de rainha.
Nem vale a pena saber:
Esse inominado ser
É a companheira árvore
(Soneto 48, p. 60)
O retorno a esse espaço não é de quem dele se afastou voluntariamente:
Não sendo um filho pródigo
Volto à casa paterna
E com saudades chego
como quando parti
(Soneto 22, p. 34)
mas a renovação de um afecto que perdurou, apenas inexoravelmente alterado pela morte da mãe:
Nada mudou. Faltas tu
Mãe e de repente tudo
Foge já nada existe
(Soneto 22, p. 34)
O regresso à serra de Sintra, ao seu silêncio, agudiza a consciência da sua própria identidade, embora evoluída no tempo que simultaneamente o torna “outro” no seu ser, no seu modo de olhar a paisagem, na mudança do seu próprio corpo, numa atitude de um certo estoicismo, pela aceitação da mudança para essa outra forma de estar perante a paisagem:
À serra volto ainda
No silêncio das pedras
Me vejo então um outro
mas o mesmo sendo
…………………………
Outra forma de estar
perante a mesma paisagem
aceito. E facilmente
O mesmo sinto um outro
Na viagem do meu corpo
As pedras a serra vendo
(Soneto 18, p. 30)
O seu corpo a envelhecer parece renovar-se correndo “em redor do velho corpo/ da serra adormecida”, o qual se transforma pela magia de “duendes e fantasmas”, “camélias…túlipas”… “de rosa e buganvílias/ agapantos araucárias” (soneto 38, p. 50). Essa magia torna-se interactiva e rejuvenesce a própria serra, suscitando saudade em ambos – no sujeito lírico e na serra por ele animizada:
Em redor do jovem corpo
Da jovem serra de Sintra
De novo corro. Antigo
Agora o corpo meu
De saudades um rio
Em mim e na serra corre
(Soneto 38, p. 50)
É a expressão da nostalgia comungada da juventude do sujeito lírico do poema e da paisagem da sua infância como se a serra fosse sempre renovada, no seu corpo, por seres mágicos, flores e árvores. A serra de Sintra é ainda contemplada nas suas cores, aves, silêncio, pedras, ervas, para acompanhar o mistério da presença da vida e da morte, identificáveis com “sinais de um deus”. O divino manifesta-se na própria identidade e beleza da serra, como companhia da vida e da morte:
Entre a vida e a morte
É a montanha divina
(soneto 20, p. 32)
Eis um dos mais belos livros que se escreveram sobre a viagem da vida que é a de todos nós, escrita por um autor sintrense, em modos e espaços diferentes, no regresso às origens, a Sintra, à nossa – porque cá nascemos e cá vivemos – “montanha divina”.
7. Sequências, Livros Horizonte, 2000 - poemas breves ilustrados com colagens de Maria Gabriel; Construir, inédito, escrito em Paris em 1978 e revisto em 1993
A obra poética de Liberto Cruz culmina com o livro Sequências, a expressão de imagens, ideias e pensamentos muito breves em poemas de pouco mais de dois versos, à procura do que poderíamos chamar o essencial do mistério da vida e do espírito, já liberto da caducidade do corpo. Alguns poetas contemporâneos tentaram retomar o que chamam haikai mas que raramente o são porque os haikai japoneses tinham muitos códigos difíceis de seguir na cultura ocidental. Outros poetas portugueses, como Casimiro de Brito, têm o fascínio da escrita em poemas muito breves em que retomam livremente essa tradição, sem poderem respeitar os respectivos códigos. No caso de Liberto Cruz, a sua escrita destes poemas breves flui como um rio de palavras todas filtradas pela sua vivência, a sua meditação, a sua aceitação dos limites do visível e da possibilidade do ascenso do espírito, para além da caducidade do corpo. Esta escrita de síntese, sobre o essencial, corresponde ao seu modo de ser poético. Se a sua poesia anterior e muito em especial Caderno de Encargos exprime a procura de serenidade interior e de sabedoria de viver que tão bem se harmoniza com a sua personalidade, como pessoa e como poeta, Sequênciasserá uma colheita de frutos de sabedoria, de contemplação da vida e do mundo visto de cima, de maneira sábia e distanciada. Pela sua leveza, visualidade e profundidade foi possível que este último livro de Liberto Cruz fosse ilustrado com colagens de Maria Gabriel, escolhidas pelo autor:
Viver a vida
É esquecer a morte
Espero a amada
As estrelítzias
Fazem-me companhia
Como obra inédita, lemos Construir, um conjunto de poemas escritos em Paris em 1978 e revistos em 1993, sobre a arte poética como labor e esforço de construção arquitectónica, a metáfora de todos os materiais de construção que o erguer de um edifício envolve. Não se trata de um livro técnico, mas de uma meditação poética sobre o essencial do ofício de escrever. É também uma homenagem ao poeta Blaise Cendrars cuja obra Liberto Cruz tem seleccionado e traduzido: terá sido a última palavra pronunciada por Cendrars antes de morrer: “Construire”.