Um outro ser de características notáveis e por isso marginal em várias
direcções às classificações é a cobra: fria, desprovida de pés, de
pelos, de penas, a pele de escamas que abandona periodicamente nas suas
metamorfoses evoca mortes e vidas sucessivas. Estas características
visíveis, aliadas à rapidez e imprevisibilidade das suas reacções,
tornam-na uma desconhecida perigosa de quem não convém sequer pronunciar
o nome. Em criol, tal como noutras línguas da região, muitas vezes
prefere-se usar expressões perifrásticas tais como linha di tchon,
‘linha do chão’. Expressa de forma gráfica, a mesma ideia encontra-se
na linguagem de caça das populações do sul dos Camarões, que representam
a cobra desenhando uma linha no chão. Ela arrasta-se por terra, nada nas
águas, trepa às árvores. Por vezes
venenosa, essa propriedade pode estender-se por contiguidade a quem com
ela partilha a toca. É o caso do saninhu di po, o esquilo das árvores, de
quem se afirma não só que vira cobra, mas que a mordedura, se o sangue
pingar no chão, significa morte
certa. Tal como o esquilo, também o pássaro-martelo, o papagaio e a
abelha (por causa do mel) são associados à cobra. Eles põem
cobra a morar nas suas casas como medida de segurança (“É como
ter cão em casa: Se não bolires, nada te acontece; mas se bolires...”). Do esquilo em particular diz-se que é capaz de lutar
eficazmente com a cobra, por conhecer a raiz que neutraliza o
efeito do seu veneno. No meio da luta sai a correr, procura a
planta-mezinha, mastiga-a e regressa para continuar. Como é
frequente os esquilos andarem aos pares, enquanto um dos
membros do casal luta, o outro vai buscar o antídoto e quando
regressa substitui o companheiro, que repete a acção até acabarem com a cobra. A abundância de cobras venenosas no arquipélago torna este conhecimento terapêutico uma questão vital
no mato. Também a fêmea do porco doméstico, que costuma
parir fora da tabanca, pode ser vista a espumar pelos cantos da
boca a mezinha anti-cobra, que mastiga como medida de protecção enquanto permanece com a ninhada no mato. Contudo, é a uma cobra não venenosa, mas de enormes dimensões, que cabe o papel privilegiado na mitologia guineense:
a jibóia (Python sebae). Em criol iran-segu, a jibóia mostra já a sua
ligação aos espíritos no nome que lhe era atribuído antigamente
na região, iran, que actualmente designa em criol um espírito de
culto. Presumivelmente de origem temné, o termo é referido
no século xvii nos Rios da Guiné: “Cobras várias [...] irão que
engole uma gazela e búfaro até às pontas”, “cobras de muitas
castas, em que há humas de muita grandeza e grossura, que
chamaõ irañs”. O acrescento do qualificativo segu, ‘cego’, parece advir do
facto de os olhos da jibóia só poderem ser observados quando estão
fechados, por deslocação do maxilar, durante o período
em que se encontra imóvel a digerir e sem constituir perigo
para o observador. Ela é assim descrita em 1625: “Há umas
cobras que não têm peçonha, que os negros comem, que se
chamam irãis. São de quatro e cinco braças de comprido, mais
grossas que a coixa de um homem. Tanto que tomam um animal,
se enrolam nele, estirando-se, lhe quebra todos os ossos e o
engole polas pernas. Os cornos lhe fica atravessados na boca
até que apodrece e cai a cabeça do tal animal; então acaba de
engolir o corpo e se vai. Mas tanto que mata o animal, antes
que o engula a rodea grande parte da terra ao redor a ver se acha
alguma casa de formigas; se acha, vai-se embora e deixa o animal morto,
porque nos dias que há-de estar com a boca aberta,
enquanto não apodrece a cabeça, pode dar com ela as formigas
e entrar pola boca e matá-la, comendo-lhe as entranhas”. |
Se o conteúdo da descrição anterior continua a circular
idêntico nos nossos dias, o mesmo não aconteceu com o nome iran, que viria a fixar-se em criol como designação genérica de
espírito sagrado, protector e castigador, individual ou colectivo,
do mato ou da tabanca, objecto de culto e de consulta, bem
como a sua representação material, tendo este sentido a sua
correspondência em diversos termos nas línguas vernáculas das
populações chamadas animistas, não islamizadas.
No fabulário das populações islamizadas que circula em
criol uma figura recorrente é o serpenti, um espírito do mato que
intervém quando o respeito pelas normas ou costumes é violado,
para aplicar castigos exemplares aos transgressores, que também
recorrentemente são mulheres que cometem actos de liberdade.
A sua forma física é a de um iran-segu, mas como iran que é — a
narrativa em criol utiliza os termos iran e serpenti como equivalentes, embora em mandinga iran seja
djinó, ‘génio’ — possui o poder de
metamorfosear-se. Para ir ao encontro dos desejos da transgressora, que
são sempre bizarros para salientar a inadequação social que significa o
afastamento das normas, o serpenti assume aparências bizarramente
atraentes com as quais conquista os seus afectos, casa com ela e leva-a
consigo. O encanto e o engano premeditado subsistem até à chegada ao
novo lar, sempre patrilocal, que é uma cova num poilão no meio do mato.
Nesse momento e nesse local o serpenti reassume a sua forma medonha de
iran-segu e inicia a punição da vítima.
Do ponto de vista genético, o serpenti é filho do
iran-segu, mas um
filho pré-destinado. Quando o iran-segu põe ovos, põe-nos em círculo, e
o ovo que fica no meio é que dá origem mais tarde ao serpenti. Segundo
esta variante, o iran-segu habita normalmente no mato, mas no tempo das
chuvas, em dias seguidos de chuva torrencial, inicia a sua trajectória
rumo ao mar (rio ou oceano). Nesse caminho pode ser visto e, se a chuva
parar, pode-se obter qualquer coisa dele (na sua mão) porque ele quer
descer para o mar para transformar-se em serpenti.
Se na narrativa oral em criol os termos serpenti e
iran são utilizados
como equivalentes, para os povos islamizados — que se afigura nunca
serem-no totalmente — “são iguais mas não são bem iguais”,
iran é mais
djinó, ‘génio’, exige culto e cerimónias, enquanto o
serpenti não, se
gostar de uma pessoa pode transformar-se em alguém do sexo oposto e
namorar com ela. Quando alguém muito belo não chega a casar ou sofre de
epilepsia, é porque namora com o serpenti, e quando tem ataques está a
fazer amor com ele. Neste caso a intervenção da serpente mítica
manifesta-se sob a forma de causa de comportamentos anormais, quer
sociais e por omissão, como não casar ainda que se reúnam
condições mais do que suficientes para o fazer, quer físicos e
por excesso, como violentas contracções de todo o corpo e
perda do conhecimento.
A mesma intepretação causal de uma serpente mítica, desta
vez exacerbando as forças da natureza, assinala Carreira entre
os pepel, quando refere espíritos do mal, da água ou do mar, e
do mato [...]. Espíritos da água que provocam tempestades, naufrágio de embarcações e morte de tripulantes e passageiros, e
que nalgumas regiões estão representados por enormes jibóias
(iran-sega) que afloram à superfície das águas para atingir as
embarcações. Estas jibóias nascem em terra e depois de crescidas
e de disporem de força bastante para lutar com as adultas e já
refugiadas nas águas, penetram no mar, onde exercem a sua acção nefasta. Perseguem as embarcações, afundam-nas e matam
as pessoas. Os espíritos do mato, na língua pepel usai-usarpente
(irã-serpenti) vivem nos grandes matagais e não há memória de
terem sido avistados. É crença generalizada, mesmo entre os
cristianizados, que aquele que avistar — sem ser visto — a serpente
do mato, enriquece em pouco tempo. Se, porém, for descoberto
por ela, morre fatalmente.
Esta mesma ambivalência do ser mítico a que dá corpo o
iran-segu, o qual ora castiga, ora concede dons, é manifestada
pela ninki-nankó ou ninki-nanku, que circula entre os mandingas
da Guiné, da Gâmbia, do Senegal. Além do corpo de jibóia,
ela distingue-se por uma crista no cimo da cabeça. Diz-se que
quem lhe vir a crista morre, porque alguma coisa está lá escrita
que é contra a vida das pessoas. Essa coisa não deve ser vista
porque dessa visão não se escapa com vida, tem que se morrer
ineluctavelmente. Por outras palavras, esse conhecimento não está
ao alcance de qualquer um.
Ver a ninki-nankó sem ser atingido pelo seu poder mortal é
dificil, só os muru grandes, as pessoas que têm cabeça é que podem
vê-la, e ter cabeça é um dom divino (“Só se Deus descer e te der”).
Se for vista de improviso por alguém comum, desprovido desse
dom, e a visão for mútua, só há duas hipóteses: morrer ou perder
instantaneamente todo o cabelo da cabeça. Quando alguém a vê
sem ser visto, ao referi-la mais tarde a pessoa protege-se do perigo
que essa visão comporta “recusando nomeá-la”, utilizando expressões perifrásticas tais como ‘Nha saa ba dje” (mdg.), ‘vi uma
cobra grande’.
O carácter e resultados de um encontro com a ninki-nankó
são portanto condicionados pela posse ou carência de cabeça (ter
cabeça, ter cabeça grande). Quem não possui esse atributo, quem
tem cabeça leve, cabeça pequena, não prevê o encontro, a sua situação
na circunstância é da mais completa indefensão, e pode ser
atingido de forma mais ou menos fatal pelo poder do ser superior.
Pelo contrário, ter cabeça possibilita encontros previstos, a posse
do atributo parecendo implicar a capacidade de lidar com forças
naturais de grande envergadura e, ainda, de as controlar e dirigir
para alcançar certos objectivos. Um destes objectivos pode ser a
eliminação de um adversário indesejado, e nesse caso a ninki-nankó
é “encantada” para poder ser vista por essa pessoa e ela
morrer. Refere-se o caso de um xerife, um chefe religioso que era
mestre de muitos talibés ou discípulos, que descobriu uma vez
que a sua mulher lhe era infiel com um deles. Entrou em casa,
pegou no rosário e chamou-o. À saída, no sítio do lixo, o rapaz
viu a ninki-nankó e morreu.
Um outro objectivo pode ser a obtenção de riqueza ou de
coisas de reinança, isto é, de poder político, porque a ninki-nankó
“tem segredo, como o Estado”. As pessoas poderosas do império mandinga tais como Sundjata no Mali e Djankewali no Kaabu, teriam
feito contrato com a ninki-nankó, que quando quer se transforma em
pessoa e sob essa forma realiza o acordo, em troca de uma criatura.
Esta morte de uma criatura exigida pela ninki-nankó entre mandingas e
pajadincas é invertida entre os nalus pela sua semelhante ningi-nange ou
basonji, que castiga os autores da morte de crianças. Sob a forma de
escultura ritual, a ningi-nange vista por Artur Augusto da Silva no IFAN
de Dakar e reproduzida em fotografia num artigo seu de 1956 apresenta
no corpo os característicos desenhos geométricos da pele do iran-segu e
no cimo da cabeça a crista do ser mítico (fig. 14, em pág. extra-texto)
(1). Também ele a refere como a grande serpente que nunca pode ser
vista, a não ser por poucos iniciados, e assinala sugestivamente que
essa escultura, a única representação da ningi-nange que lhe coube ver,
tinha sido oferecida pelo Dr. Martin-Chartrier, “que a obteve de um
chefe indígena [nalu] falecido pouco tempo após a oferta”. A informação
que acompanha a ficha da figura da ningi-nange no IFAN é igualmente
reproduzida nesse artigo:
Toujours caché dans le bois sacré, gardé précieusement par san unique
propriétaire (puissant personnage qui détient le Grand Fétiche [..]) il
ne sort qu'en de rares occasions, et malheur a qui le voit. On m'a conté
qu'on peut solliciter son aide pour punir des sorciers qui ont fait mourir
injustement des enfants; on va trouver le propriétaire du Ningui-nangue
et si la cause est estimée juste, le Fétiche se met à la recherche du coupable pendant une
nuit sans lune; cela se sait aussi peut-on chercher
quelqu'un dans les rues da village ou dans les chemins environnants:
tout le monde est chez-soi, bien enfermé et aucune puissance ne
pourrait faire sortir qui que ce soit de sa case. Le lendemain on apprend
qu’un sorcier est mort: nul ne peut résister à la puissance de
Ningui-nangue.
Esse poder é tal, diz A. Artur da
Silva, que “só ela é capaz de destruir os efeitos de qualquer feitiço,
por mais terrível que ele seja”.
Se confrontarmos as diversas manifestações da grande serpente mítica até aqui expostas, veremos que enquanto as anteriores (serpenti;
usai-seenti, ninki-nankó) proporcionam encontros
directos, sejam eles imprevistos ou obtidos mediante uma
invocação prévia, mas sem intermediários humanos, a Ningi-nange
descrita é um iran instituído, com um suporte material fixo que
permite e requer rituais, através de um intermediário e porta-voz, aqui referido como “proprietário, possuidor” (cr.
dun, mdg. tigi, ‘dono’, com o sentido de ‘chefe, responsável, encarregado
de’). “Quando morre o possuidor de Ningui-nangue, diz A. A. da
Silva, esta pede uma festa durante a qual se realiza a cerimónia de
escolha do futuro detentor. Em certa altura da festa, os candidatos
à sua posse — e candidatos são só determinadas pessoas que
reúnem requisitos de idade, autoridade e inteligência — reúnem-se em círculo e o feiticeiro da tabanca degola uma galinha e,
rapidamente, coloca-o no chão. A galinha estrebucha e cai inanimada. A pessoa em frente de quem ela cai, será a designada
para a possuir”. À Ningi-nange aparecem assim ligados os diversos
manipuladores humanos, oficiais ou ocultos, das forças sobrenaturais, do bem e do mal: o feiticeiro, incarnação do mal, a
quem ela dá morte pelas mortes injustas de crianças; o djambakús,
que preside à cerimónia de escolha do seu guardião; e o baloberu
ou dun di iran, o seu guardião, porta-voz e intermediário.
Recapitulando, as representações colectivas que comportam
a figura do animal iran-segu estendem-se do mato ao rio e ao
oceano, das narrativas do fabulário aos rituais religiosos, abrangem cristianizados, animistas e islamizados, envolvem poder
pessoal, religioso e politico.
Também a crença no chamado “contrato”, isto é num acordo com o
iran quando se está perante a concentração de poder e/ou riqueza,
transborda os limites geográficos, culturais, a divisão rural/urbano.
Aberta sempre a novos elementos que lhe garantam a sobrevivência, a
crença actualiza-se permanentemente. Já não se trata só dos míticos
imperadores Sundjata no Mali ou Djankewali no Kaabu, mas de pessoas que
conhecemos ou de que ouvimos falar. Com efeito, o início do processo de
abertura política na Guiné-Bissau permitiu o surgimento de líderes
partidários que subitamente se tornaram populares, percorrendo o país e
congregando manifestações de massas, ocupando espaço nos meios de
comunicação social, tornando- se assim “grandes”. Reveladoras da
integração de novos dados da realidade no universo das crenças,
começaram a circular em Bissau, em relação a um líder da oposição,
referências perladas de detalhes a um contrato com o iran, o qual o
visitava a sós no seu gabinete e de improviso, fazendo com que
cancelasse precipitadamente os encontros marcados para essa hora.
Histórias semelhantes circulam em relação a um antigo empresário
colonial bem sucedido e que por isso teria feito contrato com o iran, o
qual, após a morte daquele, continua a habitar o local num quarto sempre
fechado a chave onde ninguém ousa entrar e continua a apoderar-se de uma
pessoa cada ano, mesmo que a empresa tenha sido estatizada há quase duas
décadas. As mesmas histórias circulam em geral em relação a qualquer
pessoa que tenha feito fortuna ou sucesso durante a sua vida, seja
empresário turístico no interior do país ou dono de um bar sempre
amplamente frequentado na capital. Esta crença, que remete a concentração de riqueza para a
área do sobrenatural, parece encontrar suporte e contrapartida
numa economia contrária à acumulação, em que os excedentes
de riqueza material são redistribuidos periodicamente, consumidos colectivamente em choros, casamentos ou cerimónias de
acesso a novas classes de idade, e assim transformados em capital
social no sentido sociológico do termo. |