Eu sou o cantor miserável da noite no cais.
Estão ali
no cais
ansumane beco, infamará, bicinte cabupar, malam seidi, djodge
badiu, batipom cá
estão ali
uma data de anónimos
da noite no cais.
Barco veio: de onde?
Mar salgado saberia contar a história
de um gigante de vapor
que rompeu seu segredo
da Europa para cá.
Estão ali
uma data de anónimos
da noite no cais.
Para quê
aquela gente?
Gente para carrego de sacos fartos
e tantas caixas de whisky and coca-cola and beer
que o mundo galã há-de consumir
em noites diferentes
das noites no cais.
Irmão
eu sou o cantor miserável da noite no cais.
Porque no cais
encontro águas ensaudadas e mansas beijando estacas rogadilhas de
ostras calcárias
de bagres e barbos
de bentanas e esquilões
que menino pescador de cana e linha vai ali pescar.
Porque no cais
encontro o tronco forte do homem qualquer
untado de calor quente rolando corpo abaixo
como gotas de lágrimas amargas
espoliadas dum gesto forte de sofrimento longo.
Porque no cais
encontro a menina penina que não sabe viver para a seriedade
onde mastigaria — gulosa e galantemente —
outro pão de menos veneno.
Porque no cais
encontro o velho camarada que um dia
— levado pelo mar da revolta — tomou rumo naquele vapor tamanhão.
Ali aprendeu ele a abocar bem o cachimbo da esperança
e a dar riso franco ao mundo sórdido.
Porque no cais
encontro o ar erguido altivo e pantomineiro daquele patrão-mór
de olhar agudo e desconfiado
e do interessante fulano de tal
que manobra lindo seu guindaste «made in england»
Porque no cais
encontro migalhados: bicinte cabupar, djodge badiu, ansumane beco,
infamará,
malam seidi, batipom cá
e mais uma data de anónimos da noite no cais.
Barco veio: de onde?
Não interessa saber irmão
não interessa.
Se cais não houvesse
gente anónima não tinha no cais.
Nunca
nunca gente poderia ouvir
a história que mar salgado deveria contar.
Bissau, Plubá
Março de 1975
Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural
Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da
Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito,
1990 |