Félix Sigá

Tempo de transformação

Sorrisos sem brilho
Mãos esqueléticas trabalhando
        sem cessar
Cotins e sarjas
        esburacadas sem cor
        pelo desgaste
        sem solvência para repor
Pés rachados e endurecidos
calos nas mãos
calos nas patas
Até espinhas e sol se resignam
Ossos forçando peles
       aqui e lá também
E costelas
       quais persianas
       sob cortina de carne
É a vida
É esta vida do começo
       que nossos corpos retratam
       Povo meu
Em tempo de transformações
O tempo esculpe em nós
       o seu curso
E na terra erguida
Nas plantas e alimárias
Cicatrizes de meandros
       desta vida exígua
Lamentos não curam
Labutar enquanto vida somos

Pagamos hoje
O custo dos tempos vindouros
Ó povo meu
Suor e sangue fazem pátrias
Abnegados e convictos
Antecipemos o futuro
Para que o presente se firme em Paz

Pecixe Maio de 1983
In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

Alívio

Rasgando a pele da terra
Um rasto de carne
no sangue da pedra
Escreve nas minhas artérias
Uma vontade exaltante de viver

Homens sorriem sangue
Sob minha impavidez
Cambaleiam cadavéricos.
De tez com expressão macabra
Lições da fome da nudez da morte
Batikizam desejo e crueldade
Na firmeza dos que tombaram imortais

Para além das fronteiras do processo
cada vez menos me imagino
E esta luta que a vida entranha
Fez-se condição imanente
do meu existir
Escravizando-me à Pátria

Vou com seios da razão
Regar a boca do fuzil
Para que as searas suspirem
o alívio da nossa aflição
E seja
seja CONTRIBUIÇÃO

RDA-Berlim Julho de 1986
In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

Carta

Pioneiro — meu Filho
Não deites lágrimas no meu pranto

Descalcei bocas inteiras
para vestir teus intestinos
agora anoitece nos meus calcanhares
E sobre mim, perfilam sonolentos
mil caminhos de pés chuvosos

Na esqualidez de corpos
que revolvem tempos e sombras
nas mutações que nos enxovalham
e desabrocham o presente dos futuros
em horizontes ainda pálidos
do nosso existir certo

Com liturgias frustradas
Esvaem-se idolatrias por pseudo-mitos
E este Povo martirizado
embrenha-se sempre
pelas veredas do PAIGC
Na senda do progresso e felicidade
para sua e tua gerações

Fulacunda, Março de 1987
In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

Música

Quando foi
E qual é ela
Que transpôs limites atmosféricos
E aos viventes não cantou?

O mundo é música
A música é vida
A vida é pranto e canção
a vida é mundo

Viver é agir
A música é um mundo
Com relvas e cinzas
A vida é música

 

Pecixe, Dezembro de 1982
In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

REQUIEM AO ILUSTRE POETA

Aqui vão os textos de dois poemas dedicados ao malogrado Hélder Magno Proença Mendes Tavares, publicados no jornal Diário de Bissau e oferecidos em quadro à família enlutada.

Iniquícia em Síncope

(Murmúrio e Gemido Elegíacos ao Hélder Proença Mendes Tavares)

Oceano nu sem águas nem vento
Não chorem o herói que tudo saldou
Passamento no-lo subtrae ao Firmamento
Que amor muito e legado vos guardou

Virtude do que deve e não foi isento
Recobra consagração protelada ou
Verga seu nome títulos a cinzento
Aletófilo de verve exautorada voou

Ínclita geração invicta sem contento
Fez-se redoma quando a morte ecoou
Para as facetas e o punho do portento

Bioluminiscente derribado cruento
Inequívoca invídia Guiné nunca perdoou
Nem plúmbeo nem laminal argumento


(As estrofes podem ser lidas de baixo para cima ou a partir do meio ... técnicas)

 

FÉLIX DO PELEGRÉ E ANTÓNIO SIGÁ
http://felixsiga.blogspot.com/

Quem diria?!

De súbito chama fugaz cortou a Bissau
Arrebatados por contundentes golpes
à consciência plural esparsa
e aos nossos corpos vulneráveis
com as marcas de todas as atrocidades
em franco envelhecimento prematuro

Expectantes ao futuro electivo
nossos olhos de valentes
verteram num repente
o pranto liquefeito quente
na franca amargura hedionda
da dor imensa dor tragédia
do teu corpo aqui já agora inerte
desvidado arrebatado no sonho
Tu camarada ilustre
Depois das novas pontes
São Vicente e João Landim
incrédulos até Safim
sucumbiste ao combate
e todo o saber e patriotismo
cultuados cultivados apurados

As brisas sob o rasto da morte
trouxeram no percurso fatal
os gumes de finas lâminas
e não couberam numa raça de etnias
com odores de morte traços
cegos de implacabilidade ímpia
invadiram entes amigos
activaram as espoletas da revolta
em cada coração tocado

Braços erguidos gritos exclamações
de incredulidade e horror
mal contiveram o ímpeto dos choros
tal é a violência do desespero
seres em aonixia arranharam o espaço
na tentativa de anular a morte
outros aodontes mordiscaram lábios
poucos deglutiram a saliva
nós que a aflição sufocava

E todos os investimentos em ti
e tantos projectos
e quanto amor
e toda a vida.

 

FÉLIX DO PELEGRÉ E ANTÓNIO SIGÁ
In: http://felixsiga.blogspot.com/

 

Xilef Agis, de nome verdadeiro Félix António Sigá, nasceu a 16 de Maio de 1954, em Bissorã, região de Oio.

De 1975 a 1977, foi o 1° responsável da JAAC do Sector de Bissorã e no mesmo período formou, com Roberto Quessangue e Alberto de Pina, o agrupamento musical «Tchon Tchomá». Entre 1977 e 1979, foi professor do ensino básico elementar em Billá e Ilhéu do Mancebo (sector de Tite), presidente da Comissão de Estudos da Secção de Dar Salam (sector de Empada). Em 1980, foi destacado para assumir as funções de responsável da secção regional de Finanças da Delegacia da Educação de Quínara. De 1981 a 1982, foi coordenador pedagógico da Educação no sector de Empada e director do semi-internato local. No ano seguinte, responsável da Educação de Pecixe (sector de Caió, região de Cacheu).

No ano de 1983, foi chamado pelo Comité de Partido da região de Quínara para chefiar a sua secretaria regional. Entretanto, foi eleito em 1984, simultaneamente (na JAAC) secretário regional de Administração e Finanças na (URTQ) chefe do departamento de organização e finanças (na Cruz Vermelha) e tesoureiro da Delegacia Regional.

Participou como delegado político no 12º Festival Mundial da Juventude e Estudantes em Moscovo no ano de 1985, seguindo depois para Berlim Ocidental, para estágio de superação político-ideológica na Escola Superior «Karl Marx», do PSUA. Regressado ao país em meados de 1986, foi reeleito nas mesmas estruturas das organizações de massas, acumulando as de 2º secretário regional da JAAC e presidente da Delegacia Regional da Cruz Vermelha de Quínara. Participou no 4º Congresso do PAIGC como delegado, em Novembro desse mesmo ano.

Em Novembro de 1987, foi chamado ao secretariado do Comité CentraI do Partido para, em comissão de serviço, trabalhar no Departamento de Administração e Finanças. Em Janeiro de 1988, foi indigitado pela presidência da Assembleia Nacional Popular para chefiar os seus serviços administrativos.

Músico, compositor e intérprete, contabilista de profissão, já publicou alguns poemas nos programas radiofónicos «Tempo de Poesia» e «Tagara de Armondade» de Radiodifusão Nacional (1 983 e 1 987), na revista internacioml «Cadernos do Terceim Mundo» (1984), editada em Portugal. Também se dedica ao desenho artístico.

http://www.didinho.org/

http://senegambia.blogspot.com/