PIRES LARANJEIRA

Originalidade da literatura africana*

Extractos

Jahnheinz Jahn demonstrou que a África é um conceito geográfico e não cultural, que a “cultura negra” de África e os territórios negroafricanos deixaram de coincidir há séculos e que a literatura africana recebe a herança de uma dupla tradição: a literatura africana oral e a ocidental. Não foi ele o primeiro a explanar estes pontos, mas foi quem lhes deu desenvolvimento coerente. Procurou limpar a classificatória da literatura africana das excrescências extra-literárias, contaminação a que estivera sujeita durante décadas, ou séculos (consoante a periodização), por via da intromissão de critérios colonialistas ou colonializantes na apreciação não só das literaturas como dos povos que as produziam.

Em África, o acidentado percurso que vai da primeira utilização da escrita até às independências políticas inclui influências desde o indigenismo haitiano e o negrismo cubano ao abolicionismo norte-americano e brasileiro e ao afromexicanismo, completando-se no panafricanisno e na negritude do século XX. Nessa_lenta solidificação do espírito em luta com forças adversas, épocas houve em que a individualização se esbateu, alheando-se dos valores a promover, optando por estéticas de discipulato declarado, a bem ou mal da nação.  A formação das nacionalidades neoafricanas corresponde, obviamente, à formação das literaturas nacionais.  Mas os desencontros foram frequentes ao longo dos séculos e das geografias. Nunca, como em África, se colocou tão pertinente a questão da nacionalidade da literatura. Disse-se mesmo que se tratou de razões de estado... psíquico. O ser africano dependia do linguístico e literário, pelo menos para as elites cultivadas. Daí que à ruptura com a dominação militar e política correspondesse a ruptura com os estereótipos europeus. A longa marcha do africanismo contra o europeísmo começou, no México, com José Vasconcelos e Soror Juana Inés de la Cruz, no Haiti, com uma plêiade numerosa (Herard-Dumesle, Coriolan Ardouin, Fleury-Battíer, etc., para só citar os menos conhecidos), em Cuba, com Plácido e Creto Gangá, na Argentina, com José Hernández, na Colômbia, com Candelario Obeso, continuando nos E.U.A. com Frances Harper, John Whittier, G. M. Horton, Longfellow. Os brasileiros do século XIX, como Luís Gama, Castro Alves, Raimundo Correia, Cruz e Sousa, tornam-se, por isso, os menos afastados influenciadores paternos dos africanos de língua portuguesa. Porque os mais próximos, pré-modernistas, modernistas, neo-realistas e regionalistas-construtivistas, de Euclides da Cunha a Mário de Andrade, Jorge de Lima, Lins do Rego, Guimarães Rosa e João Cabral, têm já sabor a convidados especiais, a amigos íntimos. São lidos em corpo inteiro, à cabeceira.

 

 

 

PIRES LARANJEIRA

LITERATURA CALIBANESCA

 

Lisboa, Edições Afrontamento, 1985

Literatura africana: porque África é o motivo da sua mensagem ao mundo, porque os processos técnicos da sua escrita se erguem contra os modismos europeus ou europeizantes. Jahn chamou-lhe literatura neoafricana, por ser escrita em línguas europeias e para diferenciá-la da literatura oral, produzida em línguas africanas. Esta primeira distinção explica já que, só pelo facto de ser escrita em línguas europeias, a literatura africana deriva das sequelas do colonialismo. Ou seja: sem o coloniaismo, sem as descobertas e a expansão ultramarina, ela não seria possível. O colonialismo serve-lhe de propulsor da consciência, a qual se rebela contra ele. No poder do confronto dessa rebelião literária (linguística e ideológica), no alcance da sua ruptura, na novidade da sua inovação é que reside o estatuto de liberdade, da sua libertação do jugo de outras literaturas.

[...]

Contra a “escrita flutuante”, passível de ser apropriada por colonialistas ou portugueses de má fé, se erigiram todos os movimentos literários africanos, de maior ou menor envergadura, com ou sem conseguimento. Tornar a escrita irrecuperável pelo poder das metrópoles ou do neo-colonialismo, eis o propósito de alguns dos maiores escritores africanos. A literatura, na sua perspectiva, é sempre política, ou pelo menos fortemente politizada, ainda que não explicitamente. Mostram-no os textos dos melhores deles - José Luandino Vieira, Mutimati Barnabé João, Corsino Fortes, João-Maria Vilanova, Luís Bernardo Honwana - pagando, porém, por vezes, o preço da intraduzibilidade, do desconhecimento editorial ou factual não só nos países que melhor os deveriam conhecer (Brasil e Portugal) como no resto do mundo, salvo excepções raríssimas. É que vivem do regionalismo, afirmam o combate no terreno da pátria a construir-se, tornam-se concretos, o texto bi-trilinguiza-se, e lê-se facilmente a sua provocação mais imediata: dificultar a leitura dos não-africanos. É a fase da bofetada no gosto do público de língua portuguesa, principalmente o europeu. A fase que vai de meados da década de quarenta  até às independências (meados da década de setenta). O textos que mais se traduzem nos quatro cantos do mundo são precisamente aqueles que ostentam as marcas da revolta política sem extremo aprofundamento das rupturas escriturais: A Vida Verdadeira de Domingos Xavier de Luandino Vieira, Sagrada Esperança de Agostinho Neto. Os escritores que optaram pelo estraçalhar das mais clássicas regras do escrever europeu, os que ousaram ironizar ou achincalhar o culto do perfeccionismo (por muito surrealista ou concretista que fosse), os que se atreveram a intrometer na escrita de língua portuguesa as rasuras do crioulo, quimbundo ou do umbundo,  a necessitarem de autêntica descriptação pelo menos, conseguirem a equivalência opondo ao rigorismo cartesiano ou ao simbolismo evanescente o concretismo referenciadamente plural da palavra, como magia preclara e exorcismo rebarbativo, esses, ou aquelas suas obras produzidas sob tal perspectiva, esperarão ventos de feição. Anti-feiticizante, a literatura africana combate o exotismo sob todas as formas, quer se apresente recuperando narrativas tradicionais, quer utilize ritmos e segmentos significantes emprestados das culturas populares,  empenhando-se na desmitificação desses pontilhados culturais, libertando-os do seu significado de fetiche turístico e cartaz ilusoriamente localista, o regionalismo sobrevive não em estereótipos, frases feitas ou tipos de personagem, mas pelo labiríntico da escrita e da acção, pela mistura plurilinguística, pelo preenchimento mnemónico  dos espaços imaginários e oníricos dos leitores desapropriados de ser e de pátria: a literatura não tem outra saída, outro modo de entrar no desgosto metropolitano. Ainda que esse movimento de repúdio dos leitores metropolitanos se faça também contra a potencialidade dos leitores africanos (analfabetos e incultos, no sentido tecnológico), já que essa literatura não pode correr o risco de facilitar a leitura, prescindindo de métodos e processos de elaboração complexa e selectiva. Na riqueza elitista, que toma, por vezes, o carácter de simbologia hermética, a escrita não chega a descrever, a apontar, a profetizar, a contar, optando pela via da contra-escrita, do des-apontamento, do des-encont(r)o. Dir-se-ia que nega todo o acto mecânico de leitura, plácido ou fulgurante, obrigando, mais do que qualquer outra de língua portuguesa, a um esforço adâmico de aproximação, estudo e destrinça. Liratura de revolta e de revolução, destina-se a ser ferozmente repudiada pelo colonialismo, não só pela violência da sua força denunciadora e desmistificadora - mas também peilos vínculos com áreas  e tópicos culturais e literários especificamente voltados contra o poder açambarcador, assimilador e destrutivo do imperialismo cultural. Torna-se como que uma faca cravada nas costas da consciência serena das leituras fluídas assépticas. Antibocejante, imprópria para adormecer almas místicas, estremece o espírito de quem se aproxima: ou é violentamente recusada de imediato ou pacientemente apetecida, fascinante porque indecifrável, labiríntica e inequivocamente estrangeira. Insultuosa, castiga os europeus com o epíteto que os romanos lhes haviam imposto há milénios: abaixo a barbárie (europeia) /viva a civilização (africana) (título do poema de João-Maria Vilanova).

[...]

(*) Cadernos de Literatura, n2. 3, Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra /INIC, 1979.

Pires Laranjeira. Alguns títulos: Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Lisboa, Universidade Aberta; Negritude Africana de Língua Portuguesa. Textos de Apoio (1947-1961), Coimbra, Ângelus Novus;  Ensaios Afro-Literários, Lisboa, Novo Imbondeiro; Literatura Calibanesca, Porto, Afrontamento; De Letra em Riste, Porto, Afrontamento.

http://senegambia.blogspot.com/