Coube a Leopoldo Amado (“A Literatura Colonial
Guineense”, Revista ICALP, Julho – Outubro de 1990)(*) o mérito de
destacar a importância do romance Auá, de Fausto Duarte,
contextualizando-o ao sabor das transformações operadas na Guiné
portuguesa a partir dos anos 20 do século passado.
Dera-se a “pacificação” ou estava em processo terminal; surgiam os
primeiros jornais publicados na Guiné e com eles surgia a literatura
jornalística; Maria Archer e Fernanda de Castro (**) escreviam sobre a
Guiné em Portugal, e com relativo sucesso; uma elite cabo-verdiana
(Fausto Duarte, Juvenal Cabral e Fernando Pais Figueiredo) promovia os
interesses africanos pugnando pelo alargamento do ensino aos guineenses.
Fausto Duarte [1903-1955] (***) apareceu como repórter, colunista e
cronista desportivo numa Bissau que já é capital comercial da colónia;
participou na primeira Exposição Colonial de Paris, dedicando um número
especial ao evento no jornal O Comércio da Guiné onde destacou a
etnografia guineense.
É um homem culto que capta as novas contradições da assimilação colonial
e do gosto pelo exotismo. A Guiné que ele vai descrever em Auá é
completamente diferente da retratada quer por Maria Archer e Fernanda de
Castro e outros. Pela sua formação, revela atenção e um elevado espírito
de observação pelas tensões de civilização: entre as etnias no mato
remoto e em Bissau; entre o trabalho agrícola de sobrevivência e o
trabalho ao serviço do colono em Bissau; mesmo ao de leve, refere
estados de identidade de aproximação entre a realidade colonial e a
adesão das populações guineenses. Tudo leva a supor que Fausto Duarte
escreveu sinceramente e de acordo com o seu compromisso cultural de
hibridação e de exaltação dos valores africanos.
Auá foi galardoada com o 1º prémio de Literatura Colonial em 1934, ano
em que aparece editada pela Livraria Clássica Editora, de Lisboa, e com
prefácio de Aquilino Ribeiro (ele escreve: “O primeiro que viu a Guiné
foi Nuno Tristão, o segundo foi o autor de Auá... Com simplicidade
encantadora, vai nos pintando o que é a vida naquele trato de terra e
humanidade... Fausto Duarte é pela civilização, mas a sua sensibilidade
não cala a ternura que lhe merece o homem escravizado. Os que sonham com
um Portugal de além-mar engrandecido hão-de de ficar gratos à pena
colorida, equilibrada, emotiva sem excesso que escreveu Auá, estreia
literária de maior realce e obra de elevação lusíada”).
Aquilino Ribeiro exaltou o romancista mas também foi excessivo. Fausto
Duarte era tudo menos simples: cita Schiller em alemão, Paul Morand em
francês, conhece profundamente a cultura europeia e tem uma riqueza
vocabular espantosa. Não acredito que a sua Novela Negra, como lhe
chamou, tenha sido popular quer na Guiné quer em Portugal. Basta ver
como se inicia a sua obra:
“As águas tranquilas do Impernal acariciando o debrum da paisagem
dormente, anquilosada pelo sol adusto, áscua viva que se reflectia na
opacidade plúmbea dos céus, espreguiçavam em torcicolo ocultando-se
entre o tufo emaranhado dos mangais. A vazante tinha posto a descoberto
a orla mádida e lamacenta do rio, e uma variedade abjecta de moluscos
deslocava-se sobre a terra lodosa, aquecendo-se ao calor estuante de
Novembro”.
De que versa Auá ? Malam é um fula que trabalha em Bissau, tinha
trabalhado como criado de alemães. Frau Wrede não resiste à beleza de
Malam e fazem amor. Depois pede a alguém para escrever uma carta ao
administrador de Bissau a oferecer os seus préstimos, quando os alemães
partiram. Foi admitido ao serviço e agora vai a caminho do Gabu, vai
casar com Auá, a mais bonita bajuda do leste da Guiné. É uma viagem
longa, atravessam o Impernal, seguem para Mansoa, depois Mansabá, depois
Bafatá. Leva na mala muitas prendas para a sua noiva: lenços, panos,
bandas, missangas, manilhas de prata, um fio de ouro. Fica a descansar
em Bafatá em casa de um tenente de 2ª linha.
Perguntado sobre como está Bissau, responde: “Os brancos fizeram grandes
coisas. Ruas largas por onde passam automóveis e grande caminhões; lojas
enormes de panos de todas as qualidades que os brancos fabricam na sua
terra; contas douradas, bicicletas e até máquinas de lavrar a terra. Há
tempos, veio de Lisboa um aeroplano que parece um grande pássaro”.
O motorista da casa Gouveia leva-o para Contubo-El, daqui seguirá para
Sare-Sincham onde vivem as suas famílias, a dele e a de Auá. É uma
viagem onde Fausto Duarte aproveita para falar de usos e costumes, da
religião e até das povoações. Por exemplo, Geba é descrita como uma vila
tristonha, outrora berço do catolicismo heróico, tem o aspecto místico
habitado por um povo indigente. De um modo geral, as povoações têm uma
rua com casas e lojas comerciais, estão cercadas pelas moranças dos
indígenas. Nisto, avista-se a tabanca de Sare-Sincham, onde ele vai
ficar em casa dos pais, Braima e Tacô. Fausto Duarte polvilha a obra de
frases em fula e até mandinga e crioulo. Mostra-nos Auá e o seu amor por
Abdulai, os preparativos para o casamento, há grandes descrições das
lutas dos fulas durante a festa, Abdulai desafia Malam para o combate, é
derrotado.
A critica social também abundante: o colono que vive com indígena, a
superstição e a feitiçaria, o peso da religião muçulmana entre os fulas,
a profunda simpatia de Malam pela cultura dos brancos. Segue-se o
casamento, a chegada de um feiticeiro, um hipócrita e arranjista que
acabará por violar Auá. Malam e Auá irão viver em Bissau, cidade que é
descrita por Fausto Duarte como um local de sensualidade, um permanente
bordel. Em Sare-Sincham, virão os guardas-fiscais que levarão o
curandeiro, Issilda, preso. Terminam entretanto as colheitas, Auá está
grávida, dará à luz um filho de Issilda. Malam pratica justiça e mata o
curandeiro. O conselho dos anciãos reúne-se para ouvir Malam e praticar
justiça. Fausto Duarte é primoroso na descrição do choque de
civilizações. Abdulai propõe comprar Auá, Malam aceita e deixa
Sare-Sincham. As tradições sobrepunham-se a uma grande paixão. Malam vai
trabalhar em Dakar e à noite tem saudades de Auá. A velha cultura
conseguira vencer os sentimentos transbordantes de Malam, o criado dos
brancos.
A despeito de uma escrita laboriosa e quase laboratorial, o escritor
Fausto Duarte descreveu a Guiné com um olhar novo de grande desvelo pela
paisagem, com rigor no registo das tradições, destacando os contrastes
de uma Guiné onde a aculturação se transformou num problema maior da
civilização. É uma pequena jóia literária e merecia ser reeditada tanto
em Portugal como na Guiné-Bissau. |
"Os primeiros escritos no território guineense foram
produzidos por escritores estabelecidos ou que viveram muitos anos na
Guiné, muitos deles de origem cabo-verdiana. A maior parte das suas
obras têm um caracter histórico, com a excepção da de Fausto Duarte
(1903-1955), que se destacou como romancista, Juvenal Cabral e Fernando
Pais Figueiredo, ambos ensaístas, Maria Archer, poetisa do exotismo,
Fernanda de Castro, cuja obra dá conta das transformações sociais da
colónia na época e João Augusto Silva, que recebeu o primeiro prémio de
literatura colonial. Porém a maior parte destes autores caracterizam-se
por uma abordagem paternalista e/ou próxima do discurso colonial.
"Durante este período apenas uma figura guineense se destaca : o Cónego
Marcelino Marques de Barros que deixou trabalhos no domínio da
etnografia, nomeadamente 'A literatura dos negros' e uma colaboração com
carácter literário dispersa em obras diversas. A ele se deve a recolha e
a tradução de contos e canções guineenses em diferentes publicações e
numa obra editada em Lisboa em 1900, intitulada 'Contos, Canções e
Parábolas'. " (...)
Postado por Luís Graça |