LUCINDA LOUREIRO
Estreou-se em Viseu em 1977 com o Grupo de Teatro A Centelha. Integrou o elenco do Teatro Experimental do Porto durante dois anos. Em Lisboa trabalhou com: Alberto Lopes, Filipe La Féria, São José Lapa, Fernanda Lapa, Ricardo Marquez, Rogério de Carvalho, Jean Jourdheuil, Jorge Fraga , Lúcia Sigalho, Solveig Nordlund, Isabel Medina, Álvaro Correia, João Mota, Carlos Pimenta, Maria Emília Correia, Cucha Carvalheiro, Fernando Gomes, Maria de Céu Guerra, João Didelet. Participou ainda em telenovelas e séries televisivas. No cinema participou em produções portuguesas e estrangeiras nomeadamente com: Luís Filipe Rocha,Franco Zeffirelli,Fabrizio Costa, Eric Barbier, Jorge Silva Melo, Pedro Caldas, António Ferreira, João Cayatte, São José Correia, João Paulo Simões, Joel Brandão, Lav Diaz, João Maia e Maria João Luís. Paralelamente ao seu percurso enquanto actriz tem desenvolvido o seu trabalho na encenação e direcção de actores.
Criadora de Ah! Não Conhecia!, leituras encenadas de autoria feminina. Em 2020 editou o primeiro livro de poesia Grita-Ria, amor, desamor e dor de corno, pela Chiado Publishers.
GRITO 3 – FRUSTRAÇÃO
Não consigo escrever.
Só frustração… frustração.
Nem inspiração.
Nem amor.
Vazio.
Hoje uma parte de mim está feliz?! E então?
É só uma parte,
Todas as outras estão partidas.
Bocados de mim, esboroados.
E na espuma cinza dos dias
Olho para a minha infância
E vejo como fui feliz outrora.
Jardim da minha infância descuidada
Jardim de correrias/gazela solta
Pernas e joelhos arranhados.
Regos abertos à força da enxada
De roupa branca lavada por mãos calejadas. Saudades de outrora.
Mas mais saudades d’Agora.
Olho e vejo-me no espelho
Alice no tempo da inocência.
E que pressa tinha em chegar
Mesmo não sabendo onde.
Ei! desejos manifestados
Em bailes de garagem
E beijos inocentes.
Onde dançam agora?
Ei! sensações quentes
Ei! arrepios sentidos
Em toques leves
E mãos suadas.
Onde pairam agora?
Ei! rostos afogueados
Ei! suspiros trocados
Em gavetos de rua.
Onde andam agora?
Ei! Coelho Chapeleiro!
Que porta abro agora?
Acordo do nada.
Continuo como sempre, imutável. Sucessão de dias,
Nasce e põe-se o Sol.
Não consigo escrever.
O rosto crispado.
Os dentes cerrados.
A ruga na testa funda. Funda. Venha daí, Senhora Alegria! Não fique para trás.
Venha daí!
Um, dois, três,
Um, dois, três,
A valsa da felicidade já começou! Um, dois, três,
Um, dois, três.
Rodopie!
Isso! Vá!
Não quero mais. Não quero mais. Amanhã muda a estação. Eu em inverno e a vida no verão. Vou dormir.
Não sei se volto.
Dói, dói cá dentro o coração. Frustração.
Nem inspiração.
Nem amor.
Vazio.
GRITO 4 – BASTA
Odeio que me peçam mais do que posso dar. Odeio que me queiram mãe
De filhos que não posso amamentar. Não me obriguem a ser
Animal carnívoro da felicidade alheia. Não se ponham ao sabor da minha fúria. Mas que sina!
Esta educação católica,
Esta constante agonia.
Tenho de saltar, fugir, dizer não.
Não me peçam para ser Banco Solidário. Não me façam vossa agiota sem juros a prazo. Não me toquem na corda da caridade. Não sei negar uma mão estendida.
Façam revoluções! Indignem-se!
Ponham bombas de mau cheiro
No Parlamento!
Basta, basta!
Mas que mania
Deixarem para os outros
A solução das vossas vidas.
Vão para a praia e não votem.
Vão para os centros comercias,
Passear e olhar prós saldos
Que não podem pagar.
Fiquem a ver os big brothers, na televisão. Promovam bimbos a famosos.
Continuem a sonhar castelos no ar.
A rezar terços com vista a milagres de azinheira. Merda! Merda para tudo isto!
Não me deem receitas caseiras e chá de erva–cidreira. Não me digam palavras de conforto que cheiram a bafio. Deixem-me chorar no vosso ombro e encharcar-vos a roupa. Apertem-me nos vossos braços fortes,
Nos vossos corpos quentes.
Tirem-me o frio que sinto nas mãos e nos lábios Dos beijos dados à morte.
Não me digam que tudo passa porque não passa. Só passa o tempo.
E o tempo atenua a memória como se fosse uma fotografia Desbotada.
Este é o meu calendário da tristeza, merda.
Dá-me tu a mão poeta do desassossego.
Cala os tambores da guerra, o som constante das bombas, Jazem mortos e arrefecem os meninos nos becos de Gaza Esgaça-se o céu em rasgões de luz.
Troam as vozes dos deuses
Zangados com tanta podridão.
Dormem corpos abandonados na beira da estrada, Sufocam seres marinhos com os corpos plastificados. Troveja!?
Rezam a Santa Bárbara velhos abandonados e sozinhos. Despedem-se filhos de mães chorosas e de peitos caídos. – Que voltes cedo e bem! –
Matam-se animais em arenas vestidas de trajes de luzes. Suicidam-se jovens esgotados de tanta frustração.
Venham trovoadas renovadoras e chuvas torrenciais. Venham rios de água límpida e brotem nas fontes, abundantes. Ei! Ei! Maomé! Ei! Abraão!
Parem a mão que mata por ganância.
Cega pela raiva, sequiosa de vinganças ancestrais! E tanta gente nas ruas da cidade indiferentes a tudo isto! Gente do mundo, de máquinas fotográficas na mão. Clique, clique, clique, fixam imagens ávidos de sardinhas Em lata.
How beautiful Portugal is! So nice, so nice!
Cheguem-se para lá.
Não me macem com essa orgia descontrolada de tudo reter,
Na memória digital dos vossos iphones!
Merda!
Pára-me de repente a vontade de gritar.
Fico inerte. Só o pensamento se agita.
Merda para tudo isto!
GRITO 5 – SILÊNCIO
Shsssssss… Shsssss… Shssss…
Deixem-me ouvir o sentir inicial.
Preciso de mudar de pele,
Preciso de agarrar emoções novas.
Não quero ficar em ferida aberta.
Quero ficar nua, despida das memórias antigas, Guardadas em gavetões, em armários Com portas de espelho ao meio,
Cheios de restos de linhas e botões.
Quero arrancar as tachas que seguram O forro de papel, dos tampos do fundo. Shsssss… Shssss…
Preciso de me sentir poeta!
Dedicar-me odes triunfais!
Quero atravessar continentes,
Navegar por mares atlânticos, pacíficos e índicos. Quero conhecer rostos perfurados,
Corpos tatuados por tintas e estiletes afiados. Quero sentir novos cheiros e sabores. Viajar! Ser pássaro e voar.
Partir! Ser borboleta e ir.
Esquecer! Ser livre e voltar.
Rasgar! Ser céu e amanhecer.
E depois, sim, sentar-me numa cadeira E sentir o pulsar plácido e lânguido
Da brisa que passa ao de leve
Por baixo das japoneiras.
GRITO 10 – ROCK AND ROLL
Hey! Babe, take a walk on the wild side. She said. Tu… turu, turutu, turu… Encontrei-te numa esquina da cidade. Ó pá mostra-me o caminho,
O caminho da felicidade.
Ó pá deixa-me estar,
Deixa-me estar
Nos teus braços aninhada.
Encontra o amor no fundo
Do copo e leva-me pra casa.
Pode ser no teu quarto, babe.
Pode ser tudo o que quiseres.
Menos no vão de escada.
Ó pá deixa-me estar,
Deixa-me estar
Nos teus braços aninhada.
Rodopio, pulo, danço na pista quadrada, Saturday night fever,
Iluminada por uma bola de espelhos. I can get no satisfaction …
And I try… And I try…
A roupa colada da transpiração, A cabeça leve, leve, leve,
Sorrisos de gin com limão.
Encosta-te mais e promete-me a lua. Gosto dos teus lábios carnudos, Do teu toque afoito nas minhas coxas. I like the way you walk…
I like the way you talk…
My Susie Q… I like you…
Perco-me nas ruelas da paixão.
Porra! No vão de escada entras em mim! Larga a cocaína, larga o cachimbo. Larga-me! Sim, aqui no meio da estrada. Não quero, babe, não quero esta viagem. Vou voltar, vou voltar,
E fica wonderful, babe.
Say good-bye, girl, say good-bye. Take a walk on the Sweet Side. Say good-bye, girl, say good-bye. Não sei o teu nome.
A lua cheia ilumina-me o passo.
GRITO 18 – LUCINDARELA
Ando aos ziguezagues como um ciclista bêbedo. Uns dias sim, outros dias não.
Ponho-me a gritar
Sem filtros, sem medo, a plenos pulmões.
Fada Madrinhaaaa, Fada Madrinhaaaaaa ….
Pum! Catrapum! Pum! Pum!
Também tu?!
Vens aos trambolhões?!
– Passa pra cá a abóbora –
Plim!
Nãoooo! Não é ao baile do príncipe que quero ir. Não quero Bairros Altos, encontros fortuitos.
Deixa lá o vestido e os sapatinhos de cristal.
As ruas são íngremes. E os saltos ficam presos nas calçadas. Já não há calceteiros de mãos mágicas,
Fazendo desenhos com precisão.
Curvas e losangos, caravelas a preto e branco, Só perceptíveis do alto das sete colinas.
Veste-me uma saia e uma blusa simples.
Calça-me umas sabrinas.
Hã? Está bem, prateadas.
Desenha-me um sorriso. Perene.
O quê? Não, a vermelho não.
Nunca gostei de bonecas.
Roía-lhes as mãos e os pés
E cortava-lhes os cabelos.
Podia chamar-lhes, Bela
Luísa, ou Ana.
A todas dei o mesmo nome: Rita.
Também roí as minhas unhas
Também cortei os meus cabelos
Nunca quis ser uma boneca.
E muito menos de porcelana.
Nunca gostei de panelinhas e colherinhas. Deixa-me numa carruagem forrada a felicidade. Arranca-me do peito este camafeu,
Esta jóia de família, esta maçã podre. Atira-me confetti de gargalhadas.
Atira-me serpentinas de romance e poesia. Plim!
Fada Madriiinha … espera, espera!
Merda! Outra vez?
Outra vez a lavar a escada.
A limpar o sémen de sexos embriagados.
GRITO 23 – VAMPIRA
Sou Vampira, alimento-me de palavras,
Alimento-me e refugio-me nelas.
Sou, através dos poetas, amante.
Sou o que não consigo ser de outra maneira. Transformo-me em rainha reinante. Choro lágrimas minhas sem o saberem. Mato ditadores com venenos falsos. Seduzo plateias, escondo medos e ciúmes, Liberto risos, recebo palmas e elogios, Faço pensar e crio memórias inesquecíveis. Tenho fome e engordo a cada dia que passa. Ficarei obesa de prosa e poesia. Beberei. Beberei ânforas de teatro clássico e moderno. Sou caótica? Sim. Serei feliz? Talvez! Não sei porque escrevo isto!
GRITO 26 – CINCO DA MANHÃ com António Gedeão
Acorda cansada.
Veste a roupa, apressada.
Beija os filhos, angustiada.
Deixa o almoço, na bancada.
Apanha o barco, em Almada.
Fecha os olhos, na madrugada.
Salta o cacilheiro de uma assentada.
Corre pró metro, já atrasada.
Entra no banco, lava a escada.
Sai do banco, vai ralada.
Chega ao café, não come nada.
Vai trabalhar, esgotada.
Passa a ferro,
Lava a loiça
Limpa a merda da criançada.
Volta a casa, derreada.
Olha à volta, desanimada.
Vê a carteira, esvaziada.
Vai dormir, esfomeada.
Sonha, ainda acordada.
O Povo unido jamais será vencido.
«Vai Luísa! Sobe que sobe, sobe, a calçada.»
Vai João! Desce que desce, desce, a estrada.
Vai Alice! Grita que grita duma assentada.
Cravo na mão com o camarada.