Gledson Sousa e a magia

 

 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov


Só quero sair
Desse país [e ir para…]
Algum lugar
Que não se envergonhe da beleza
.

Gledson Sousa

Gledson Sousa partilha, com Claudio Willer e tantos outros poetas, brasileiros e de outras partes do mundo, uma vocação para o que a vida apresenta além da realidade factual. O título do livro, A mimésis mágica, já por si é eloquente, uma vez que traz à baila um tema complexo, em debate em vários setores, desde o religioso ao filosófico, desde o artístico ao antropológico. Na realidade, o centro dinamizador do livro são as tribos índias, mas em torno perfila-se uma multiplicidade de cultos e ritos de outras gentes e de outras partes do mundo. A imitação pode ser um ato de magia, e na arte, diz Georg Lukács, o princípio antropomorfizador, próprio da formação artística, é precisamente o que tem de comum a arte e a magia. Mas pode verificar-se o contrário, que é magia também: o ser humano é que se transforma em animal e, por isso, nos ritos indígenas, os bailarinos revestem-se de indumentária alusiva ao animal protetor, sendo comum, nas várias partes do mundo, a máscara com cornos, a invocar o touro ou o boi. Porém a magia não se esgota no zoomorfismo, também arrasta até si a vegetação e a mineralogia, num todo natural em que o ser humano comunga e no qual se confunde.

Verdade se diga, entretanto, que a mimese mágica não precisa de ser exercida sobre algo exterior à poesia. Será que Gledson acredita que a poesia é mimese, cópia do mundo mágico, tal como outros pensaram ou propuseram que a arte fosse imitação do real? Creio que o poeta pretende com o título, que é uma síntese de arte poética, imitar algo que lhe aconteceu interiormente. Um estado de alma, uma fenda no ser que abriu para um universo inesperado, em resultado de experiências com uma poção mágica oriunda das tribos índias. Tornou-se um xamã depois disso, e o fogo, um fogo real e um fogo metafórico, atingiu em cheio o poeta.

Claudio Willer escreve, em prefácio, que este e outros livros de Gledson Sousa “permitem situá-lo como representante do melhor da poesia contemporânea brasileira, condição ainda insuficientemente notória por sua discrição, sua característica de não ser um perseguidor de glórias”. Concordo em absoluto. Basta ver que a pesquisa no Google poucos resultados apresenta, além dos textos com que Gledson Sousa tem honrado o Triplov.

Em Agosto estivemos em amena conversa em São Paulo, no café Cristallo, no átrio do centro comercial Higienópolis. Percebi que o Gledson estava ainda traumatizado com um acidente doméstico em que iam perdendo a vida, ele e a esposa: um incêndio de que não deram conta. Mostrou as cicatrizes no braço, queimaduras graves, extensas. E eu acho que comentei: isso é o teu fogo interior, foste tu que pegaste fogo à casa. Neste universo poético, da alta metáfora, a de Gledson, tudo é possível, e quando dizemos estas coisas é porque entrámos no espírito do poema. Um excelente livro, diga-se, com um poema final de apoteose, “Kalíngua”, um hino a Kali, a deusa hindu da noite e da destruição. “Kalíngua” é um termo que junta Kali ao know-how, o modo de fazer da língua, e este fazer poético consiste, de modo geral, num discurso torrencial (poema longo, sem respiração de estrofes, uno e ligado, ocupa 11 páginas) entrecortado por ascensões ao alto lirismo e quedas no abismo da reprovação social e política. Entretanto, se Kali é uma divindade negra asiática, outras, igualmente destruidoras, a acompanham, nascidas no território antropológico índio, a exemplo de Tupã, deus do trovão entre os tupi-guarani.

Em “Kalíngua” não encontramos só miscigenação de deuses e culturas, a língua é sinal que aponta igualmente a mistura de idiomas. Mais evidente para nós, o espanhol, aqui e ali a semear o poema com uma “cola”, um “caliente”, uma “culebra” e, muito menos evidente, o sânscrito “yoni”: Tua coxas têm / A cor dos nenúfares /Tua yoni a claridade /Que se esconde atrás de um buraco negro […]. De notar o erotismo que trespassa os versos, nem sempre ato de prazer, por vezes a referência ao sexo vem em defesa das vítimas absolutamente contemporâneas, já que o Brasil é o país onde mais se mata por questões de diferença sexual, sobretudo trans-sexuais. Na página 70, quase no final do poema, lemos um segmento que toca precisamente na questão e prognostica um futuro de liberdade sexual e até de sexos mistos:

[…]
Da serpente em seu ovo de vidro
Das crianças que emergem
Do ventre da terra
Depois de resistirem a toda treva
Das sagas que os poetas recomeçam
A trama de luz que engendra
O que os bardos cantam
Novos barcos cruzarão mares leitosos
Em cima, em baixo
Mulheres e homens criarão asas
Terão suaves línguas bífidas
Amarão sem medo
Cada centímetro de pele, cada gesto
Haverá sexos mistos, novas formas
De o humano expressar sua essência
Andróginos, hermafroditas
Homens-planta
Mulheres-hematitas
Anjos de três sexos
Daemons sem sexo algum […]

O poema “Kalíngua” é belíssimo, reclama leitura integral, a cada verso deparamos ora com metáforas vibrantes ora com ideias de entontecer, porém só transcrevemos dele a abertura:

Kalíngua

Há uma ira derviche na dança da lua
Que de costas ao sol mastiga crânios, bêbada
Pisoteando túmulos, excrementos
Ela mistura os elementos, dissolve as forças
Fraca e forte, traz o abismo ao palco
Julgamento da flácida mentira que envolve
As armas, os barões, os banqueiros
Segura a foice, corta entre os dentes
A carne podre dos presidentes, pastores, homens santos
Que com uma mão afagam, com a outra estrupam
O verbo, o sagrado, o feminino
[…]

Agrada ao português a mistura de Os Lusíadas com o poema brasileiro, com ela volto ao café Cristallo, em São Paulo, para retomar o fio da conversa com o Gledson, que começou pela magia, por uma poção alucinogénea manipulada pelos índios, chamada Daime ou Ayahuasca, tomada por ele. Leio, na Internet, no site do Hospital Santa Mônica que

O chá de ayahuasca, também conhecido como Santo Daime, é uma bebida feita a partir da infusão de duas plantas amazônicas: o cipó-jagube e o arbusto-chacrona. A palavra ayahuasca tem origem indígena e pode ser traduzida como “vinho dos mortos”. O chá é utilizado há milênios por índios da América do Sul em rituais de extrema religiosidade, e somente no século passado surgiram seitas não indígenas que fazem o uso da bebida. Atualmente, cultos religiosos como o Santo Daime, Céu de Maria, Porta do Sol e União do Vegetal têm o consumo da bebida como ritual — hábito que é permitido no Brasil pelo Conselho Nacional de Políticas Sobre Droga (CONAD).

Gledson Sousa abre as portas à cultura indígena, experimentou a poção mágica, que lhe permitiu, na minha opinião, intensificar o seu próprio fogo interior, a sua inspiração poética, factos transferidos para os poemas. O livro revela simpatia pelas culturas indígenas e movimentos indigenistas, o que aliás fica patente na dedicatória de um poema a Betty Mindlin, responsável pela obra coletiva «Couro dos espíritos – Namoro, pagés e cura entre os índios Gavião-Ikolen de Rondônia», que a divulgação da editora informa ser «um mergulho no xamanismo e em outras tradições de um povo indígena brasileiro, meio século depois do primeiro contacto». Quanto ao couro dos espíritos que dá título ao livro, remete para a dança e música dos rituais indígenas. No final do artigo, partilho um vídeo que nos permite conhecer um pouco deles. Transcrevo o poema “Couro dos Espíritos” na íntegra, se bem que outros sejam mais expansivos, caso do fabuloso hino a Kali, “Kalíngua”, de que já vimos fragmentos. O poema deixa entender que Gledson opera uma fusão de culturas mágicas, orientais e dos índios da América do Sul, e não exclusivamente brasílicos. Deparamos, por exemplo, com Milarepa, mágico, poeta e mestre do budismo tibetano do século XII, santo dos mais venerados. De notar a mimese mágica na transmutação do sujeito poético em pedra, em pétala, em espaço, em orquídea, etc., o inverso do princípio da magia invocado por Lukás, que seria o de antropomorfizar, o de tornar humano o espaço, a orquídea, a pedra, etc..

Couro dos Espíritos – Aprendizagem

Para Bete Mindlin

Me imagino pedra
Na verdade
Trago o sol nas mãos

Amparo por um segundo
A bola de fogo
Antes de ser pétala
Sou espaço
Depois
Orquídea num vaso
Dançando em silêncio
A luz
A meta é ser onça
Lontra ou puma, tanto
Onda quanto semente
Não há forma
Nada que limite
Já dizia Milarepa percutindo o vazio
Atravessando a rocha
Como um grão de poeira
Cruza o vento
Em linha reta
O que permanece é o que persiste
Mantra interior
Cantando em tramas paralelas
Do universo
Couro dos espíritos.


No YouTube:
Wãnkõ Kaçaueré Vídeo Clip Couro dos Espíritos

 

A MIMÉSIS MÁGICA
Gledson Sousa
São Paulo, Córrego, 2022

sas e até oposto a ambas. Como mais tarde veremos, o processo de separação da arte em relação a esses dois exemplos é extraordinariamente lento, contraditório e cheio de crises. Mais o que importa agora não é tanto este princípio quanto a tendência à evocação, nascida, como também se mostrou, no terreno da vida cotidiana. Esta tendência é um fator decisivo como a mimese magica que da inicial mimese artística, não separa ainda praticamente da outra nesta etapa.

György Lukács, Grande Estética. In: 

https://www.marxists.org/portugues/lukacs/1962/grande/05-2.htm