JÚLIO CONRADO
Um médico de diáspora que triunfou no continente europeu como homem de negócios – O “império” de laboratórios de análises clínicas é a face mais visível dessa extraordinária presença no mercado dos chamados (pelos profissionais do ramo) exames auxiliares de diagnóstico, dá por nome Germano de Sousa, é ilhéu natural de São Miguel, foi Bastonário da Ordem dos Médicos e é um escritor/historiador dos melhores que temos no que diz respeito à época das descobertas. O que do estado da Medicina portuguesa escreveu no livro sobre o assunto é tão palpitante que o leitor mergulha com prazer e curiosidade no que foi a Medicina Portuguesa durante a Expansão.
O trabalho de investigação a que Germano de Sousa meteu ombros é um exercício de reconstituição das nomenclaturas montadas para garantirem os cuidados de saúde devidos a tripulações e civis como parte de um inventário histórico da evolução dos mecanismos de combate a epidemias que grassavam pelo país, quantas vezes importadas. Cresceram em número os hospitais, sanatórios e leprosarias, por um lado, e, por outro, a urgência em enfrentar hecatombes, como o terramoto que destruiu Lisboa em 1755, fenómeno telúrico que pôs à prova os homens e as mulheres de fibra, sobreviventes, que tendo o marquês de Pombal como líder, ajudaram à reconstrução física das zonas sinistradas. Entretanto, como reagia a Medicina ante os desafios colocados pela urgência em cobrir as necessidades de acidentados cada vez em maior número? Espalhando na cidade pólos de saúde para acudir a quem deles precisasse.
Antes do terramoto, sempre relacionado com a epopeia marítima, Germano de Sousa faz um rastreio sócio-económico da sociedade portuguesa recorrendo, inclusive, à literatura, e é assim que o Teatro de Gil Vicente Farsa dos Físicos ou Auto dos Físicos, a epopeia camoneana e o apócrifo A Arte de Furtar permitem ao médico nascido nos Açores iniciar a sua indagação pelos esquemas de corrupção que se criavam em torno dos preparativos das viagens da expansão, desmontando manhas e patranhas que visavam a obtenção de lugares privilegiados na empresa de dar novos mundos ao mundo ou pura e simplesmente faziam trinta por uma linha, à custa de empenhos, tendo em vista não se afastarem do torrão natal e aí exporem-se às vicissitudes de Saúde que apoquentavam o reino uma vez que a Viagem oceânica mobilizava a nata dos recursos de tratamento e cura, pouco restando para os ficantes.
O que Germano de Sousa também faz neste seu livro é tornarem-se-nos familiares figuras de banda desenhada, objecto de reconstituições teatrais, operáticas ou fílmicas, de fantoches, como as do barbeiro-sangrador, boticários, cirurgiões e torná-las seres vivos com diversas funções ao longo da Viagem, como sejam as de combateren os males exóticos ainda não escrutinados pela Medicina convencional e malbaratados em representações por vezes mais ligadas a tragédias que nem as coitas de amor ou os resultados de catástrofes logravam ultrapassar em intensidade e surpresa posto que só o retorno da Viagem permitiria o estudo e preparo de novos medicamentos para uso terapêutico generalizado.
Nesse enlace de experiências que a itinerância portuguesa no mundo provocou a disseminação dos males venéreos, designadamente a síflis, não poderiam estar ausentes das preocupações quer do ocupante, quer dos povos ocupados e Germano de Sousa não poupa páginas nem explicações do que foi o combate científico ao aterrorisante alastrar da doença aos novos mundos dados ao mundo pelos portugueses, muito tendo demorado a Ciência a encontrar a respectiva cura. A vocação pedagógica de GS leva-o a descrever com grande finura estilística e recorrendo a espólio documental insuspeito que vai da construção dos novos hospitais por força de catástrofes como o terramoto de 1755, a gestão daqueles pelos jesuítas, a disseminação europeia do “mal francês”, o encerramento e expulsão de hospitais e portugueses do Japão, a elaboração da nomenclatura de um hospital de grande reputação como viria a ser o de Goa, as severas medidas disciplinares movidas pelo Santo Ofício aos médicos cristão-novos não respeitando sequer o cadáver de Garcia da Orta para o queimarem depois da atitude da irmã, que o denunciou (de nada lhe valendo a atitude, posto que acabou queimada à mesma) como autor de práticas judaisantes não obstante a condição de católico de GS. História da Medicina Portuguesa durante a Expansão é uma preciosidade bibliográfica, intemporável, redigida com grande apuro de vocabulário acessível para que chegue a todas as camadas de leitores como uma lição de história pátria iluminadora, verdadeira, com o selo de garantia de um médico-escritor que não se fica pela síntese da fábula histórica e alcança muito, mas muito mais longe, do que o cronista da lenda incumbido da encomenda paga pelo orçamento régio com a condição de disfarçar a coisa, acrescentando ou omitindo coisas.
Este apontamento não tem outra finalidade senão a de divulgar a qualidade de um livro que, longe de ser um compêndio ou um manual, é, em rigor, um historial paralelo que acrescenta saber e novidade à história oficial da Medicina portuguesa ao cobrir um vasto campo de experiências correlacionáveis com os enormes encargos que as descobertas provocaram no erário público, não obstante as contrapartidas angariadas.
E assim, passe o desassombro, serei eu quem agora abrevia o discurso para aguçar o apetite do eventual leitor de Germano de Sousa, recomendando um livro que pode ser lido como um romance, mas um daqueles cuja leitura não se quer interrompida por um instante que seja a não ser por causa de um qualquer impertinente problema de saúde.
Nota:
Germano de Sousa, médico e empresário, n. 1943 na Ilha de São Miguel, Açores
Título: História da Medicina Portuguesa durante a Expansão
Editor: Temas & Debates, 2013
As suas origem e carreira constam do volume A Condição de Ilhéu
Edição da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2017