ANTÍMIO DAMIÃO
Autor / Desenhador Gráfico e Ilustrador / Estudante de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa
O Homem e a Mulher, no labirinto da vida.
Ele:
“Maldita angústia, a da vida.”
A Mulher, tal como o Homem, procura sair dali sem no entanto o conseguir. Por sua vez, contém os nervos e diz:
“Metes-me dó.”
“Como assim?”, pergunta ele.
“Não suporto o teu pessimismo”, diz ela.
“Não me fiz entender”, torna ele.
“Pelo contrário, entendi-te perfeitamente”, contesta ela.
“Julgas-me mal”, volta ele.
Ela larga-lhe a mão; ele pede desculpa e diz:
“Na verdade, não somos melhores que os outros. Uns têm o que nos falta, outros não; outros são o que são e outros uma amostra do que podem ou querem ser; outros, ainda, acham-se o que nunca foram, mas todos, em geral, não são o que pensam ser, pois nada sabem de si, dos outros e de coisa alguma, uma vez que são apenas em determinada situação e em função de outros.”
“Palavras”, desdenha ela.
“Deveras?”, pergunta ele, de sobrolho franzido.
“Seria melhor se pensasses em nós e deixasses os outros em paz. Sinceramente, tenho a sensação de que os outros não te interessam e só te preocupas com eles para te convenceres a ti próprio de que te preocupas realmente. No fundo, não passas de um egoísta.”
“Enganas-te”, torna ele. “Porque é que tudo o que nos diz respeito tem decidida e exclusivamente de ter o teu aval?”
“Desconversas”, contesta ela.
Ele, de indicador em riste, arrazoa:
“Não tornes minha a tua frustração. Em primeiro lugar, não sou culpado de coisa nenhuma, quanto mais da tua dor, em segundo, tanto eu como tu concordámos em vir aqui, logo, não compliques o que é evidente.”
“Só pensas em ti”, diz ela. “Escolhi estar a teu lado e aqui estamos, perdidos. Preferia ter vindo com alguém determinado, que conhecesse bem este labirinto. Os caminhos, aqui, levam a bifurcações e trifurcações a perder de vista. De resto, condenamo-nos a ficar aqui para sempre.”
“Prometo-te que encontrarei a saída”, diz ele.
“Promessas”, escarnece ela. “Já não acredito nas tuas palavras. Além disso, não sei se é a lógica a orientar-te ou a superstição. Custa a crer que não entendas nada do que te digo.”
“Entristeces-me”, afirma ele.
“Que queres dizer com isso?”, pergunta ela, desconfiada.
“Queres mesmo saber?”, aventa ele.
Ela anui veementemente com a cabeça.
“Pois bem”, explica ele, “foste tu quem escolheu vir a este lugar. Resolvi acompanhar-te, mas, agora, olha para nós: sozinhos entre paredes mortas, no meio de nenhures. As nossas vidas caminham juntas à procura do mesmo fim.”
Ela enfurece-se e, insuflando as bochechas, profere:
“Não há limite para as tuas mentiras.”
“Mentiras?!”, exclama ele. “Acaso tens noção do que dizes?”
“Recuso-me a continuar”, diz ela, virando as costas e cruzando os braços.
“Porquê?”, pergunta ele.
“Porque não sabes para onde vais”, afirma ela.
“Tens razão”, aquiesce ele.
O Homem detém-se a olhá-la e, perante a indiferença da Mulher, parte em silêncio.
“Vá, vai-te embora!”, grita ela. “Encontrarei a saída por mim mesma!”
“Ainda bem”, diz ele, de costas para ela. ”Até lá, boa sorte.”
A Mulher olha-o à medida que ele se distancia. O longo cabelo dela enfia-se na boca.
De repente, um coro grego murmura:
“Vais deixá-lo ir?”
Ela hesita; as mãos tremem-lhe; os seios secam-se-lhe tal qual a pele.
“Vais deixá-lo ir?”, repete o coro.
O Homem vira-se lá mais adiante e acena pela última vez. Depois continua, sem olhar para trás. Ela vê-o a ir-se e impacienta-se. Assustada, indaga em redor e balbucia algo incompreensível. Tem medo de si mesma e da solidão do labirinto. Ele curva à direita e some-se para lá da parede. Ela sente o labirinto a asfixiá-la como se as paredes se fechassem e lhe cobrissem o corpo elegante e frágil.
“Definho”, murmura ela.
O coro insiste:
“Vais deixá-lo ir?”
Lá em cima, bandos de corvos e abutres descrevem círculos no céu azul-alaranjado.
“Ele foi-se”, proclama o coro, nos miasmas do tempo.
“Eu sei”, diz ela, refém do seu próprio frenesi e de olhar perdido na lonjura.
Anoitece.
A Mulher acomoda-se na laje fria do chão, deita-se de lado e deixa pender a cabeça sobre as mãos enquanto vê a sua sombra na parede. Atrás dela está um abajur aceso, de pé alto. O medo é agora ansiedade.
“Que é feito dele?”, pergunta a Mulher. “Para onde terá ido?”
O coro (suave, suavemente):
“Não te preocupes. Tudo tem um propósito.”
“É essa a verdade?”
“Sim”, confirma o coro.
A Mulher soergue-se e, acometida de uma sábia revelação, deduz:
“Embora a vida seja injusta e cruel, não concebo maior felicidade que o amor daquele Homem.”
“Pobre Mulher”, volve o coro. “Se pretendes confirmar essa ingenuidade, será melhor que te apresses. Se julgas deter a verdade e o dom da palavra, corre atrás dele. Não sepultes o amor sob o interstício leso da língua e solta as palavras na infinitude do mundo como um eco. Vá, quebra o silêncio do labirinto com as preces do teu coração.”
A Mulher abre a boca mas o vento embarga-lhe a voz.
“Ele foi-se”, pensa ela.
(No seu rosto, o desespero.)
O coro incita-a, sem perceber que o vento atravessa a gorja da Mulher como uma faca afiada.
“Que fazes?”, pergunta o coro. “Plasma-te na errância e corre na peugada do eros que se perde na escuridão.”
“Ele foi-se”, volta ela a pensar, aterrada.
“Não esperes mais”, sussurra o coro. “Vai ter com ele antes que seja tarde.”
Ela obedece. O seu corpo esguio escorre no leito negro da noite e no rio escuro das horas. As suas mãos procuram o eros como um rio de gestos aflitos. O seu coração rompe o destino que tudo erode. Entre a constrição das paredes, ela corre sem saber para onde.
“Onde estou?”, pergunta ela depois de muito correr.
(O coro nada diz.)
“Onde estou?”, reinquire. “Que dia é hoje? Que noite é esta que veio com a aragem e parece não terminar?”
Às tantas, dobra a quina e entrevê, ao longe, num amplo corredor, a figura do amado. Encorajada, corre para ele mas o vulto dobra à esquerda e some-se para lá de uma parede. Não a viu, pensa ela. Ouvem-se passos do lado de lá da parede. Ela segue o som, obcecada com o reencontro crido, com a solução da vida toda, com a recuperação do amado e a felicidade que virá. A mão dela toca o ombro do amante. Um velho de nariz achatado, testa bexigosa e pele flácida vira-se e olha para ela, incomodado com o susto. Os cabelos dela tornam-se, então, brancos e ralos como linhas de giz num quadro negro. Envelhecem. O Homem encolhe os ombros. O seu sexo pênsil espelha os seios dela, descaídos como figos secos e abatidos pelo peso dos anos e da gravidade. As mãos de ambos procuram-se. Nos rostos reside a convicção triste do tempo desperdiçado, de um sem o outro.
“Maldita angústia, a do tempo”, confessa ele.
“Abraça-me”, pede ela.
“Desfazemo-nos em pó”, diz ele.
“Não faz mal”, afiança ela. “Vamo-nos no vento.”
O Homem anui com a cabeça e o vento sopra, incessante. As paredes cobrem-se de um pó fino e abundante. Pouco a pouco, o labirinto é soterrado por completo e mais não fica que um deserto de areia estendido no horizonte. Depois, num ápice de milhões de anos, uma montanha com a forma de dois amantes abraçados rasga as entranhas da terra e, sublevando-se à luz de muitas luas, ali se sedimenta para sempre.