O GRANDE SUSTO

Foi há quarenta anos que o mármore pregou o grande susto ao povo de Ervideira, então um pequeno casario nos arredores de Ponte de Sor.

Para quem nada sabe de geologia e queira perceber o que aconteceu é necessário começar por explicar de que são feitos os terrenos da região e o comportamento de algumas rochas, em particular, o do mármore. Comecemos então por dizer que esta região do Centro-Sul do país a que corresponde o Ribatejo e parte noroeste do Alto Alentejo, conhecida entre os geólogos e geógrafos por Bacia do Tejo, corresponde a uma vasta área que se afundou, do mesmo modo que o chão se abate sob os nossos pés, num sítio de menor solidez do terreno. Para o leitor mais curioso destes temas da Natureza, diga-se que isto aconteceu há uns 35 milhões de anos, ainda os nossos avós mais primitivos estavam longe de aparecer à face do Planeta. Postas as coisas neste pé, não custa imaginar que o fundo dessa grande bacia seja formado pelas mesmas rochas que podemos ver nas regiões à sua volta e que são, entre outras, os granitos do Crato, os xistos de Vendas Novas e de Arraiolos, os mármores de Abrantes, de Sousel e do Cano, todos eles continuação dos, bem mais conhecidos, de Vila Viçosa, Extremoz, Borba e Bencatel.

Ora, como mandam as leis da natureza, uma tão grande depressão no centro do território começou a encher-se das areias e outros detritos que rios e ribeiros, à sua volta, para aí foram carreando, ao longo de milhões de anos, até a cobrirem por completo. Acima desta cobertura sedimentar sobressaem alguns relevos que, de tão altaneiros, não foram totalmente afogados. O cabeços rochosos de Montargil, Galveias e São Fernando, entre outros menos salientes, são exemplos destas ilhas emergentes neste mar de sedimentos pouco ou nada consolidados.

Ao atravessar esses terrenos, a ribeira de Sor, no seu trabalho normal de erosão, cavou um sulco com mais de 150 m de profundidade, estando, nos tempos que correm, a roer a rocha dura do fundo, a que os geólogos chamam substrato. Não é pois difícil ao leitor imaginar que, estando um homem ou uma máquina a cavar nestas areias, pode, a qualquer momento, atingir-se a rocha firme desse substrato. E foi o que aconteceu na abertura do poço na courela do Romão.

Mas não é só isto que explica o tremendo susto que o pessoal apanhou. Tão grande que, na ânsia e precipitação de fugirem, os quatro a trabalhar no fundo partiram a escada de madeira e ficaram lá em baixo, berrando com tamanha força que, diziam depois as más línguas, se ouviu no Café Central. Neste ponto do relato torna-se necessário dizer algo sobre o mármore e sobre o seu comportamento face às águas da chuva que se infiltram no terreno, pois era precisamente esta mesma rocha que se escondia abaixo do sítio do dito poço. O mármore, como dizia uma criança na escola da Vendinha, “é uma rocha que já foi calcário. Serve para cobrir o balcão da taberna do Ti’ Zé Calado ou para fazer a estátua do presidente de uma terra qualquer”. Pela sua natureza, praticamente igual à do calcário, de que resulta depois de comprimido e aquecido nas entranhas da Terra, o mármore deixa-se igualmente dissolver pelas águas da chuva, carregadas que estão de dióxidos de carbono, um dos gases do ar que respiramos. Com este gás dissolvido, a água transforma-se num ácido que corrói o mármore, abrindo nele fendas, buracos, galerias e grutas como aquelas que são cartaz turístico em muitos lugares do mundo, com estalactites, estalagmites e outras maravilhas da natureza, tudo isso escavado ou edificado pela circulação subterrânea dessas águas.

Ora o que aconteceu é que, naquele sítio, o mármore estava cavernoso e cheio de ar ali acumulado a grande pressão ao longo de milhares de anos. Quando o Magriço, sem suspeitar o que tinha debaixo dos pés, deu mais aquela valente picaretada, a rocha cedeu, abrindo um buracão de onde, sem aviso e com um estampido de tiro de pedreira, saiu um jacto imenso de vento, areia e água que atirou ao chão os trabalhadores que estavam no fundo, encheu de lama os que, cá em cima, davam serventia e por onde fugiu a pouca água que já começara a verter.

Por questões de partilhas seguidas de desavenças que levaram a uma tragédia familiar, toda a gente do lugar dizia que o local tinha mau agoiro e não fora sem algum aperto no estômago que meia dúzia de homens da terra acederam a abrir aquele poço, no sítio indicado pelo vedor, mesmo, mesmo, ao lado do grande salgueiro onde, ainda não havia um ano, o antigo dono da terra, pusera fim aos seus dias.

Fácil de cavar o terreno saibrento e pouco argiloso, trabalhava-se quase só à enxada e à pá. Só lá mais para baixo, a uns três metros da superfície, foi preciso usar a picareta. Era um barro duro e humedecido que mais parecia sabão. Enquanto uns cavavam, outros enchiam gorpelhas de terra e outros, ainda, puxavam-na para cima, com a ajuda de uma roldana suspensa de um tosco cavalete ali improvisado com grossos paus de eucalipto. Os dias foram correndo e o poço ganhando fundura, à medida que uma montanha de terra ia crescendo ao lado. Foi mesmo preciso mudar de escada para outra mais comprida que permitisse aos homens descer e subir.

Foi nesse dia de Agosto em que cheguei à estação de Torre das Vargens que o inesperado acontecera. O Portugal, com carro de aluguer em Ponte de Sor, fora nesse dia, como sempre, esperar-me ao comboio. Eu telefonara-lhe de véspera e ele lá estava à hora da chegada. Havia dois anos que eu, e quem comigo fosse, usávamos os seus serviços, indo todas as manhãs, bem cedo, buscar-nos à Pensão da Ponte e levar-nos aos locais onde cada um iniciava o dia de trabalho. Aí combinava-se o local onde ele, ao fim da tarde, nos iria apanhar. De martelo à cinta, bússola no bolso, mapa topográfico na mão e saco com o farnel a tiracolo, o dia era passado à torreira do sol, caminhando, observando e identificando a natureza dos terrenos, martelando aqui e ali para ver melhor, medindo direcções e inclinações, tudo marcando no mapa. A isto se chama levantamento geológico, e foi isso que, então, eu e os meus e alunos ali fizemos, anos a fio, em colaboração com os Serviços Geológicos de Portugal, até estar concluída a Carta Geológica de Ponte de Sor, na escala de 1:50 000.

Nesse dia do grande susto, que deu brado e foi motivo das mais fantásticas interpretações, ao sentar-me no banco da frente do automóvel, o Portugal, enquanto enfiava a chave da ignição, lembrava:

- Hoje anda tudo aí em alvoroço. Aconteceu ali para os lados da Ervideira... - contou-me ele tudo, tintim por tintim, enquanto fazíamos a viagem de regresso à vila. - O senhor engenheiro – assim se me dirigia - não quer lá ir agora? Ainda temos luz de dia. Dávamos lá um pulo antes de ir para a pensão.

Anuí de imediato, pois a curiosidade era muita e o jantar podia esperar um pouco mais; atravessámos assim a vila a caminho do local da ocorrência. De caminho eu ia recordando a primeira vez que o taxista me tratara por engenheiro.

- Eu não sou engenheiro – dissera-lhe de imediato.

- Não é engenheiro? – admirou-se ele.

- Não, não sou engenheiro!

- Então não é nada? – inquietou-se.

- Sou geólogo.

- E o que é isso?

Foi nesta passagem da recordação que o Portugal parou o carro.

- Já cá estamos!

Chegados à borda do poço, lá estava o buracão escuro, sem fundo à vista, toda a ferramenta, a escada partida e uma outra que alguém fora buscar para acudir ao pessoal. Como profissional, eu conhecia bem o local. Fora eu mesmo que marcara no mapa os limites do afloramento de mármore, bem visível na descida de um valado, a meia centena de metros dali. Bastava prolongá-lo, mentalmente, através do terreno, para se admitir que a rocha continuava na direcção do poço, o que agora se confirmava. A situação era, pois, bem simples de explicar ao menos letrado dos cidadãos. O Portugal ria, revivendo a aflição do pessoal no desconhecimento absoluto da realidade.

Pela versão do motorista, ficara a saber que o sobrinho do Romão afirmava que era a alma penada do tio que nunca dali tinha saído. Que ele bem lhe sentia a presença, sobretudo à noite, seguindo-o por detrás das silvas que lhe ladeavam o caminho de regresso a casa. Que uma irmã desta lembrava que, antes de se matar, o tio amaldiçoara a terra, pedindo ao Diabo a pouca sorte dos que quisesse tirar dela algum sustento. Enfim, um rosário de pragas rogadas, todas agora vindas ao de cima.

Na manhã seguinte, às sete horas em ponto, o Portugal estacionava o Opel à porta da pensão. Disse-lhe que me levasse para sul. Queria ver uns terrenos hoje inundados pela albufeira criada com a barragem de Montargil. Fiz aí o meu dia de trabalho e, quando a meio da tarde, por minha indicação, me foi buscar e lhe pedi que me levasse à Ervideira para tentar sossegar os homens, o taxista riu-se de novo.

- Não está lá ninguém. Nem um quis ir trabalhar – e acrescentou, gozando a situação: - Se o sobrinho do Romão quiser água, tem de ir buscar trabalhadores a outra freguesia.

- Com pessoal da terra ou de fora – retorqui – ele tem é de abrir outro poço e tornar a fechar aquele que nunca lhe dará um púcaro de água.

- Então - desafiou-me o Portugal – como ainda é cedo, calham bem umas cervejinhas ...

O calor era muito e aquele convite era mesmo de aceitar. O melhor da ocorrência esperava-me então no Café Central. Com gestos, esboços desenhados nos guardanapos de papel e imenso palavreado a “trocar por miúdos” o que para um geólogo é linear, não sei quantas vezes tive de explicar a causa daquela ocorrência. Uns entendiam-na e aceitavam-na, outros aceitavam-na sem a entenderem, pois tinham necessidade de apagar receios acumulados, e outros, ainda, nunca estiveram dispostos a ouvir, preferindo insistir nos maus olhados e noutras causas ocultas.

- Amanhã vou-me vou-me embora, logo ao fim do dia. Mas vou voltar mais vezes – virei-me para o agora proprietário da courela, e oferecendo – se quiser abrir outro poço, sem sobressaltos, eu procurarei marcar-lhe o melhor sítio – e saí a pensar no banho água fria no chuveiro da pensão.

- Às oito e meia vou buscá-lo. O comboio não espera, riu-se o Portugal, do outro lado da mesa.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2002