DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA E DEMOCRACIA

Há aspectos na divulgação científica que não devem deixar de constituir motivo de reflexão. Por exemplo, entre os universitários que, regra geral, serão aqueles que possuem melhores condições para exercer uma tal acção, é do conhecimento geral que todo aquele que tem este jeito e este gosto de falar, em termos vulgares, sobre assuntos de ciência, para o cidadão comum e que ousa, assim, divulgar conhecimento científico para fora dos muros do “clan”, corre riscos que, é bom dizer, não ignora. Escrever um livro ou um simples artigo de divulgação científica num jornal diário, ou exercer qualquer outra actividade neste domínio, expõe sempre todo aquele que o faz. Promover o espectáculo da ciência (sem a desvirtuar, entenda-se), andar pelas escolas a ensinar coisas simples e a estimular crianças e adolescentes para o gosto pelo saber, fazer conferências numa qualquer Sociedade Operária, nos Bombeiros Voluntários da Brandoa ou na Casa do Povo de S. Sebastião da Giesteira põe, de facto, em risco os méritos académicos daquele que ousa fazê-lo. E os seus críticos mais atentos são, via de regra, os seus pares, que usam na sua, por vezes, mordacidade a erudição que, uns mais, outros menos, acabam sempre por receber do meio que os rodeia e, quase sempre, o peso dos graus que a carreira lhes foi proporcionando. No meio académico, qualquer que seja o país, existe, de facto, um sentimento, nem sempre declarado, de menor apreço pelo modo despretensioso utilizado por aqueles colegas que sabem apresentar ao grande público os resultados da sua própria investigação com clareza, acessibilidade, alegria e, sempre que preciso, com alguma espectacularidade. O termo divulgador teve sempre uma certa carga pejorativa entre os cientistas, não todos, felizmente. Não é uma novidade dos nossos dias. Esmagados pela voragem e pelo ritmo da luta diária, não é fácil motivar estes nossos concidadãos para tais assuntos que, quase sempre, julgam inacessíveis ou acham desinteressantes. O divulgador é visto por muitos como alguém que traiu a classe ou o seu clube privado, que deixou de fazer ciência, ou que passou a fazê-la barata, em mangas de camisa e sem gravata, ou ainda, aquele que, em vez ciência, passou a fazer espectáculo. Até folclore já ouvimos chamar a algumas das realizações deste teor, todas elas pautadas por uma muito gratificante adesão daqueles a quem são dirigidas.

Quando, por via deste modo de intervenção social, ou cívica, como melhor se lhe quiser chamar, o cientista e, em especial, o universitário se torna conhecido do público (o que acaba quase sempre por acontecer) alguns dos seus pares começam a ficar incomodados. Dificilmente disfarçam um certo mal-estar, reagindo como se os seus domínios de sabedoria estivessem a ser pouco respeitados e até devassados na praça pública. Tudo se passa como se fosse pecado falar de ciência com a mesma simplicidade (ou vulgaridade, que é mais pejorativo) com que se fala das coisas mais correntes do nosso quotidiano. Este pecado aumenta sempre na proporção directa do sucesso alcançado por quem assim divulga, o que se reveste invariavelmente de uma certa popularidade a que os media são sensíveis e de que dão conta.

A inveja é uma realidade do comportamento humano. Pode manifestar-se em qualquer meio profissional e sócio-cultural, e os intelectuais não estão isentos desse pecado. Não é, pois, de estranhar que um ou outro se deixe escorregar na pequenina e fácil maledicência que, vinda de quem vem não pode deixar de ser vista com algum desencanto. Intelectuais são todos os que estudam, investigam e ensinam. Entre eles, deveríamos distinguir os que, além disso, entendem, como dever de cidadania, divulgar conhecimento e que o fazem na prática do seu dia-a-dia. Lembremo-nos de Vitorino Nemésio e do seu inesquecível “Se bem me lembro”, e encorajemos homens como António Manuel Baptista, José Fernando Monteiro, Carlos Fiolhais e Carvalho Rodrigues a dinamizarem, entre os seus pares, o dever de divulgar. São os divulgadores que melhor despertam muitos dos seus contemporâneos para o gosto pelo saber, que os levam a entender o mundo real de que são parte, a descobrir de onde vieram, e a tomar consciência de como e para onde vai esta “Nave Espacial”, como lhe chamou Niguel Calder, ou este “Ponto Azul Claro” como se lhe referiu Carl Sagan, que nos transporta através do espaço. São os divulgadores que os levam a saber o porquê das coisas e, assim, se tornarem cidadãos mais livres, conscientes dos seus direitos e deveres na sociedade democrática. O divulgador científico revela ser um intelectual esclarecido e interventor, no que toca a papel da ciência e dos cientistas na sociedade. Pela postura que assume, mostra que não se tem por sumidade que não desce abaixo da sua importância. Não fala do alto da sua cátedra nem usa o jargão como marca de qualidade. É um cidadão que acredita nos valores da democracia.

Lisboa, 6 de Janeiro 2003