REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Tectónica global

“Mas um dia virá em que, na sequência dos processos geodinâmicos, nós, os objectos que nos rodeiam, as cidades e equipamentos civilizacionais seremos minerais e fósseis de novas rochas, em outras montanhas, em outros continentes, em outras latitudes.”

Esta afirmação, que escrevi e tenho dito muitas vezes, passível de causar estranheza aos desconhecedores da longa história do nosso planeta, pode servir de porta aberta ao interesse em conhecê-la, ainda que em termos gerais, a única possível fora da disciplina pedagógica e sequencial que só a escola promove.

Quando nos anos que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial, geólogos e geofísicos ingleses e norte-americanos empreenderam estudos diversificados visando o conhecimento dos fundos marinhos, nomeadamente, a topografia, o fluxo térmico, o paleomagnetismo arquivado nas rochas (essencialmente basaltos) e as idades (em milhões de anos) dessas rochas, contribuíram e permitiram a formulação de uma teoria tectónica que, por abranger a totalidade da Terra, se apelida de global.

Um parêntesis para explicar o sentido da palavra “tectónica”, vocábulo corrente no léxico geológico, que escapa à maioria dos cidadãos e que, uma vez trocado por miúdos, faz todo o sentido.

Podemos dizer que os vales e as montanhas, tanto em terra como no fundo do mar, são partes de uma construção maior, à escala do planeta, representada pela crosta terrestre. Se soubermos que a palavra grega, “tektós”, significa construção, podemos dizer que tectónica é o ramo da geologia que estuda a estrutura desta construção (a crosta terrestre), em relação com a natureza das rochas, com as forças e os processos envolvidos e, também, a sua evolução ao longo do tempo. Quando aplicada à Terra, no seu todo, tanto faz dizer tectónica global como geotectónica.


Dessa prodigiosa inovação, ficámos a saber que a litosfera, ou seja, a capa rochosa do planeta está dividida em grandes porções, a que os autores de língua inglesa chamaram “plates” e que nós traduzimos por “placas”. Placas essas que interagem nos respectivos contactos ou fronteiras, afastando-se ou aproximando-se entre si, num dinamismo assegurado pelo imenso calor conservado no interior da Terra.

Imagine o leitor que descasca, à mão, uma laranja. Imagine que torna a colocar os vários pedaços de casca sobre o fruto descascado. Comece a deslocar essas cascas tangencialmente, isto é, sempre coladas aos gomos. Verá que, sempre que afasta um pedaço de casca (que nesta demonstração exemplifica um placa litosférica), relativamente a outro , está a comprimi-lo face ao que lhe fica do outro lado.

Deste jogo de distende e afasta de um lado, e aproxima, comprime e colide do outro, ao longo de centenas e centenas de milhões de anos, abriram-se e alastraram oceanos, reduziram-se e fecharam-se outros, surgiram vulcões, ocorreram sismos, montanhas que se elevaram e que acabaram sempre por desaparecer por erosão, nesta enormidade de tempo, numa ciclicidade que se tem vindo a repetir nos mais de 4540 milhões de anos de idade do nosso planeta. 


É nesta medida que os continentes e os oceanos do presente hão de dar lugar a outros, que os seus materiais hão de ser reciclados. E o que de nós e da nossa civilização restar terá o mesmo destino.

 

 
 
 
 
 

A.M. Galopim de Carvalho. É professor catedrático jubilado pela Universidade de Lisboa, tendo assinado no Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências desde 1961. É autor de 21 livros, entre científicos, pedagógicos, de divulgação científica e de ficção e memórias. Assinou mais de 200 trabalhos em revistas científicas. Como cidadão interventor, em defesa da Geologia e do património geológico, publicou mais de 150 artigos de opinião. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural, entre 1993 e 2003, tempo em que pôs de pé várias exposições e interveio em mais de 200 palestras, pelo país e no estrangeiro.
Blogue: http://sopasdepedra.blogspot.com/