A tarde estivera particularmente quente e foi
ainda no final do jantar, servido na mesa do terraço, enquanto saboreava
o gelado trazido do supermercado, que a Francisca perguntou ao avô qual
seria o assunto da primeira das conversas prometidas, a terem lugar ali,
à semelhança do que acontecera nas férias de verão do ano anterior.
Seria, certamente, mais uma daquelas lições, dadas num jeito de contar
histórias, que dava gosto ouvir.
- Nas conversas que vamos ter este ano, -
começou o avô - acho que vou começar com algumas reflexões sobre as
palavras que irão ouvir, muitas delas novas e sem significado, se não
forem convenientemente explicadas. Mas antes gostava que ouvissem o que
me parece importante dizer sobre a palavra.
- Diga avô. Adiantou-se o Mateus.
- Chegada a nós através do latim parabola,
que significa discurso ou fala, a palavra é uma característica
exclusivamente humana, que nos distingue dos restantes animais a que, de
um modo demasiado simplista, adjectivamos de irracionais. Sabemos hoje
que este nosso dom reside nos escassos pontos percentuais que nos
distanciam do código genético do chimpanzé. Vamos, pois, aproveitar esta
capacidade e fruir os bens que o saber nos oferece.
- Quem fala assim não é gago! – exclamou a
neta, olhando o avô com um lindo sorriso.
- Enquanto falada, a palavra é um conjunto de
sons que define um ou mais objectos ou ideias. Os estudiosos destas
matérias admitem que o andar de pé, ou seja, a postura erecta dos
primitivos humanos, a libertação das mãos (especialmente adaptadas à
vida nas árvores pelos seus antepassados primatas) e a utilização destas
no talhe e no uso de instrumentos conduziram ao aumento de volume do
cérebro e ao seu desenvolvimento em termos de complexidade.
- Já ouvi falar em primatas, - interrompeu o
Mateus – mas não sei bem o que são.
- Primatas, meu neto, são os animais de um
grupo de mamíferos que tu conheces muito bem. São, entre outros, os
macacos, os chipanzés, os gorilas, os orangotangos e os seres humanos.
- Obrigado, avô. - A possibilidade física de
emitir mensagens sonoras, aceites como rudimentos de palavras. -
Acrescentou a avó, aproximando-se. – Isso pressupõe a aquisição de uma
capacidade intelectual e de uma outra, física, ao nível do aparelho
fonador, ou seja, da boca, da garganta e do nariz, susceptíveis de
expressar ideias através de emissões de voz.
- Essa possibilidade – retomou o avô – pode
ter surgido quando os nossos primitivos antepassados começaram a
cooperar entre si, adaptando formas de comunicação baseadas, não só em
expressões da cara e em gestos, mas também nas citadas emissões vocais.
- Impossíveis de confirmar. - Acrescentou o pai
das crianças, atento a uma conversa do seu particular interesse. - As
opiniões sobre o início desta etapa da evolução dos nossos antepassados,
isto é, da hominização, variam entre as que a aceitam associada ao
aparecimento do género humano mais antigo, há cerca de 2.500.000 anos,
às que a apontam como uma conquista do homem moderno, há menos de
100.000 anos.
- Usada com marco divisório entre a
Pré-história e a História, - continuou o avô - a palavra escrita é um
conjunto de símbolos gráficos ou grafemas susceptíveis de exprimir uma
e, por vezes mais, ideias, registados num suporte material como foi o
barro e a pedra, na Antiguidade, e o papel e o electrónico, etc., no
presente. Na nossa cultura, em que a grafia é alfabética, podemos
converter a palavra escrita em sons ou grupos de sons que reproduzem a
palavra falada.
- Deixe-me só acrescentar – pediu o pai das
crianças – que a palavra escrita surgiu há cerca de 5000 anos, na
Mesopotâmia, acredita-se que por engenho dos sumérios. Desenvolveu-se
como uma outra via de comunicação.
- Que, embora de uso muitíssimo mais restrito,
- acrescentou o avô - possibilitou ao homem divulgar os seus
conhecimentos muito para além do seu espaço geográfico e do seu tempo.
- São múltiplos os factores envolvidos na
criação deste passo importante na civilização e, com isto termino, -
disse o pai - um deles foi o surgimento das cidades, como exigência do
progresso da
economia e da
sociedade.
- Vamos, então, começar pelo significado das
palavras. Todos se acordo?
- Sim, avô. – Disseram, quase ao mesmo tempo, a
Francisca e o Mateus.
- E eu também. – Disse, logo a seguir, o
Domingos.
- Uma grande verdade que eu aprendi em quarenta
anos de professor e muitos mais como divulgador de ciência a todos os
níveis, é que «o discurso do professor tem de ser simples, sem perda de
rigor, apelativo e, sempre que possível, agradável». Só assim o aluno ou
quem o escuta ou lê tem gosto em aprender e aprende.
- É como faz o avô. A gente aprende logo. Quase
que não precisa estudar. – Disse a Francisca.
- Todas as actividades, sejam elas quais forem,
das mais simples às mais complicadas, precisam de palavras para dar
nomes a todas as ferramentas ou utensílios de que se servem e a tudo o
que nelas se faz ou produz. Por exemplo, os cozinheiros servem-se de
facas, tachos e panelas, fritam, cozem e assam. Os alfaiates e as
costureiras mexem em tesouras, agulhas, linhas e botões, fazem casacos e
vestidos e falam de lã, algodão, seda e linho. Todos eles usam palavras
que toda a gente conhece, mas também usam outras que nós nem pensamos
que existem. Passa-se o mesmo com os médicos, os economistas, os
juristas e todos os cientistas e técnicos dos mais variados ramos.
Também eles falam de nomes do dia-a-dia de toda a gente, mas atiram-nos
à cara muitos outros que só eles e muito poucos entendem. Em suma e
simplificando, tudo o que se pensa ou faz e tudo em que se mexe tem um
nome. Com a geologia é a mesma coisa. Além das palavras vulgares esta
ciência que estuda a Terra criou as suas próprias palavras.
- É mesmo isso. – Interrompeu o neto mais
velho. - Quando o avô ou a minha professora falam de coisas da geologia,
aparecem sempre palavras novas.
- Os cientistas estão sempre a descobrir coisas
novas e, assim têm de criar neologismos. Aqui têm os meus netos, uma
palavra que vem mesmo a calhar. Neologismo é o nome que se dá a
uma palavra criada de novo e que foi feita a partir dos elementos
gregos, neo, que quer dizer novo, e logos, que significa
estudo, conhecimento.
- Então, temos de aprender grego? – Perguntou o
Mateus com ar de alguma preocupação.
- Não. Basta que saibam o significado dos
termos que entram na composição dos vocábulos próprios das disciplinas
que têm de estudar. Uns vêm do grego, outros do latim.
- Vocábulos, Avô? – Interrompeu, de novo, o
Mateus.
- Aí tens tu uma palavra tirada do latim
vocabulu que quer dizer nome de uma coisa. Mesa, copo, lápis, areia,
piscina, mar e todos os nomes que conheces e não conheces são vocábulos.
Entre os vocábulos usados em geologia, por exemplo, há palavras que toda
a gente conhece, como montanha, rocha, areia, erosão, mina, vulcão, e
palavras só usadas pelos profissionais, como turbitito, gliptogénese,
anatexia, piroclasto, orógeno, hialoclastito e muitíssimas outras, em
número de centenas. São nomes que, de momento, nada vos dizem e que, a
seu tempo, poderão vir a conhecer.
- E são essas que vamos aprender? – Perguntou o
Domingos.
- Por agora nem todas, mas, mais tarde,
certamente que sim. - Continuou o avô. - Eu costumo dizer que são
palavras “caras” que é preciso “trocar por miúdos”. No século XVIII,
quando as ciências começaram a ganhar importância, estudar e criar
conhecimento era uma actividade, praticamente, só exercida no seio do
clero, por padres e monges, e também por alguns representantes da
nobreza. O latim e o grego faziam parte das disciplinas habituais no
ensino a que, nesse tempo, só estas classes tinham acesso. O povo,
dizia-se, não precisava estudar. Bastava-lhe a força dos braços e a
habilidade das mãos. Estava-se muito longe de o ensino ser obrigatório
para toda a gente.
- A cabeça do povo era só para pôr o chapéu ou
o barrete. - Entrou na conversa a avó, atenta à conversa. – O clero e a
nobreza sabiam muito bem que os seus privilégios assentavam na
ignorância do povo.
- E fiquem a saber - acrescentou a mãe das
crianças, atenta a esta conversa - que, mesmo depois e por muito tempo,
estudar era uma actividade só acessível aos homens. As mulheres não
tinham essa possibilidade. Serviam para tudo menos para estudar. Estavam
destinadas a serem boas esposas, boas mães e boas donas de casa. Ainda
pouco na geração da avó, mas depois, felizmente, na minha, as raparigas
já puderam estudar lado a lado com os rapazes.
- Era como ainda hoje em algumas sociedades
dominadas por fundamentalistas religiosos, em que as raparigas estão
proibidas de ir à escola. – Lembrou a avó.
- Hoje, nas nossas escolas, - continuou a mãe
das crianças - praticamente, ninguém estuda latim ou grego. Só na
Universidade e, mesmo assim, são poucos os alunos que frequentam estas
disciplinas. O latim que os romanos falavam já não se fala em parte
nenhuma, nem em Itália. E o grego que se fala na Grécia já sofreu
grandes alterações.
- Bom, mas continuemos. - Interrompeu o avô. -
Os cientistas têm de dar nomes às coisas que vão descobrindo ou, por
outras palavras, como já dissemos, têm de criar neologismos. E,
respeitando a tradição, fazem-no a partir de nomes que vão buscar a
essas duas línguas da Antiguidade. São palavras que, praticamente, só
eles e os seus pares entendem.
- E geologia é outra dessas palavras, não é,
avô? – Disse o Mateus.
- Aí temos nós mais um bom exemplo para
começar. – Continuou o avô. - A palavra geologia foi feita juntando dois
elementos também de origem grega, geo, que significa Terra, e
logos, que quer dizer estudo, conhecimento. Geologia é hoje uma
palavra conhecida de muita gente, mas, no século XVIII, quando foi
introduzida com o significado que lhe damos, só os mais eruditos a
conheciam.
Eruditos, Avô? Isso é outra palavra cara? –
Perguntou o Mateus, a rir.
- É uma palavra que fomos buscar ao latim
eruditu e que se aplicava a uma pessoa que sabia muito. E
quem diz geologia diz muitas outras. Por exemplo, a palavra
cassiterite, nome que foi dado ao mineral de estanho que podem ver
aí na colecção que o Domingos começou a fazer, teve origem no grego,
kassiteros, que significa estanho, e a que se acrescentou o elemento
ite com que terminam os nomes da maioria dos minerais.
- A minha professora também explica as palavras
mais esquisitas. - Disse o Domingos.
- À medida que formos falando de geologia –
continuou o avô - iremos sempre explicando como nasceram as novas
palavras que forem aparecendo, o que torna fácil tudo aquilo que parece
difícil. Se souberem o significado dos elementos de que são feitos os
nomes que forem aprendendo, eles passam a fazer uma parte sólida do
vosso conhecimento.
- Diga mais palavras dessas. Avô. – Pediu a
Francisca.
- Digo só mais uma que iremos usar muitas
vezes,
- Diga, avô. – Entusiasmou-se a neta.
- Litosfera, que é o nome que se dá à camada
exterior da Terra, toda ela formada por rochas. Analisando esta palavra
verificamos que, também ela, foi feita juntando dois nomes gregos:
lithós que significa pedra ou rocha, e sphaira que, está-se
mesmo a ver, quer dizer esfera.
- Assim, fica tudo mais fácil. Obrigado, avô.
- Por hoje já chega. Para terminar, vamos meter
bem na cabeça que todos os vocábulos que ouvirmos ou lermos, à medida
que formos avançando no nosso estudo, têm de ser explicados. Se não
tivermos este cuidado, não passam de palavrões sem significado que
decoramos para podermos responder no exame e que, depois, se esquecem
para sempre. E agora vão brincar um bocadinho, antes de irem para a
cama.
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