Do mesmo
modo que tudo cai de cima para baixo por força da gravidade e uma vez
que, no nosso planeta, existem agentes promotores de erosão, as
montanhas tendem a ser arrasadas e os materiais resultantes dessa erosão
acumulados nas depressões. Se não houvesse forças internas que, de
tempos a tempos, geram montanhas, sejam elas de que tipo forem, a
superfície dos continentes seria tão plana quanto a das águas em
repouso. É curioso lembrar que, no século X, os membros de uma
fraternidade de filósofos ismaelitas, conhecida por “Irmãos da Pureza”,
(Ikhwan al-Safa, em árabe), que se admite ter estado sediada em Bassorá,
no Iraque, escreveram numa enciclopédia que nos legaram “os continentes,
uma vez arrasados pela erosão, ficam ao nível do mar”.
Desde
sempre, filósofos, geógrafos, naturalistas e geólogos se depararam com
esta realidade do relevo em todas as latitudes da Terra, que é o
confronto entre as planícies e as montanhas. Portugal não foge a esta
dualidade. À planície alentejana opõe-se a orografia bem mais acidentada
do centro e norte do território.
Na
origem, o termo planície, que nos chegou vindo do latim “planitie”,
significa superfície plana. Como vocábulo do léxico geográfico, esta
mesma palavra passou a referir uma extensão maior ou menor de terreno
aplanado, de notada horizontalidade e, na maioria dos casos, a muito
baixa altitude, onde a sedimentação supera largamente a erosão. Os
geógrafos distinguem planícies fluviais e planícies costeiras ou
litorais.
As
planícies fluviais formam-se, as mais das vezes, na zona vestibular dos
rios, ou seja, nos troços mais próximos da foz, propícios ao
desenvolvimento de meandros divagantes. São limitadas por aclives
(vertentes a subir), ou seja, estão rebaixadas relativamente aos
terrenos envolventes. São exemplos de planícies fluviais a lezíria (do
árabe al jazīrâ) e os mouchões do Tejo, os campos do Mondego, do Sado,
do Caia e do Sorraia e os sapais de Corroios e de Castro Marim.
Favoráveis à sedimentação fluvial, comportam muitas vezes corpos de
águas paradas, como pântanos (ou pauis) e braços mortos de meandros
abandonados.
As
planícies litorais ou costeiras têm por limites de um lado, o mar e, do
outro, um aclive, muitas das vezes, uma antiga falésia ou arriba (arriba
fóssil). São exemplos de superfícies litorais a que se estende para sul
de Ovar até a Serra da Boa Viagem, muitas vezes referida por gândara, a
que se prolonga entre esta Serra e a Nazaré, a alentejana, entre a foz
do Sado e Sines, e a campina entre Faro e Olhão. Propícias à
sedimentação marinha e/ou dunar arenosa, com elas se relacionam
restingas, ilhas-barreiras, lagunas (rias) como as de Aveiro e de
Faro-Olhão e lagoas como as de Fermentelos (Pateira), Óbidos, Melides e
Santo André.
Ao
contrário das planícies, os planaltos, como o nome indica, são
superfícies aplanadas em altitude (convencionalmente, acima dos 300 m)
limitados por vertentes que descem para terrenos a cotas inferiores. Ao
contrário das planícies, os planaltos são, sobretudo, sede de erosão.
Entre nós, é frequente falar-se dos planaltos transmontanos, do planalto
da Guarda e, até, do planalto da Torre, no cimo da Serra da Estrela.
O estudo das superfícies de
aplanação é um dos temas mais explorados na dialética entre geógrafos e,
com a evolução da geografia física para a geomorfologia, entre
geomorfólogos.
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Nesta
troca de ideias há que registar os modelos concebidos por William Morris
Davis (1850-1934), Walther Penk (1888-1923), Julius Büdel (1903-1983) e
Lester Charles King (1907-1989). Em 2005, na monumental obra em três
volumes, GEOGRAFIA DE PORTUGAL, editada pelo Círculo de Leitores e
dirigida pelo Prof. Carlos Alberto Medeiros, o nosso saudoso colega (e
meu ex-aluno), António Brum Ferreira foi o autor do primeiro volume “ O
Ambiente Físico”, onde, em palavras simples mas rigorosas sintetiza as
ideias destes quatro autores.
No
artigo “The Geographical Cycle” que ficou célebre na geografia de finais
do século XIX, W. M. Davis, professor da Universidade de Harvard,
divulgou o conceito de “peneplaine” (peneplanície na versão portuguesa)
como um tipo de aplanação inacabada, a relativamente baixa altitude,
fruto de um longuíssimo desgaste por parte da erosão fluvial. O elemento
de origem latina “pene” que escolheu para antepor à palavra “planície”,
significa “quase”, pelo que foi e continua a ser, sobretudo, no sentido
de “quase planície” que este vocábulo entrou no léxico geográfico e
geomorfológico. Largamente divulgado por prestigiados geógrafos
franceses, como Emmanuel de Martonne (1873-1955), Henri Baulig
(1877-1962) e Pierre Birot (1908-1984), o conceito de peneplanície
estendeu-se aos geógrafos portugueses, então ainda francófonos na sua
maioria.
Conhecido como o “pai da geografia americana”, Davis partiu da convicção
de que, a períodos relativamente curtos de elevação do relevo, se
seguiam outros imensamente longos, de grande estabilidade, favoráveis à
erosão. Por outro lado, tendo centrado o essencial do seu trabalho de
campo nas regiões sob clima temperado-húmido, o modelo de aplanação que
concebeu e divulgou assenta, fundamentalmente, na erosão realizada pelos
cursos de água. Neste processo, que designou por “erosão normal”, Davis
escolheu o adjectivo “normal” no propósito de poder usar este tipo de
erosão como norma ou padrão de comparação com os de outros ambientes
climáticos.
Na
concepção de Davis, a peneplanície, que interpretou como resultante da
erosão de uma montanha nos parâmetros em que a definiu, pode ser elevada
por subida do continente (epirogénese) ou por descida do nível do mar,
dando início a novo e idêntico processo erosivo, numa repetição a que
deu o nome de ciclo de erosão.
Um
argumento contra a prolongada imobilidade tectónica pressuposta no
modelo davisiano foi apresentado, vinte e cinco anos depois, pelo jovem
geomorfólogo austríaco, Walther Penck (1888-1923), no livro que nos
deixou, “Die Morphologische Analyse”, editado postumamente em 1924.
Porém, o modelo de Davis só sofreu contestação, em 1953, quando este
livro foi traduzido para inglês, sob o título “Morphological Analysis of
Landforms”. Influenciado pelas observações geomorfológicas a que
procedera na região da Floresta Negra, onde um conjunto de superfícies
aplanadas se escalona em degraus (Piedmonttreppen) nos flancos da
montanha, Penck argumenta, neste seu livro, que o processo de erosão do
relevo ocorre simultaneamente de forma gradual e contínua com o de
elevação do mesmo relevo.
Pouco
mais de três décadas depois, na Alemanha, Julius Büdel (1903-1983)
revelava um outro processo conducente à origem de uma superfície de
aplanação. Experimentado na geomorfologia de regiões tropicais do tipo
savana quente, com uma estação húmida acentuada, propícia à formação do
rególito, ou seja, de uma capa de meteorização das rochas do substrato,
este geomorfólogo defendia, na sua obra "Zeitschrift für
Geomorphologie", publicada em 1957, a ideia da existência de duas
superfícies com realidade no terreno: a superfície topográfica, em
contacto directo com a atmosfera, ou seja, a que suporta a paisagem,
sujeira a erosão pelas águas de escorrência e fluviais; e a superfície
basal, entre o rególito e a rocha sã, tanto mais profunda, quanto maior
fosse a espessura do rególito.
Büdel
defendia que, quando a humidade prevalecesse relativamente à secura, a
meteorização é mais veloz do que a erosão. Se o clima regional evoluir
no sentido da aridez, a erosão torna-se mais intensa do que a
meteorização das rochas, podendo, no limite, pôr a descoberto a dita
superfície basal que, assim, se transforma numa superfície de aplanação.
Um outro
modelo contraposto à peneplanície e, talvez, o que mais movimentou a
comunidade de geógrafos e geomorfólogos foi concebido e divulgado pelo
geomorfólogo sul-africano Lester Charles King (1907-1989), na obra "The
Morphology of the Earth", publicada em 1962. Inglês de nascimento, este
professor da Universidade do Natal, procurou explicar aplanações
recentes e antigas por uma outra via radicalmente diferente da de Davis,
tendo baseado o seu modelo na evolução do relevo que lhe foi dado
observar na regiões subáridas. Ao percorrer estas regiões, este que foi
um dos mais influentes geomorfólogos do século XX, notou que as planuras
destas regiões terminam, abruptamente, contra escarpados íngremes.
Verificou que a superfície do terreno na base deste escarpados, a que
deu o nome de “pediment”, (pedimento, na versão portuguesa) se
apresentava minimamente inclinada, talhada pela escorrência de águas
selvagens) carregadas de detritos. Para o autor, é o desenvolvimento
destas superfícies que conduz à pediplanície, “pediplain”, na versão
inglesa.
Na
concepção de King, a pediaplanação, ou seja, o desenvolvimento da
pediplanície vai alastrando em detrimento do relevo que,
consequentemente, vai recuando, deixando, por vezes, testemunhos
isolados, controlados pela estrutura geológica do terreno (dobras,
falhas e outras). Aos ditos testemunhos, isolados como se fossem ilhas,
salientes da pediplanície, o geógrafo germânico Wilhelm Bornhardt
(1864-1946) deu o nome de “Inselberg” (do alemão “Insel”, que significa
ilha, e “Berg”, que quer dizer monte) termo que, à letra, significa
monte-ilha.
Embora
algumas das suas ideias e interpretações, como, aliás, todas as outras,
sejam questionáveis, King estimulou a comunidade dos geógrafos e
geomorfólogos a repensar e rever criticamente os agentes e os mecanismos
que conduziram e conduzem à aplanação do relevo.
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