REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Ontem e hoje na saúde, em Portugal

À memoria de meus pais

Meus pais, os meus heróis, aos 41 anos (1941)

É verdade que ainda estamos longe da perfeição no bem-vindo e louvável Serviço Nacional de Saúde, mas a nossa actual juventude ignora como eram os cuidados médicos e os recursos farmacêuticos no tempo dos avós. Esta reflexão levou-me a comparar o que temos no presente com o que marcou o tempo da minha infância com capacidade de observar e interiorizar o mundo à minha volta.Os problemas de saúde próprios da idade proporcionaram-me a percepção da imensa distância que, nestes dois mais vectores relacionados com a saúde, a medicina e a farmácia, separa o ontem do hoje.

É claro que não conheço o suficiente de história da medicina e da instituição farmacêutica que me permitam abordar este tema em moldes historicamente fundamentados. Mas o que eu posso e sei fazer é comparar o que, nestes domínios, se passava nesse tempo no seio da minha família e procurar estabelecer a comparação com o que a minha experiência nos centros de saúde, hospitais e farmácias da actualidade. 

Nesse tempo, em que um AVC (acidente vascular cerebral) tinha o nome de apoplexia, e que, para referir a difteria, dizíamos garrotilho, os doentes, incluindo os acamados, eram tratados ou morriam em casa e aí, também nasciam os filhos, com o apoio de experientes comadres ou de parteiras. A maioria das mulheres além de mães de filhos e de “donas de casa”, ocupavam-se dos doentes e dos familiares velhos que, assim, não eram encaminhados e feitos prisioneiros nos tristes lares da sociedade do presente.

Das mezinhas e remédios manipulados na “pharmácia”, passou-se aos fármacos produzidos industrialmente pelas grandes multinacionais. Amigdalites, otites, gripes, rubéola, sarampo, varicela, parotidite (papeira) e gastroenterites, embora com nomes diferentes, tudo isso andou lá por casa, tocando constantemente todos os filhos (cinco, na altura), poucas vezes o pai, quase nunca a mãe. Foi um tempo em que a única vacina obrigatória era a se ministrava contra a varíola, enfermidade grave, tantas vezes fatal, conhecida por toda a gente com o nome bexigas, pois deixava, nos poucos que lhe sobreviviam, inúmeras pequenas cicatrizes das vesículas pustulentas espalhadas por todo o corpo, particularmente visíveis no rosto.

Falava-se, de anginas, de dores de ouvidos, de bexigas doidas, de trasorelho, de dores de barriga associadas ou não a diarreia ou soltura, tudo situações que a mãe ultrapassou, pelos seus próprios meios, uma vez por outra, com a ajuda do médico chamado a casa e, nas situações mais preocupantes, com rezas a Nossa Senhora, velas e promessas de cera ao Senhor Jesus dos Passos, na Igreja se São Francisco.

Hoje, a imensa maioria dos médicos exerce a sua actividade nos muitos e bons Hospitais e nem sempre bons Centros de Saúde espalhados pelo país, numa frutuosa conquista do Serviço Nacional de Saúde, muitos acumulam com consultório privado, onde só vai quem poder pagar. Só alguns, sobretudo no interior do país, mais afastados dos centros urbanos, perpetuam a figura do João Semana, no romance de Júlio Dinis.

A medicina do presente tem ao seu alcance dezenas de equipamentos que a moderníssima tecnologia concebeu e produziu para seu auxílio na obtenção de tomografias, ecografias, ressonâncias magnéticas, electrocardiogramas e encefalogramas, entre muitos outros exames, recorrendo sistematicamente e dezenas de tipos de análises clínicas, permitindo-lhe diagnósticos cada vez mais seguros.

O médico da minha infância observava a língua, os dentes, os olhos e as orelhas do enfermo, apalpava-lhe a barriga e auscultava-o sem estetoscópio, que era coisa que ainda se não usava. E como equipamento de apoio ao diagnóstico pouco mais havia do que o raios-X.  Através de um pano, usado para o efeito, o “senhor doutor” colava o ouvido às costas e ao peito do doente e, assim, por audição directa, avaliava-lhe o estado dos pulmões. Na nossa casa, depois de todos estes procedimentos, lavava as mãos no lavatório, por tradição no quarto de dormir, preferindo o sabão azul ao sabonete que, dizia ele, não desinfectava tanto, limpando-as, de seguida, numa outra toalha de linho (o pano turco só mais tarde entrou na nossa vida) impecavelmente branca e passada a ferro, que a nossa mãe tinha guardada para estas ocasiões. Por fim, ia sentar-se à mesa da casa de jantar e passava a receita com uma bela caneta de tinta permanente, coisa então de muito poucos. Nem o nosso pai que, embora escriturário de profissão, ainda usava caneta com aparo de molhar no tinteiro.

Muito longe dos dias de hoje, em que o médico, digita o nome do fármaco ou o do respectivo princípio activo no teclado do computador e que depois imprime, o clínico da minha infância escrevia a receita numa folha de papel, onde indicava todos os produtos a incluir na manipulação do remédio, precisando, para cada um, a respectiva dosagem. Ao contrário dos dias de hoje, em que a dita indústria abastece as farmácias, quase a cem por cento, com centenas de especialidades, nesse tempo, tudo o que era sais, pós, xaropes, hóstias, pomadas, supositórios e outros produtos, era manipulado na farmácia (botica para os mais velhos) pelo boticário.

Uma purga com óleo de rícino ou um clister eram tratamentos irrecusáveis sempre que aparecíamos com febre. Dizia o clínico que, antes do mais, serviam para limpar os intestinos. Vinham, depois, consoante os casos, os papelinhos de criogenina, para baixar a febre, as fricções com vinagre aromático ou com álcool canforado, o algodão iodado ou os emplastros de papas de linhaça e mostarda, a escaldar, colocados sobre o peito. Se doíam as costas, pincelavam-se com tintura de iodo ou aplicavam-se meia dúzia de ventosas.

Nas dores de ouvidos, e quão fortes eram, a minha mãe procurava dar-nos alívio vertendo, lá para dentro, leite levemente aquecido, o que, segundo me lembro, pouco ou nada resultava. As dores só passavam quando a otite era debelada pelas defesas próprias do organismo. Com as anginas era a mesma coisa. As correspondentes dores de garganta, a febre e a dificuldade de engolir passavam ao fim do tempo que durava a luta dos leucócitos sobre o Streptococcus, o agente patogénico. Mas era crença generalizada que essas amigdalites se curavam com as mezinhas caseiras e, assim, a mãe besuntava-nos a parte anterior do pescoço, onde se localizavam as ínguas, com pomada de beladona, sobre a qual se passava um lenço de algodão, de preferência encarnado, no dizer da tia Floripes. Em complemento, gargarejávamos com água e sal, chupávamos sumo de limão, engolíamos colherzinhas de mel e fazíamos zaragatôas com azul de metilene. Este último tratamento, feito ao deitar, era aceite como um brincadeira porque tingia de verde o xixi da manhã seguinte. Ir para a escola com um lenço atado ao pescoço, a cheirar a beladona não era agradável. Mas muito pior quando o tratamento era feito com enxúndia de galinha que, com o mesmo propósito, era preferida pela minha avó Isabel, mãe de muitos filhos e com larga experiência no tratamento destas enfermidades. A gordura amarela destas aves era guardada numa velha tigela de faiança de Sacavém, onde se oxidava, tornando-se rançosa e mudando a cor para castanho. Era nesta fase de apodrecimento, exalando um cheiro nauseabundo, que este unguento estava, dizia ela, em condições de produzir o efeito desejado.

Havia, porém, situações graves como o garrotilho, designação que se dava à difteria. Esta exigia o recurso ao médico, mas havia uma norma nesse tempo, segundo a qual o doutor só era chamado se, ao fim de três dias, o doente não desse mostras de recuperação, em resposta aos tratamentos caseiros. Por vezes, este tipo de procedimento tinha consequências fatais. Isto aconteceu com um meu vizinho e colega de escola, vítima desta angina má. O estado da doença causada pelo Corynebacterium diphtheriae não cedeu ao soro que lhe foi ministrado tarde demais. Foi a consternação na minha rua. Morrera um menino. Passados dois ou três dias sobre este trágico desfecho, comecei com dores de garganta e muita febre. A sorte foi o estado de alerta em que a minha mãe ficara, o que a fez chamar, de imediato, o nosso médico. Foi já amodorrado na cama que vi surgir, na porta do quarto, Dr. Fonseca. De farta bigodeira branca, a chegada do velho clínico confirmou os meus receios, afinal, os mesmos da minha mãe. O velho médico tomou-me o pulso, observou-me a garganta com o cabo de uma colher a servir de abaixa-línguas e, depois, com a dita toalha de linho de permeio, colou-me o ouvido às costas e ao peito, mandando-me respirar fundo, parar de respirar, tossir e dizer trinta e três, à medida que ia procurando, em audição directa, as respostas dos meus pulmões. A sua conclusão, dita à minha mãe, numa voz descontraída que deu para eu ouvir perfeitamente, foi:

- Temos aqui, dona Adília, mais um caso de angina diftérica na nossa Escola de São Mamede.

Face a esta afirmação, recordo, afundei-me resignadamente nos lençóis, convicto que teria o mesmo fim do Cardoso, o meu condiscípulo acabado de enterrar. Pouco depois da saída do médico, entrou a menina Rita, a enfermeira que habitualmente nos assistia na aplicação de injecções, para me ministrar o correspondente soro e, assim, as imunoglobulinas do fármaco venceram as toxinas produzidas pela bactéria, mas encheram-me de urticária, situação que se resolveu depois com Anafilarzan, o anti-histamínico então em uso.

Uma entorse, por exemplo, num artelho ou num pulso resolvia-se, via de regra, com escaldões num alguidar com água quase a ferver onde se dissolvia um punhado de sal. Aí se mergulhava o pé ou a mão e parte do antebraço, procurando resistir ao intenso calor, o tempo considerado necessário. Por último, apertava-se a articulação com uma ligadura, no sentido de a imobilizar e reduzir o inchaço. Depois era esperar uns dias até o incómodo passar. Nos casos mais difíceis de resolver por esta via, a mãe recorria à tia Palmira, para que ela “cosesse o torcegão”. Conheci a virtude desta senhora uma vez em que, correndo no Largo dos Penedos, torci um pé no sítio do tornozelo. Chegado a casa dela, levado pela minha mãe, a virtuosa senhora mandou-me sentar à sua frente, numa cadeirinha baixa, pegou-me no pé magoado e ajeitou-o sobre os seus joelhos. A seguir tirou-me a ligadura, encostou um novelo de lã cinzenta à zona mais inchada e começou a “cosê-lo” com uma agulha grossa onde enfiara um pedaço de lã do mesmo novelo, sem o habitual nó na ponta do fio. A agulha e o fio iam entrando e saindo ao ritmo de uma reza, dita em surdina, para mais ninguém ouvir. Recebida da mãe à hora da morte, explicou, guardá-la-ia consigo enquanto vivesse e só ao sentir-se morrer a transmitiria à mulher que ela entendesse merecer tal virtude. Durante a cosedura e a intervalos de tempo, como se de um refrão se tratasse, perguntava em voz bem audível.

- “O que é que eu coso?” – e a minha mãe respondia, por mim.

- “Carne quebrada, nervo torto”. – e a senhora confirmava – “Isso mesmo é que eu coso”.

Terminada a cosedura, repôs-me a ligadura e recomendou-me repouso e mais uns escaldões. O incómodo acabou por passar e tudo voltou ao normal alguns dias depois. Habituada que estava na assistência à doença, numa casa de família com seis filhos, a minha mãe assumiu, nas vezes em que isso foi necessário, o papel da tia Palmira. Não conhecendo a tal reza, substituía-a por Padre Nossos e Avé Marias, com idêntico bom resultado. Em sua muito convicta opinião, o que contava era a fé com que se rezava.

Situações mais fora do comum na nossa casa também as houve, mas essas, por sorte, surgiram num tempo com maiores recursos médicos e farmacêuticos. De todas a mais grave, dolorosa e prolongada foi a que atingiu a minha irmã mais velha, teria ela os seus dezassete ou dezoito anos. Tosse, perda de peso e um estado febril permanente foram o pré-aviso daquilo que ninguém queria acreditar. E o aviso chegou, inesperado e assustador, no dia em que a menina tingiu de sangue o lenço que levara à boca em mais um acesso de tosse. Tuberculose pulmonar foi o cru diagnóstico que o médico transmitiu ao meu pai. Ao pai e não à mãe, porque, na nossa cultura e nesse tempo, os assuntos graves eram coisa de homens, e a tuberculose, nesses anos, era sentença de morte quase certa. Às mulheres competia tratar dos doentes, chorar e rezar.

O estado desta minha irmã ia-se agravando e os tratamentos, incluindo os pneumotóraxes que vinha fazer a Lisboa, não respondiam como todos desejávamos. O espectro da terrível doença, que a todos atemorizava, e o perigo de contágio aos irmãos era mais uma preocupação para os pais. Havia os sanatórios e as alas de alguns hospitais, de onde poucos saíam curados. A nossa mãe não consentiu essa separação.

- Se a menina morrer, - dizia, angustiada mas firme, - morre aqui em casa, onde nada lhe vai faltar.

Reorganizou o espaço, com um quarto só para a enferma, onde, para além do médico e da enfermeira, só ela entrava para tudo o que fosse preciso e era sempre muito. Lavar a filha e mudar-lhe a roupa (que era escaldada com água a ferver e só depois lavada em alguidares à parte), fazê-la ingerir as refeições, vencendo um natural grande fastio (também a loiça desta filha era escaldada e lavada à parte), dar-lhe os medicamentos, vigiá-la várias vezes durante a noite e fazer-lhe companhia nos escassos momentos que tinha de algum vagar. Nós, os irmãos, estávamos autorizados a assomar à porta do quarto, para dizer adeus à mana, cá de longe, mas tínhamos de pôr um lenço, humedecido com álcool, a tapar a boca e o nariz.

Foi, então que, por milagre e em resposta às suas preces, no dizer da nossa mãe, surgiram no mercado dois medicamentos que inverteram uma situação galopante, com hemoptises frequentes, transformando-a numa caminhada lenta mas decisiva para a cura. Um belo dia o médico informou o meu pai do promissor tratamento com a recém-descoberta estreptomicina injectável, a par da toma, por via oral, do novíssimo e igualmente esperançoso ácido paraminossalissílico. O antibiótico era um pó branco em frasquinho de vidro com uma tampinha de borracha inviolável, onde a enfermeira injectava soro fisiológico retirando depois metade do soluto para a injecção diária da manhã, deixando a outra metade para a que vinha ministrar ao fim da tarde. Cem escudos era o custo de cada uma destes frasquinhos. Era mais do que o salário de três dias de trabalho do pai. Cada embalagem do outro fármaco, que vinha directamente da Suíça, Pamisal, assim se chamava, custava seiscentos escudos e tinha comprimidos para um mês. Neste quadro só se tratavam os ricos ou os que conseguissem crédito. Ao fim de mais de um ano, a terrível doença foi vencida. Sem menosprezar o papel dos medicamentos, a nossa mãe não se cansava de lembrar a providencial intervenção de Nossa Senhora e de Seu Divino Filho, que nunca a abandonaram. Era sua profunda convicção que tinham sido, sobretudo, as suas orações, que a haviam curado.

Não é possível evocar estes anos da vida da nossa família, sem render homenagem ao nosso pai que, pelo trabalho regular e suplementar, sem descanso nem desfalecimento, garantiu que nada nos faltasse, à nossa mãe que, em casa, sem descurar as múltiplas tarefas do dia-a-dia, foi enfermeira eficaz e incansável, e à nossa tia Cecília, também ela uma moura de trabalho, que, depois de enviuvar, veio para nossa casa ajudar a irmã a cuidar de uma ranchada de filhos.

A.M. Galopim de Carvalho. É professor catedrático jubilado pela Universidade de Lisboa, tendo assinado no Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências desde 1961. É autor de 21 livros, entre científicos, pedagógicos, de divulgação científica e de ficção e memórias. Assinou mais de 200 trabalhos em revistas científicas. Como cidadão interventor, em defesa da Geologia e do património geológico, publicou mais de 150 artigos de opinião. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural, entre 1993 e 2003, tempo em que pôs de pé várias exposições e interveio em mais de 200 palestras, pelo país e no estrangeiro.
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