É verdade que ainda estamos
longe da perfeição no bem-vindo e louvável Serviço Nacional de Saúde,
mas a nossa actual juventude ignora como eram os cuidados médicos e os
recursos farmacêuticos no tempo dos avós. Esta reflexão levou-me a
comparar o que temos no presente com o que marcou o tempo da minha
infância com capacidade de observar e interiorizar o mundo à minha
volta.Os problemas de saúde próprios da idade proporcionaram-me a
percepção da imensa distância que, nestes dois mais vectores
relacionados com a saúde, a medicina e a farmácia, separa o ontem do
hoje.
É claro que não conheço o suficiente de história da
medicina e da instituição farmacêutica que me permitam abordar este tema
em moldes historicamente fundamentados. Mas o que eu posso e sei fazer é
comparar o que, nestes domínios, se passava nesse tempo no seio da minha
família e procurar estabelecer a comparação com o que a minha
experiência nos centros de saúde, hospitais e farmácias da actualidade.
Nesse tempo, em que um AVC (acidente vascular
cerebral) tinha o nome de apoplexia, e que, para referir a difteria,
dizíamos garrotilho, os doentes, incluindo os acamados, eram tratados ou
morriam em casa e aí, também nasciam os filhos, com o apoio de
experientes comadres ou de parteiras. A maioria das mulheres além de
mães de filhos e de “donas de casa”, ocupavam-se dos doentes e dos
familiares velhos que, assim, não eram encaminhados e feitos
prisioneiros nos tristes lares da sociedade do presente.
Das mezinhas e remédios manipulados na “pharmácia”,
passou-se aos fármacos produzidos industrialmente pelas grandes
multinacionais. Amigdalites, otites, gripes, rubéola, sarampo, varicela,
parotidite (papeira) e gastroenterites, embora com nomes diferentes,
tudo isso andou lá por casa, tocando constantemente todos os filhos
(cinco, na altura), poucas vezes o pai, quase nunca a mãe. Foi um tempo
em que a única vacina obrigatória era a se ministrava contra a varíola,
enfermidade grave, tantas vezes fatal, conhecida por toda a gente com o
nome bexigas, pois deixava, nos poucos que lhe sobreviviam, inúmeras
pequenas cicatrizes das vesículas pustulentas espalhadas por todo o
corpo, particularmente visíveis no rosto.
Falava-se, de anginas, de dores de ouvidos, de
bexigas doidas, de trasorelho, de dores de barriga associadas ou não a
diarreia ou soltura, tudo situações que a mãe ultrapassou, pelos seus
próprios meios, uma vez por outra, com a ajuda do médico chamado a casa
e, nas situações mais preocupantes, com rezas a Nossa Senhora, velas e
promessas de cera ao Senhor Jesus dos Passos, na Igreja se São
Francisco.
Hoje, a imensa maioria dos médicos exerce a sua
actividade nos muitos e bons Hospitais e nem sempre bons Centros de
Saúde espalhados pelo país, numa frutuosa conquista do Serviço Nacional
de Saúde, muitos acumulam com consultório privado, onde só vai quem
poder pagar. Só alguns, sobretudo no interior do país, mais afastados
dos centros urbanos, perpetuam a figura do João Semana, no romance de
Júlio Dinis.
A medicina do presente tem ao seu alcance dezenas de
equipamentos que a moderníssima tecnologia concebeu e produziu para seu
auxílio na obtenção de tomografias, ecografias, ressonâncias magnéticas,
electrocardiogramas e encefalogramas, entre muitos outros exames,
recorrendo sistematicamente e dezenas de tipos de análises clínicas,
permitindo-lhe diagnósticos cada vez mais seguros.
O médico da minha infância observava a língua, os
dentes, os olhos e as orelhas do enfermo, apalpava-lhe a barriga e
auscultava-o sem estetoscópio, que era coisa que ainda se não usava. E
como equipamento de apoio ao diagnóstico pouco mais havia do que o
raios-X. Através de um pano, usado para o efeito, o “senhor doutor”
colava o ouvido às costas e ao peito do doente e, assim, por audição
directa, avaliava-lhe o estado dos pulmões. Na nossa casa, depois de
todos estes procedimentos, lavava as mãos no lavatório, por tradição no
quarto de dormir, preferindo o sabão azul ao sabonete que, dizia ele,
não desinfectava tanto, limpando-as, de seguida, numa outra toalha de
linho (o pano turco só mais tarde entrou na nossa vida) impecavelmente
branca e passada a ferro, que a nossa mãe tinha guardada para estas
ocasiões. Por fim, ia sentar-se à mesa da casa de jantar e passava a
receita com uma bela caneta de tinta permanente, coisa então de muito
poucos. Nem o nosso pai que, embora escriturário de profissão, ainda
usava caneta com aparo de molhar no tinteiro.
Muito longe dos dias de hoje, em que o médico, digita
o nome do fármaco ou o do respectivo princípio activo no teclado do
computador e que depois imprime, o clínico da minha infância escrevia a
receita numa folha de papel, onde indicava todos os produtos a incluir
na manipulação do remédio, precisando, para cada um, a respectiva
dosagem. Ao contrário dos dias de hoje, em que a dita indústria abastece
as farmácias, quase a cem por cento, com centenas de especialidades,
nesse tempo, tudo o que era sais, pós, xaropes, hóstias, pomadas,
supositórios e outros produtos, era manipulado na farmácia (botica para
os mais velhos) pelo boticário.
Uma purga com óleo de rícino ou um clister eram
tratamentos irrecusáveis sempre que aparecíamos com febre. Dizia o
clínico que, antes do mais, serviam para limpar os intestinos. Vinham,
depois, consoante os casos, os papelinhos de criogenina, para baixar a
febre, as fricções com vinagre aromático ou com álcool canforado, o
algodão iodado ou os emplastros de papas de linhaça e mostarda, a
escaldar, colocados sobre o peito. Se doíam as costas, pincelavam-se com
tintura de iodo ou aplicavam-se meia dúzia de ventosas.
Nas dores de ouvidos, e quão fortes eram, a minha mãe
procurava dar-nos alívio vertendo, lá para dentro, leite levemente
aquecido, o que, segundo me lembro, pouco ou nada resultava. As dores só
passavam quando a otite era debelada pelas defesas próprias do
organismo. Com as anginas era a mesma coisa. As correspondentes dores de
garganta, a febre e a dificuldade de engolir passavam ao fim do tempo
que durava a luta dos leucócitos sobre o Streptococcus, o agente
patogénico. Mas era crença generalizada que essas amigdalites se curavam
com as mezinhas caseiras e, assim, a mãe besuntava-nos a parte anterior
do pescoço, onde se localizavam as ínguas, com pomada de beladona, sobre
a qual se passava um lenço de algodão, de preferência encarnado, no
dizer da tia Floripes. Em complemento, gargarejávamos com água e sal,
chupávamos sumo de limão, engolíamos colherzinhas de mel e fazíamos
zaragatôas com azul de metilene. Este último tratamento, feito ao
deitar, era aceite como um brincadeira porque tingia de verde o xixi da
manhã seguinte. Ir para a escola com um lenço atado ao pescoço, a
cheirar a beladona não era agradável. Mas muito pior quando o tratamento
era feito com enxúndia de galinha que, com o mesmo propósito, era
preferida pela minha avó Isabel, mãe de muitos filhos e com larga
experiência no tratamento destas enfermidades. A gordura amarela destas
aves era guardada numa velha tigela de faiança de Sacavém, onde se
oxidava, tornando-se rançosa e mudando a cor para castanho. Era nesta
fase de apodrecimento, exalando um cheiro nauseabundo, que este unguento
estava, dizia ela, em condições de produzir o efeito desejado.
Havia, porém, situações graves como o garrotilho,
designação que se dava à difteria. Esta exigia o recurso ao médico, mas
havia uma norma nesse tempo, segundo a qual o doutor só era chamado se,
ao fim de três dias, o doente não desse mostras de recuperação, em
resposta aos tratamentos caseiros. Por vezes, este tipo de procedimento
tinha consequências fatais. Isto aconteceu com um meu vizinho e colega
de escola, vítima desta angina má. O estado da doença causada pelo
Corynebacterium diphtheriae não cedeu ao soro que lhe foi ministrado
tarde demais. Foi a consternação na minha rua. Morrera um menino.
Passados dois ou três dias sobre este trágico desfecho, comecei com
dores de garganta e muita febre. A sorte foi o estado de alerta em que a
minha mãe ficara, o que a fez chamar, de imediato, o nosso médico. Foi
já amodorrado na cama que vi surgir, na porta do quarto, Dr. Fonseca. De
farta bigodeira branca, a chegada do velho clínico confirmou os meus
receios, afinal, os mesmos da minha mãe. O velho médico tomou-me o
pulso, observou-me a garganta com o cabo de uma colher a servir de
abaixa-línguas e, depois, com a dita toalha de linho de permeio,
colou-me o ouvido às costas e ao peito, mandando-me respirar fundo,
parar de respirar, tossir e dizer trinta e três, à medida que ia
procurando, em audição directa, as respostas dos meus pulmões. A sua
conclusão, dita à minha mãe, numa voz descontraída que deu para eu ouvir
perfeitamente, foi:
- Temos aqui, dona Adília, mais um caso de angina
diftérica na nossa Escola de São Mamede.
Face a esta afirmação, recordo, afundei-me
resignadamente nos lençóis, convicto que teria o mesmo fim do Cardoso, o
meu condiscípulo acabado de enterrar. Pouco depois da saída do médico,
entrou a menina Rita, a enfermeira que habitualmente nos assistia na
aplicação de injecções, para me ministrar o correspondente soro e,
assim, as imunoglobulinas do fármaco venceram as toxinas produzidas pela
bactéria, mas encheram-me de urticária, situação que se resolveu depois
com Anafilarzan, o anti-histamínico então em uso.
Uma entorse, por exemplo, num artelho ou num pulso
resolvia-se, via de regra, com escaldões num alguidar com água quase a
ferver onde se dissolvia um punhado de sal. Aí se mergulhava o pé ou a
mão e parte do antebraço, procurando resistir ao intenso calor, o tempo
considerado necessário. Por último, apertava-se a articulação com uma
ligadura, no sentido de a imobilizar e reduzir o inchaço. Depois era
esperar uns dias até o incómodo passar. Nos casos mais difíceis de
resolver por esta via, a mãe recorria à tia Palmira, para que ela
“cosesse o torcegão”. Conheci a virtude desta senhora uma vez em que,
correndo no Largo dos Penedos, torci um pé no sítio do tornozelo.
Chegado a casa dela, levado pela minha mãe, a virtuosa senhora mandou-me
sentar à sua frente, numa cadeirinha baixa, pegou-me no pé magoado e
ajeitou-o sobre os seus joelhos. A seguir tirou-me a ligadura, encostou
um novelo de lã cinzenta à zona mais inchada e começou a “cosê-lo” com
uma agulha grossa onde enfiara um pedaço de lã do mesmo novelo, sem o
habitual nó na ponta do fio. A agulha e o fio iam entrando e saindo ao
ritmo de uma reza, dita em surdina, para mais ninguém ouvir. Recebida da
mãe à hora da morte, explicou, guardá-la-ia consigo enquanto vivesse e
só ao sentir-se morrer a transmitiria à mulher que ela entendesse
merecer tal virtude. Durante a cosedura e a intervalos de tempo, como se
de um refrão se tratasse, perguntava em voz bem audível.
- “O que é que eu coso?” – e a minha mãe respondia,
por mim.
- “Carne quebrada, nervo torto”. – e a senhora
confirmava – “Isso mesmo é que eu coso”.
Terminada a cosedura, repôs-me a ligadura e
recomendou-me repouso e mais uns escaldões. O incómodo acabou por passar
e tudo voltou ao normal alguns dias depois. Habituada que estava na
assistência à doença, numa casa de família com seis filhos, a minha mãe
assumiu, nas vezes em que isso foi necessário, o papel da tia Palmira.
Não conhecendo a tal reza, substituía-a por Padre Nossos e Avé Marias,
com idêntico bom resultado. Em sua muito convicta opinião, o que contava
era a fé com que se rezava.
Situações mais fora do comum na nossa casa também as
houve, mas essas, por sorte, surgiram num tempo com maiores recursos
médicos e farmacêuticos. De todas a mais grave, dolorosa e prolongada
foi a que atingiu a minha irmã mais velha, teria ela os seus dezassete
ou dezoito anos. Tosse, perda de peso e um estado febril permanente
foram o pré-aviso daquilo que ninguém queria acreditar. E o aviso
chegou, inesperado e assustador, no dia em que a menina tingiu de sangue
o lenço que levara à boca em mais um acesso de tosse. Tuberculose
pulmonar foi o cru diagnóstico que o médico transmitiu ao meu pai. Ao
pai e não à mãe, porque, na nossa cultura e nesse tempo, os assuntos
graves eram coisa de homens, e a tuberculose, nesses anos, era sentença
de morte quase certa. Às mulheres competia tratar dos doentes, chorar e
rezar.
O estado desta minha irmã ia-se agravando e os
tratamentos, incluindo os pneumotóraxes que vinha fazer a Lisboa, não
respondiam como todos desejávamos. O espectro da terrível doença, que a
todos atemorizava, e o perigo de contágio aos irmãos era mais uma
preocupação para os pais. Havia os sanatórios e as alas de alguns
hospitais, de onde poucos saíam curados. A nossa mãe não consentiu essa
separação.
- Se a menina morrer, - dizia, angustiada mas firme,
- morre aqui em casa, onde nada lhe vai faltar.
Reorganizou o espaço, com um quarto só para a
enferma, onde, para além do médico e da enfermeira, só ela entrava para
tudo o que fosse preciso e era sempre muito. Lavar a filha e mudar-lhe a
roupa (que era escaldada com água a ferver e só depois lavada em
alguidares à parte), fazê-la ingerir as refeições, vencendo um natural
grande fastio (também a loiça desta filha era escaldada e lavada à
parte), dar-lhe os medicamentos, vigiá-la várias vezes durante a noite e
fazer-lhe companhia nos escassos momentos que tinha de algum vagar. Nós,
os irmãos, estávamos autorizados a assomar à porta do quarto, para dizer
adeus à mana, cá de longe, mas tínhamos de pôr um lenço, humedecido com
álcool, a tapar a boca e o nariz.
Foi, então que, por milagre e em resposta às suas
preces, no dizer da nossa mãe, surgiram no mercado dois medicamentos que
inverteram uma situação galopante, com hemoptises frequentes,
transformando-a numa caminhada lenta mas decisiva para a cura. Um belo
dia o médico informou o meu pai do promissor tratamento com a
recém-descoberta estreptomicina injectável, a par da toma, por via oral,
do novíssimo e igualmente esperançoso ácido paraminossalissílico. O
antibiótico era um pó branco em frasquinho de vidro com uma tampinha de
borracha inviolável, onde a enfermeira injectava soro fisiológico
retirando depois metade do soluto para a injecção diária da manhã,
deixando a outra metade para a que vinha ministrar ao fim da tarde. Cem
escudos era o custo de cada uma destes frasquinhos. Era mais do que o
salário de três dias de trabalho do pai. Cada embalagem do outro
fármaco, que vinha directamente da Suíça, Pamisal, assim se chamava,
custava seiscentos escudos e tinha comprimidos para um mês. Neste quadro
só se tratavam os ricos ou os que conseguissem crédito. Ao fim de mais
de um ano, a terrível doença foi vencida. Sem menosprezar o papel dos
medicamentos, a nossa mãe não se cansava de lembrar a providencial
intervenção de Nossa Senhora e de Seu Divino Filho, que nunca a
abandonaram. Era sua profunda convicção que tinham sido, sobretudo, as
suas orações, que a haviam curado.
Não é possível evocar estes anos da vida da nossa
família, sem render homenagem ao nosso pai que, pelo trabalho regular e
suplementar, sem descanso nem desfalecimento, garantiu que nada nos
faltasse, à nossa mãe que, em casa, sem descurar as múltiplas tarefas do
dia-a-dia, foi enfermeira eficaz e incansável, e à nossa tia Cecília,
também ela uma moura de trabalho, que, depois de enviuvar, veio para
nossa casa ajudar a irmã a cuidar de uma ranchada de filhos.
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