REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Oitentose

Há dias o otorrinolaringologista que me observou, depois de ouvir o meu historial clínico e de olhar para a lista de fármacos que diariamente sou forçado a tomar, olhou para mim com um amistoso sorriso e disse:

- A sua doença, professor, é só uma e chama-se “oitentose”.

Rimos os dois enquanto ele prescreveu o que entendeu prescrever. Despedimo-nos, ele ficou onde estava, à espera do próximo cliente e eu voltei à minha rotina.

De facto, a “oitentose”, outros há que a referem pela sigla PDI, afectou-me consideravelmente a audição, a visão, a mobilidade e, em consequência disso, o convívio com os outros, com a sociedade que me rodeia. Em contrapartida, aumentou-me a capacidade de interiorização. E nesta interiorização, o natural envelhecimento do corpo conduz, inevitavelmente, ao problema da morte, que, no meu caso pessoal, é sentido com a maior tranquilidade, como um fim de uma etapa natural inscrita na natureza e na evolução da matéria.

São muitos os que, para seu conforto, se agarram à ideia de uma vida “do lado de lá” assegurada pelas respectivas almas. Não é, seguramente, o meu caso.

A Bíblia ensina que a alma, entendida como espírito, é uma emanação exclusiva do Homem a quem Deus deu vida no sexto dia da Criação, o que, segundo o texto sagrado, aconteceu há cerca de seis mil anos. Para os crentes, a alma nasce com o ser humano, cresce e evolui com ele, liberta-se dele no momento da morte do respectivo corpo e permanece para além dele. Nesta concepção, a morte física de alguém tem lugar no momento em que a alma abandona o corpo e parte para uma outra forma de existência, entendida como unicamente espiritual, imortal e, portanto, eterna.

A palavra alma radica no latim “anima” e significa o que anima e dela derivam palavras do nosso dia-a-dia, como animal, animado, animação, ânimo e animismo, a teoria que considera a alma, simultaneamente, princípio de vida psíquica e física ou orgânica. Nesta óptica, abandonado pela alma, o corpo fica sem animação e, portanto, morto.

No âmbito da grande maioria das religiões cristãs e não cristãs, a alma é uma entidade imaterial que continua a existir após a morte do corpo, destinada a fruir, para sempre, a graça celestial ou condenada ao eterno tormento. Os seguidores desta ideia poderão concluir que, uma vez libertas do corpo e dos interesses e compromissos inerentes à vida terrena, as almas se tornam as melhores críticas dos actos dos homens ou das mulheres que foram.  

Na linha da tradição religiosa pagã da antiga Grécia, Platão ensinava que as almas, na sua imortalidade, caminhavam para a perfeição, ganhando sabedoria e libertando-se dos medos e de outros defeitos humanos, entre os quais, a inevitável condição de errar. E essa sabedoria era interpretada por ele como a capacidade de conviver com os deuses por todo o sempre.

Para Lucrécio, poeta romano do século I a. C., a alma morria com o corpo de que foi complemento. Ele defendia que, após a morte, dela restava o que ele designou por “simulacrum”, entidade a que o povo chama fantasma e que muitos acreditam deambular entre os vivos. Nesta sua visão revela ter bebido na sabedoria grega, nomeadamente, na ideia epicurista de “eidolon”, termo grego que refere o mesmo tipo de entidade. 

A Igreja católica ensina que há tantas almas, quantas a pessoas nascidas na Terra.

Um parêntesis para dizer a quem não sabe que o termo católico tem origem na palavra grega katholikós, que significa Universal.

Há, portanto, as almas das pessoas que estão vivas e as de todas as que já morreram, digamos que desde Adão e Eva. Aceitando esta versão bíblica, o número de almas é imenso e não pára de crescer. Assim sendo, podemos perguntar «onde é que cabem tantas almas?»

A resposta afigura-se-me simples. O conceito de alma implica o seu carácter imaterial. Assim, as almas não têm dimensão física, ou seja, não têm massa nem volume, não têm peso e não ocupam espaço. São como o pensamento. Para elas não há gravidade nem distâncias, nem fronteiras, não há alto nem baixo, nem dia nem noite, nem quente nem frio. São ubiquistas, podendo estar, ao mesmo tempo e a qualquer momento, aqui e nos quasares mais longínquos, nos confins do Universo, a milhares de milhões de anos-luz.

Sendo a alma exclusiva do Homem e se tivermos em atenção a evolução do ser humano como espécie, desde o mais antigo primata, até ao Homo sapiens actual, passando pelos australopitecos e pelos outros hominídeos que os estudiosos têm descoberto e descrito, a pergunta que me ocorre fazer é «a partir de que estádio evolutivo da hominização, os nossos antepassados começaram a surgir acompanhados das respectivas almas?» Foi no Neanderthal, aparecido há umas centenas de milhares de anos, ou foi só no Cro-Magnon, que se pensa ter exterminado aqueles, há uns trinta ou quarenta mil anos?

A alma entendo-a pura e simplesmente como o psiquismo decorrente da vida animal. Sem sombra de dúvida, sabemos que os nossos antepassados exerceram actividade psíquica e, neste sentido, torna-se evidente que tiveram alma tal como eu a entendo. Mais ainda, muitos animais superiores revelam capacidades cerebrais amplamente investigadas em institutos de psicologia animal, pelo que podemos dizer que também têm alma, repito, no sentido que dou à palavra. Quem põe em causa a inteligência de um chimpanzé, de um cão, de um golfinho ou, mesmo, do Troodon formosus, o dinossáurio carnívoro, desaparecido há mais de sessenta milhões de anos?

Nesta concepção, quando morre o corpo morre a alma. O que perdura, por mais ou menos tempo, é a memória que dele, enquanto vivo, nos ficou. 

Por vezes, dou por mim a pensar que sou um materialista, no sentido filosófico da palavra, não no sentido vulgar e pejorativo de pessoa só interessada nos bens materiais. Um materialista na linha de Leucipo de Mileto e de Demócrito de Abdera, filósofos atomistas do século V, antes de Cristo, e precursores do materialismo, para os quais tudo o que existia era feito de átomos e vazio.

Até que algo me “ilumine”, como a tantos outros, sou de opinião de que tudo o que existe é matéria e que todos os fenómenos que observamos são o resultado de interacções materiais. O pensamento, ou seja, a actividade intelectual, psíquica ou espiritual, como alguns preferem dizer, cria as ideias, mas temos de concordar que essa actividade é processada por circuitos eléctricos entre células do cérebro, que sabemos serem entidades materiais feitas de carbono, oxigénio, hidrogénio, azoto e umas pitadas de outros elementos químicos.

Não sendo matéria, as ideias concebo-as como fruto de um estado muito avançado desta realidade física e biológica, que é o cérebro. São parte do intelecto (uns dirão do espírito) de quem as concebeu enquanto criatura viva e, portanto, radicam em algo bem material. Morto o cérebro são muitas as ideias que sobrevivem através das suas criações, por tempo menos ou mais dilatado. Leucipo e Demócrito, para citar apenas dois, morreram há mais de dois milénios, mas as suas ideias continuam bem vivas. As criações materiais, que podemos tocar ou ver, uma escultura ou uma pintura, por exemplo, encerram ideias que não morrem, a não ser que algo as destrua. Mas as criações imateriais morrem se não tiverem quem as mantenha vivas e as transmita.  

O pensamento filosófico ou o matemático só existem se forem registados num qualquer suporte material ou se alguém, como criatura viva, os recordar. 

A música existe mas só nos damos conta dela se for escrita, tocada, gravada ou cantada. Praticamente, perdeu-se toda a música que se cantou ou tocou na Antiguidade e na Idade Média, anteriormente à introdução dos pentagramas (pautas) e respectivas notações dos sons, no século XI. Mas sabemos que se fez música porque alguns dos instrumentos usados, como a lira e a cítara, chegaram até nós.

Com a poesia passa-se o mesmo. Se não for escrita ou registada perde-se. Têm sido muitos os poetas populares, que não sabendo escrever ou não tendo tido quem lhe escrevesse os versos que criaram, morrem, levando consigo toda a poética de que foram autores. Felizmente que, por terem sido escritas, chegaram até nós obras que classificamos de imorredouras e que dizemos serem as almas dos respectivos poetas. E é por isso que se fala da imortalidade de Píndaro, de Virgílio, Dante, Camões, O’Neill, Sofia, Ary…

 

A.M. Galopim de Carvalho. É professor catedrático jubilado pela Universidade de Lisboa, tendo assinado no Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências desde 1961. É autor de 21 livros, entre científicos, pedagógicos, de divulgação científica e de ficção e memórias. Assinou mais de 200 trabalhos em revistas científicas. Como cidadão interventor, em defesa da Geologia e do património geológico, publicou mais de 150 artigos de opinião. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural, entre 1993 e 2003, tempo em que pôs de pé várias exposições e interveio em mais de 200 palestras, pelo país e no estrangeiro.
Blogue: http://sopasdepedra.blogspot.com/