REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

2015 - ANO INTERNACIONAL DOS SOLOS

Falando dos solos (8)
 

No bloco anterior aludi à componente mineral do solo. Neste abordo a componente orgânica e as fracções líquida e gasosa que lhes estão associadas.

Componente orgânica do solo  

Na fracção orgânica do solo, para além das raízes vivas, dos restos de plantas vasculares mortas, de vermes, artrópodes, outros invertebrados e os produtos das respectivas decomposições após a morte, estão presentes micro-organismos, representados por bactérias autotróficas e heterotróficas, algas, fungos, protozoários e vírus. Das bactérias, merecem referência as que promovem a fixação do azoto e, entre os protozoários, são comuns os flagelados e as amibas. Todos estes seres e os seus restos, associados aos nutrientes minerais e regulados pela temperatura, humidade, arejamento, são fundamentais à vida do solo.

De entre a componente orgânica do solo, merece referência o húmus (1) ou humo (do latim humu). De cor castanha escura a negra, é constituído por partículas extremamente finas, coloidais, evidenciando um estado avançado de decomposição da matéria orgânica. Esta fracção, classificada entre os cerabetumes (2), corresponde ao que resta depois de a maior parte dos resíduos vegetais e animais se ter decomposto por acção biológica e química.

Entendido como um conjunto de substâncias resistentes à decomposição, dele fazem parte ácidos húmicos (solúveis em NaOH e insolúveis em HCl, com pH 1-2), ácidos fúlvicos (solúveis em NaOH e em HCl, com pH 1-2) e huminas, constituídas pelos resíduos insolúveis em NaOH.

Com elevada percentagem de água, o húmus é um material amorfo, poroso, pouco denso, com elevada capacidade de troca de bases (Na+, K+, Ca2+, Mg2+), bom controlador do pH e fonte fornecedora de azoto, enxofre e fósforo às plantas. O húmus é ainda um agente aglutinador das partículas minerais do solo e, na medida em que é um material escuro, actua como um bom absorvente da radiação solar, proporcionando elevações de temperatura e consequente aumento das velocidades das reacções químicas e bioquímicas. Uma outra característica particular do húmus é a formação de complexos organo-minerais, mais precisamente complexos argilo-húmicos, fundamentais nesta interface do mundo vivo com o mundo mineral e de  capital importância no bioquimismo do solo. Sem estes complexos (ditos absorventes), as raízes não absorvem o complemento alimentar disponível no solo.

Outros produtos resultantes da actividade e/ou da decomposição da componente orgânica do solo, como celulose, lenhina, proteínas, lípidos, ceras, resinas, ácidos orgânicos, álcoois, entre outros menos comuns, não fazem parte do húmus.

No que se refere aos elementos químicos ligados à componente orgânica do solo, merecem destaque o azoto, o carbono, o oxigénio, o hidrogénio, o enxofre e o fósforo. 

Entre os profissionais, fala-se de solos orgânicos ou húmicos, quando têm mais de 20% de componentes orgânica, em solos de granularidade grosseira, e mais de 30%. em solos de granularidade média a fina. Nos restantes casos fala-se de solos minerais.

Fase líquida do solo

Igualmente indispensável à vida do solo e à sua evolução e caracterização, esta fase é, praticamente, constituída por água - a chamada água do solo - na qual se distinguem: (1) água higroscópica, fixada ou absorvida por tensão superficial das partículas mais finas, em especial, as coloidais, não sendo utilizada directamente pelas plantas; (2) água capilar, que forma películas contínuas entre as partículas sólidas maiores e preenche os vazios mais pequenos (microporos), movendo-se por capilaridade, podendo ser absorvida pelas raízes; (3) água gravítica, que corresponde à água que circula nos vazios mais alargados (macroporos) e que, não estando sujeita a força atractiva por parte das partículas sólidas, se escoa por gravidade, pouco participando no metabolismo das plantas.

O teor de água no solo depende do clima, do relevo e da cobertura vegetal, aspectos que, como se sabe, têm inter-relações complexas e profundas. Ao entrar no solo, a água carrega-se de substâncias solúveis inorgânicas (Na+, K+, Ca2+, Mn2+, Cl-, SO42-, HCO3-, etc.), substâncias orgânicas e, inclusive, gases atmosféricos, constituindo o que se convencionou chamar solução do solo. A água que se infiltra no solo e pode aí ser veículo de processos químicos (abióticos) ou bioquímicos, depende do balanço hídrico que se estabeleça entre a água que cai (precipitação), a que escorre à superfície (água de escorrência), mais intensamente nas vertentes de maior declive, e toda a que se evapora directamente do solo ou pela transpiração através da folhagem da plantas (evapotranspiração). Depende ainda, em especial, da porosidade, que lhe permite escoar-se por gravidade, e da capacidade de retenção de alguns elementos da fase sólida (argila, húmus).

Por sua vez, a água do solo relaciona-se com o teor de argila, em geral, e com o tipo dos filossilicatos (caulinite, ilite, esmectites, clorites, interestratificados) que a compõem, a que não é alheia a temperatura ambiente.

No que diz respeito ao teor de água, distinguem-se solos saturados e solos insaturados, aspectos do maior interesse na evolução pedológica e até na sua utilização agrícola.

 

Fase gasosa do solo

Mais conhecida por ar do solo ou atmosfera do solo, esta fase é uma presença indispensável à vida deste corpo natural, igualmente importante na pesquisa das suas evolução (3) e características. Dela fazem parte: oxigénio, entre 15 e 20%, dióxido de carbono, de 0,2 a 45%, azoto, entre 79 e 81% (4), e vapor de água (saturado). Estes gases resultam do equilíbrio entre a penetração de ar atmosférico nos vazios do solo e a respiração ao nível das raízes das plantas e dos micro-organismos, com libertação de dióxido de carbono e consumo de oxigénio. Uma tal composição é, ainda, função: (a) da granularidade e porosidade do solo (dois aspectos que condicionam a permeabilidade); (b) da humidade, que reduz a permeabilidade, dificultando a renovação do oxigénio; (c) da matéria orgânica, que induz aumento dos teores de dióxido de carbono; (d) do clima, que também controla as actividades química e biológica, com implicações directas na razão O2/CO2.

(1) Um outro conceito de húmus, caído em desuso, proposto, em 1936, pelo bioquímico ucraniano, Selman Abraham Waksman (1888-1973), abrange a totalidade da matéria orgânica do solo, viva ou morta, decomposta ou não

(2) Caustobiólito insolúvel nos solventes habituais (sulfureto de carbono, tetracloreto de carbono e clorofórmio), composto de carbono, hidrogénio, pequenas quantidades de azoto e, eventualmente, enxofre. O elemento cera-, que compõe a palavra, radica no grego kéros, corno.

(3) Uma parte do ar está livre e outra parte está dissolvida na água do solo.

(4) No ar atmosférico estes valores são, respectivamente, 21%, 0,03% e 79%.

 

A.M. Galopim de Carvalho. É professor catedrático jubilado pela Universidade de Lisboa, tendo assinado no Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências desde 1961. É autor de 21 livros, entre científicos, pedagógicos, de divulgação científica e de ficção e memórias. Assinou mais de 200 trabalhos em revistas científicas. Como cidadão interventor, em defesa da Geologia e do património geológico, publicou mais de 150 artigos de opinião. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural, entre 1993 e 2003, tempo em que pôs de pé várias exposições e interveio em mais de 200 palestras, pelo país e no estrangeiro.
Blogue: http://sopasdepedra.blogspot.com/