Ver fazer, experimentar e conseguir fazer foram
constantes ao longo da minha vida. Já o escrevi e já o disse vezes sem
conta. Praticamente tudo me cativava, menos a escola, desinteressante,
austera, repressiva e enfadonha. Aprender gramática escrevendo no
caderno diário, a mando do professor, as definições de sujeito,
predicado, complemento circunstancial de lugar, nome predicativo do
sujeito e mais uma infinidade de conceitos não explicados, sem sentido,
ditados monótona e monocordicamente, nada tinha de apelativo. Pior ainda
era ter de decorar tudo aquilo e repeti-lo, tim-tim por tim-tim, frente
ao semblante carregado do mestre, de régua na mão a bater na perna a
cadência da recitação.
- Dá cá a mão, meu madraço. Agora levas já três
para alegrar a festa. E, amanhã, se não me trouxeres tudo na ponta da
língua, sem gaguejar, apanhas com mais meia dúzia de cada lado...
Era muito mais atraente
ficar horas a ver o Maurício, de joelho no chão, a escolher e a afeiçoar
as pedras da calçada, enfiando-as de seguida em covinhas que fazia na
terra com a peta do martelo e que, por fim, ajeitava com três ou quatro
pancadinhas de mestre, rematando sempre com uma mão cheínha de terra a
colmatar as imperfeições dos ajustes. Impressionante era, depois, ouvir
o baque pesado e cavo do maço a calcar o chão, numa repetição ritmada
pelo respirar ruidoso saído do peito do calceteiro, num vigor condizente
com o esforço posto em cada batida. Nessa altura eu já distinguia os
diversos tipos de martelos dos vários ofícios abertos à minha imensa
curiosidade no pequeno universo que foi a cidade e os seus arredores.
Martelo de sapateiro, com que brinquei na oficina do meu tio Almaça, de
funileiro, como o do Teófilo, à Porta Nova, de pedreiro, de estofador,
de ferrador, de carpinteiro, que aprendi a usar, pregando e tirando
pregos, com o mestre Roberto, na Rua do Segeiro, todos os martelos eram
diferentes entre si e nenhum era igual ao do Maurício, mais parecido com
o martelo de geólogo, profissão que nessa altura, já lá vão mais de sete
décadas, ninguém em Évora sabia o que era. Ferramenta esta que nem eu
sabia que ia ser a minha a partir do ano em que, já adulto, decidi
cursar Geologia, um gosto antigo só tarde concretizado. Bonitos e em
tamanho a condizer com a minha estatura de criança eram os martelinhos
do senhor Rego, relojoeiro, e o do senhor Sales, conceituado ourives da
cidade. Uma tal curiosidade e interesse por tudo o que era manual,
levou-me, mais tarde, nos anos cinquenta, a frequentar a oficina de
encadernação do Brito, um jovem da minha idade com quem estabeleci
amizade e me iniciou na arte. Grande mestre e referência entre os
últimos encadernadores douradores ainda vivos, com ele aprendi a coser
os cadernos, a fixar as capas de cartão e a armar as lombadas
encordoadas. Ali me adestrei no corte com a cesária mas nunca tive ordem
de usar a guilhotina. Sob a sua simpática e sábia orientação, cheguei a
encadernar alguns dos meus livros em meia-francesa, em pano e em
percalina, peças que guardo religiosamente.
Entre os inúmeros pólos
de atracção, alvos predilectos desta minha vocação de ver fazer e,
assim, aprender como se fazia, estava também a cozinha. Vários factores
foram determinantes deste meu interesse. Sendo o mais novo de cinco
filhos só fui para a escola aos nove anos, para a terceira classe. A
primeira e a segunda fi-las em casa, numa modalidade designada por
Ensino Doméstico, tendo por mestres a mãe, o pai e os irmãos mais
velhos. A minha mãe sabia como era a escola e achava-me demasiado
pequeno para enfrentar um tal desconforto. Com ela aprendi a ler na
«Cartilha Maternal» de João de Deus e toda a tabuada, a mesma que ainda
hoje me dispensa do abuso das calculadoras de bolso dos nossos actuais
estudantes. Assim, só com aquela idade enfrentei as “virtudes
pedagógicas” dos mestres-escola de então. Havia excepções, deve
ressalvar-se, mas eram poucas.
Nesse tempo era quase sempre eu que, diariamente,
fazia as compras na praça, no talho, na mercearia, para além de outros
mandados indispensáveis a uma casa de família. Tal azáfama foi-me
ensinando a conhecer os produtos alimentares, dos legumes à fruta,
passando pelas carnes e pelo peixe, a tal ponto que podia ir para a rua
com uma nota de vinte escudos na algibeira e ser eu que destinava.
Destinar era um verbo muito usado pela mãe para dizer, com uma só
palavra, uma porção delas: pensar o que iria ser o almoço ou o jantar
desse dia, em função do que havia e não havia, das qualidades e dos
preços, e decidir, na hora, ali, frente às bancas.
- Destina lá tu. Se as favas estiverem em conta –
dizia-me, já eu ia escada abaixo – não te esqueças de pedir coentros e
rama de alho fresca. Compra três quilos que, depois de descascadas,
ficam por menos de metade. E não queiras das grandes. Têm a pele dura e
são farinhentas. Pede das miudinhas. Se não houver das boas, traz
ervilhas. Escolhe das mais cheínhas e gradas. Tens é então de comprar
uma dúzia de ovos. E certifica-te que são frescos. Na semana passada
deram-te um gorado...
Era assim todos os dias. Peixe espada para grelhar, carapau
para fritar, pescada para fazer com arroz e espinafres. Ciba (choco
grande) para guisar com batatas. Tomate rijo para a salada ou bem maduro
para a tomatada. Da galinha viva para a cabidela (não te esqueças dos
cominhos), às ervas de cheiro e aos ingredientes para o cozido de
abóbora e grão, acabei por aprender muito do que todas as mães sabiam no
seu quotidiano de dar de comer à família. Na mercearia do Anselmo onde,
a brincar, dava ajuda de caixeiro, aprendi os usos a dar às especiarias,
a distinguir o bacalhau do escamudo, a avaliar as qualidades de tudo o
que se vendia a granel, tirado a corredor das tulhas, do açúcar às
massas, do arroz ao feijão e ao grão. Aprendi a estimar o grau do azeite
pela cor e pelo cheiro. Um outro factor influente no meu gosto pela
culinária tinha-o em casa, na cozinha, ouvindo a mãe que falava das
quantidades, dos tempos e dos cuidados a ter e me explicava todos os
porquês e os para quês, os quando e os quantos, os como e os onde.
- A asa da frigideira fica sempre lá para trás, não
vá a gente dar-lhe um encontrão. E, olha – advertia, de dedo em riste e
olhar muito sério – não há queimadura pior do que a do azeite a ferver.
Para engrossar o caldo com farinha nunca é o frio sobre o quente, pois
dessa maneira formam-se umas bolinhas de farinha cozida que já não se
desfazem. Olha, é sempre assim, - dizia, enquanto tirava com o caço o
caldo a ferver da panela e o vertia em fio sobre uma tigela onde diluíra
a farinha em água fria. Outras vezes, estando a preparar um cozido,
alertava-me – A couve tem de ser escaldada primeiro – e, mais adiante, –
os enchidos são cozidos à parte, senão deixam um cheiro a fumeiro que
estraga tudo.
Um terceiro factor de interesse pela arte de
Pantagruel foi talvez a minha própria natureza de grande apreço pelos
bons paladares e a convicção de que não há melhores aromas do que os que
se exalam dos tachos e panelas ao lume, aromas que enchem as cozinhas e
dilatam as narinas. E todos sabemos como os aromas prenunciam os
paladares...
Quando os onze anos me levaram para o liceu,
acabou-se para a minha mãe a ajuda que lhe dava em casa neste capítulo
do aprovisionamento alimentar e terminou, para mim, o contacto diário
com a cozinha, um saber que, sem me ter dado conta, mantive guardado
como uma semente que só muito mais tarde germinou e deu frutos. Depois
de adulto, já casado, em todas as situações em que se proporcionou pôr o
avental, todo esse repositório veio ao de cima. Três anos em Paris, cada
um a estudar para seu lado e a residirmos na vizinhança da velha e
conhecida rue Mouffetard, onde ainda decorre o mais tradicional mercado
parisiense, deram-nos, agora aos dois, novas possibilidades de explorar
a arte dos sabores.
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