Conheci pessoalmente o Padre Lima quando, soldado cadete no Curso de
Oficiais Milicianos, de Vendas Novas, me deu boleia para Évora, numa 6ª
feira, ao fim da tarde, corria o ano de 1962. Para mim, o melhor do
Quartel era o portão à hora da saída; o melhor da então vila de Vendas
Novas era o comboio e a estrada nacional, em qualquer dos sentidos, e o
melhor dia da semana era a 6ª feira, depois da instrução, quando fazia a
mala para gozo do fim-de-semana.
Nesse tempo, qualquer automobilista que circulasse na estrada dava
boleia a um militar fardado, e foi assim que, vezes sem conto, poupei o
custo da passagem. Naquele dia fiz sinal a uma furgoneta que parou
escassos metros à frente e de lá saiu um homem de meia-idade, de batina
negra até aos tornozelos, grande na estatura e na compleição, de aspecto
vigoroso e sorridente.
- Entra. – Disse, num tom amigável.
Era o padre de Monte Trigo, de quem eu já ouvira falar, mas que ainda
não tinha tido oportunidade e o prazer de conhecer pessoalmente.
Sentado no banco da frente, entre ele e o motorista, agradeci, disse o
meu nome e a minha condição de eborense a cumprir o serviço militar.
- Vamos apertados, - desculpou-se o eclesiástico - mas lá atrás não há
lugar para mais nada. Fomos a Lisboa buscar estas cadeiras para o Centro
Social da paróquia. São da FNAT, cedidas provisoriamente. Sabes como é?
Um provisório para sempre. Não as podem dar, assim, sem mais nem menos.
Estão registadas no inventário. Emprestaram-nas e pronto. Não se fala
mais nisso.
- Foram “emprestadadas”. – Respondi, procurando fazer humor a condizer
com a boa disposição do padre.
- Isso mesmo! - Anuiu num tom de cumplicidade. - Pedi no ministério. O
ministro, de quem sou amigo, pediu ao director e assim foi. Já aqui as
levo. Mas é só uma parte. Para a semana, volto lá a buscar o resto.
- É para isso que servem os amigos – entendi dizer, apenas para não
ficar calado.
- Tenho feito lá umas inovações e o pessoal tem correspondido, sobretudo
as mulheres. Algumas mais arredias não aparecem tanto porque os maridos
não as
deixam ir. Por vontade delas arregaçavam as mangas e levavam tudo à
frente. Têm fibra estas alentejanas. Eles são mais custosos de aderir.
Ninguém lhes tira da cabeça que o padre está mais do lado dos ricos do
que do lado do povo. Mas eu não desisto. Ando a ver se consigo que o
grupo coral passe a ensaiar lá no Centro Social, mas os malandros
preferem ensaiar na taberna. Mas garanto-te que hão-de ir ao rego, nem
que seja à porrada. Eu não me chame Manuel! – Rematou feliz.
O padre Lima tinha a força de dois ou três homens juntos e a sua coragem
e entusiasmo fizeram história nas
redondezas. Era notado e respeitado pela frontalidade, valentia e dádiva
pessoal que punha nas muitas acções humanitárias que levava a cabo. Com
influência nos corredores do poder, inclusive em Lisboa, conseguia levar
a bom termo muitos dos projectos de solidariedade social em que se
empenhava. Entre os mais conservadores, latifundiários e outros homens
ricos, era apontado como comunista, mas ninguém se atrevia a
enfrentá-lo.
Uns dois anos atrás, andando eu e o meu irmão Mário a fazer campismo
selvagem entre Viana do Alentejo e a Serra de Portel, parámos numa venda
para comprar pão. Um pão caseiro, branco de trigo, de côdea dourada,
estaladiça, saído do forno, bem cedinho naquela manhã.
- E dê-me também um desses queijinhos. Um desses mais amarelinhos, a
ressumar gordura e com as marcas do caniço. Esse aí, sim senhor, mais
espalmado. São os melhores.
Ao nosso lado, uma mulher que entrara antes de nós, dizia para o homem
do outro lado do balcão, na sequência de uma conversa de que não
tínhamos ouvido o começo.
- Há aí quem diga mal do padre, mas a gente não quer cá saber da vida do
raio do homem. O certo é que ele tem sido aí o amparo do povo. Disso não
haja dúvida e isso é que interessa ao pessoal.
- Lá isso é verdade, tia Rosalina – anuiu o dono da venda. – E toda a
gente o respeita.
- Não anda aí a moer o pessoal com missas, procissões e todas essas
coisas de igreja em que as beatas são mestras. Mas não há ninguém que
tenha ido ter com o padre, numa aflição, em procura de ajuda, e que se
possa queixar de ele não lhe ter valido. Olhe só a obra que ele tem
feito lá na paróquia. A gente cá do campo passa aí anos em que não tem
de dar de comer aos filhos. É com cada “barrigada de fome”, como nós cá
dizemos, que só Deus e vossemecê sabem. Ele, porque tudo vê e vossemecê
porque tem aí, no livro dos fiados, tudo o que o pessoal lhe deve.
- Então não sei, tia Rosalina? Qualquer dia sou obrigado a fechar a
porta. Agora sou eu a dever e a ter de pagar aos fornecedores e não sei
onde ir arranjar o dinheiro.
- Nem lhe passe pela cabeça acabar com a venda, criatura de Deus! Então
é que a gente morre de fome.
- Fique descansada, tia Rosalina, que não fecho. Os credores que
esperem, que é o que eu faço.
Embalada na conversa, a mulher alargava o nó do lenço, em busca do ar
que parecia faltar-lhe e continuava: - Quem é que resiste quando ele dá
uma merenda a quem quiser ir lá ao Centro Social? Crianças e crescidos.
Por vontade dele, pode estar certo, amigo Tristão, todos os dias
tínhamos ali uma sopinha quente e um tassalho de pão com qualquer
coisita a fazer de conduto. E o salão que ele lá fez? Vossemecê já o
viu? Um sítio para festas como nunca houve cá na terra. Uma beleza. Até
bailes ele lá deixa fazer para a rapaziada nova.
- Eu já lá fui uma vez e gostei do que vi.
- Se for preciso, o homem mete-se a caminho de Évora ou de Lisboa para
resolver qualquer situação. E é que resolve mesmo. Mas ai daquele ou
daquela que lhe falte ao respeito ou lhe queira fazer o ninho atrás da
orelha. O raio do padre não está cá com meias medidas, nem com águas
bentas. Ai, valha-me Deus! Se for mulher dá-lhe cá um sermão que ela nem
sabe onde se há-de meter. Se for homem, grande ou pequeno nem queira
saber, amigo Tristão! Se for
preciso, prega-lhe uma surra que
o desgraçado nem tem tempo de perceber donde lhe veio. Aí, nem parece
que é padre. Nem a batina o atrapalha.
- Também já ouvi dizer – anuiu o dono da venda, interessado em puxar
pela língua da freguesa.
- Vossemecê sabe que ele, em rapaz, foi moço de forcados?
- Sei, sim senhora. Pegador de touros a sério, desses de quinhentos
quilos e mais. E diz-se que era dos mais valentes. E também se diz que
foi operário no Brasil. A tia Rosalina sabia?
A esta informação, que a apanhou de surpresa, a mulher atalhou, com um
brilho no olhar de quem vê uma luz a iluminar-lhe o espírito. -
Operário? Então é isso. O homem entende o sentir do povo miúdo. Fala o
mesmo falar da gente. Ih, padre duma figa! Operário? Tinha de ser! –
Repetia satisfeita, já de saída, ainda presa aquela revelação.
Interessados naquela conversa tínhamos pedido umas gasosas, que fomos
beberricando, até que teve fim e a mulher se foi embora. Pagámos,
despedimo-nos e saímos. E era só isto o que eu sabia acerca do Padre
Lima.
Entalado entre ele e o motorista, íamos falando de coisas do dia-a-dia
da paróquia e da tropa.
- A pobreza ali é muita – comentava. - Não consigo acorrer a tanta
necessidade. O alentejano não é muito de Padre Nossos e Avé Marias. São
poucos os homens que frequentam a Igreja. As mulheres ainda lá vão. Nem
todas e nem sempre. Não sentem a obrigação de participar na Eucaristia.
Não vão ao confessionário e, que eu me lembre, só duas ou três comungam,
mas é lá de tempos a tempos. Os noivos casam por igreja e depois
baptizam os filhos, mas fazem-no por tradição, sem saber o significado
desses sacramentos. Mas é tudo boa gente. Às vezes lá tenho de me zangar
com algum mais tresmalhado, mas em geral são dóceis. E agora já sabem
que podem contar cá com o “padreca”, como dizem alguns dos mais
resistentes.
- O Alentejo é muito diferente da metade norte do país. Disse eu, aquilo
que sempre ouvi dizer. É na paisagem, é nos cantares, é nos comeres e
também no que diz respeito às coisas da Fé. Estão escaldados. Ao longo
de gerações que têm visto a Igreja ao lado do poder e dos ricos.
- Infelizmente isso tem a sua ponta de verdade. Mas há excepções. Há uns
meses houve lá um reboliço com a GNR por causa de um desentendimento
entre um lavrador abastado e uma dúzia de assalariados. O patrão chamou
a guarda e os trabalhadores levaram porrada de criar bicho. Safaram-se
os que fugiram para dentro da Igreja. A guarda bem queria deitar-lhes a
mão, mas ali quem manda sou eu. Lá consegui deitar água na fervura, e a
coisa ficou por ali. Sobretudo, aqui no Alentejo, a GNR não é nada
meiga. Tem ordem para arrear a valer. E tu? - Virou-se ele para mim, -
Como é que te vais dando lá no quartel? Não te armes em esperto, quando
não, lixas-te. Não te deixes montar, mas também faças ondas.
E foi falando da minha vida fardada que consumimos o resto do tempo da
viagem. Chegados às portas da cidade, o padre Lima fez sinal ao
motorista para estacionar e deixar-me sair.
- Se não te importas, ficas aqui. Nós vamos pela circunvalação. Escuso
de me meter na cidade. Passa bem. Até que Deus queira. Se precisares de
alguma coisa, diz. Não conheço o teu comandante mas conheço quem está
muito acima dele.
A. M. Galopim de
Carvalho
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