REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

O Padre Lima

Conheci pessoalmente o Padre Lima quando, soldado cadete no Curso de Oficiais Milicianos, de Vendas Novas, me deu boleia para Évora, numa 6ª feira, ao fim da tarde, corria o ano de 1962. Para mim, o melhor do Quartel era o portão à hora da saída; o melhor da então vila de Vendas Novas era o comboio e a estrada nacional, em qualquer dos sentidos, e o melhor dia da semana era a 6ª feira, depois da instrução, quando fazia a mala para gozo do fim-de-semana.

Nesse tempo, qualquer automobilista que circulasse na estrada dava boleia a um militar fardado, e foi assim que, vezes sem conto, poupei o custo da passagem. Naquele dia fiz sinal a uma furgoneta que parou escassos metros à frente e de lá saiu um homem de meia-idade, de batina negra até aos tornozelos, grande na estatura e na compleição, de aspecto vigoroso e sorridente.

- Entra. – Disse, num tom amigável.

Era o padre de Monte Trigo, de quem eu já ouvira falar, mas que ainda não tinha tido oportunidade e o prazer de conhecer pessoalmente.

Sentado no banco da frente, entre ele e o motorista, agradeci, disse o meu nome e a minha condição de eborense a cumprir o serviço militar.

- Vamos apertados, - desculpou-se o eclesiástico - mas lá atrás não há lugar para mais nada. Fomos a Lisboa buscar estas cadeiras para o Centro Social da paróquia. São da FNAT, cedidas provisoriamente. Sabes como é? Um provisório para sempre. Não as podem dar, assim, sem mais nem menos. Estão registadas no inventário. Emprestaram-nas e pronto. Não se fala mais nisso.

- Foram “emprestadadas”. – Respondi, procurando fazer humor a condizer com a boa disposição do padre.

- Isso mesmo! - Anuiu num tom de cumplicidade. - Pedi no ministério. O ministro, de quem sou amigo, pediu ao director e assim foi. Já aqui as levo. Mas é só uma parte. Para a semana, volto lá a buscar o resto.

- É para isso que servem os amigos – entendi dizer, apenas para não ficar calado.

- Tenho feito lá umas inovações e o pessoal tem correspondido, sobretudo as mulheres. Algumas mais arredias não aparecem tanto porque os maridos não as

deixam ir. Por vontade delas arregaçavam as mangas e levavam tudo à frente. Têm fibra estas alentejanas. Eles são mais custosos de aderir. Ninguém lhes tira da cabeça que o padre está mais do lado dos ricos do que do lado do povo. Mas eu não desisto. Ando a ver se consigo que o grupo coral passe a ensaiar lá no Centro Social, mas os malandros preferem ensaiar na taberna. Mas garanto-te que hão-de ir ao rego, nem que seja à porrada. Eu não me chame Manuel! – Rematou feliz.

O padre Lima tinha a força de dois ou três homens juntos e a sua coragem e  entusiasmo fizeram história nas redondezas. Era notado e respeitado pela frontalidade, valentia e dádiva pessoal que punha nas muitas acções humanitárias que levava a cabo. Com influência nos corredores do poder, inclusive em Lisboa, conseguia levar a bom termo muitos dos projectos de solidariedade social em que se empenhava. Entre os mais conservadores, latifundiários e outros homens ricos, era apontado como comunista, mas ninguém se atrevia a enfrentá-lo.

Uns dois anos atrás, andando eu e o meu irmão Mário a fazer campismo selvagem entre Viana do Alentejo e a Serra de Portel, parámos numa venda para comprar pão. Um pão caseiro, branco de trigo, de côdea dourada, estaladiça, saído do forno, bem cedinho naquela manhã.

- E dê-me também um desses queijinhos. Um desses mais amarelinhos, a ressumar gordura e com as marcas do caniço. Esse aí, sim senhor, mais espalmado. São os melhores.

Ao nosso lado, uma mulher que entrara antes de nós, dizia para o homem do outro lado do balcão, na sequência de uma conversa de que não tínhamos ouvido o começo.

- Há aí quem diga mal do padre, mas a gente não quer cá saber da vida do raio do homem. O certo é que ele tem sido aí o amparo do povo. Disso não haja dúvida e isso é que interessa ao pessoal.

- Lá isso é verdade, tia Rosalina – anuiu o dono da venda. – E toda a gente o respeita.

- Não anda aí a moer o pessoal com missas, procissões e todas essas coisas de igreja em que as beatas são mestras. Mas não há ninguém que tenha ido ter com o padre, numa aflição, em procura de ajuda, e que se possa queixar de ele não lhe ter valido. Olhe só a obra que ele tem feito lá na paróquia. A gente cá do campo passa aí anos em que não tem de dar de comer aos filhos. É com cada “barrigada de fome”, como nós cá dizemos, que só Deus e vossemecê sabem. Ele, porque tudo vê e vossemecê porque tem aí, no livro dos fiados, tudo o que o pessoal lhe deve.

- Então não sei, tia Rosalina? Qualquer dia sou obrigado a fechar a porta. Agora sou eu a dever e a ter de pagar aos fornecedores e não sei onde ir arranjar o dinheiro.

- Nem lhe passe pela cabeça acabar com a venda, criatura de Deus! Então é que a gente morre de fome.

- Fique descansada, tia Rosalina, que não fecho. Os credores que esperem, que é o que eu faço.

Embalada na conversa, a mulher alargava o nó do lenço, em busca do ar que parecia faltar-lhe e continuava: - Quem é que resiste quando ele dá uma merenda a quem quiser ir lá ao Centro Social? Crianças e crescidos. Por vontade dele, pode estar certo, amigo Tristão, todos os dias tínhamos ali uma sopinha quente e um tassalho de pão com qualquer coisita a fazer de conduto. E o salão que ele lá fez? Vossemecê já o viu? Um sítio para festas como nunca houve cá na terra. Uma beleza. Até bailes ele lá deixa fazer para a rapaziada nova.

- Eu já lá fui uma vez e gostei do que vi.

- Se for preciso, o homem mete-se a caminho de Évora ou de Lisboa para resolver qualquer situação. E é que resolve mesmo. Mas ai daquele ou daquela que lhe falte ao respeito ou lhe queira fazer o ninho atrás da orelha. O raio do padre não está cá com meias medidas, nem com águas bentas. Ai, valha-me Deus! Se for mulher dá-lhe cá um sermão que ela nem sabe onde se há-de meter. Se for homem, grande ou pequeno nem queira saber, amigo Tristão!  Se for preciso,  prega-lhe uma surra que o desgraçado nem tem tempo de perceber donde lhe veio. Aí, nem parece que é padre. Nem a batina o atrapalha.

- Também já ouvi dizer – anuiu o dono da venda, interessado em puxar pela língua da freguesa.

- Vossemecê sabe que ele, em rapaz, foi moço de forcados?

- Sei, sim senhora. Pegador de touros a sério, desses de quinhentos quilos e mais. E diz-se que era dos mais valentes. E também se diz que foi operário no Brasil. A tia Rosalina sabia?

A esta informação, que a apanhou de surpresa, a mulher atalhou, com um brilho no olhar de quem vê uma luz a iluminar-lhe o espírito. - Operário? Então é isso. O homem entende o sentir do povo miúdo. Fala o mesmo falar da gente. Ih, padre duma figa! Operário? Tinha de ser! – Repetia satisfeita, já de saída, ainda presa aquela revelação.

Interessados naquela conversa tínhamos pedido umas gasosas, que fomos beberricando, até que teve fim e a mulher se foi embora. Pagámos, despedimo-nos e saímos. E era só isto o que eu sabia acerca do Padre Lima. 

Entalado entre ele e o motorista, íamos falando de coisas do dia-a-dia da paróquia e da tropa.

- A pobreza ali é muita – comentava. - Não consigo acorrer a tanta necessidade. O alentejano não é muito de Padre Nossos e Avé Marias. São poucos os homens que frequentam a Igreja. As mulheres ainda lá vão. Nem todas e nem sempre. Não sentem a obrigação de participar na Eucaristia. Não vão ao confessionário e, que eu me lembre, só duas ou três comungam, mas é lá de tempos a tempos. Os noivos casam por igreja e depois baptizam os filhos, mas fazem-no por tradição, sem saber o significado desses sacramentos. Mas é tudo boa gente. Às vezes lá tenho de me zangar com algum mais tresmalhado, mas em geral são dóceis. E agora já sabem que podem contar cá com o “padreca”, como dizem alguns dos mais resistentes.

- O Alentejo é muito diferente da metade norte do país. Disse eu, aquilo que sempre ouvi dizer. É na paisagem, é nos cantares, é nos comeres e também no que diz respeito às coisas da Fé. Estão escaldados. Ao longo de gerações que têm visto a Igreja ao lado do poder e dos ricos.

- Infelizmente isso tem a sua ponta de verdade. Mas há excepções. Há uns meses houve lá um reboliço com a GNR por causa de um desentendimento entre um lavrador abastado e uma dúzia de assalariados. O patrão chamou a guarda e os trabalhadores levaram porrada de criar bicho. Safaram-se os que fugiram para dentro da Igreja. A guarda bem queria deitar-lhes a mão, mas ali quem manda sou eu. Lá consegui deitar água na fervura, e a coisa ficou por ali. Sobretudo, aqui no Alentejo, a GNR não é nada meiga. Tem ordem para arrear a valer. E tu? - Virou-se ele para mim, - Como é que te vais dando lá no quartel? Não te armes em esperto, quando não, lixas-te. Não te deixes montar, mas também faças ondas.

E foi falando da minha vida fardada que consumimos o resto do tempo da viagem. Chegados às portas da cidade, o padre Lima fez sinal ao motorista para estacionar e deixar-me sair.

- Se não te importas, ficas aqui. Nós vamos pela circunvalação. Escuso de me meter na cidade. Passa bem. Até que Deus queira. Se precisares de alguma coisa, diz. Não conheço o teu comandante mas conheço quem está muito acima dele.

A. M. Galopim de Carvalho

A.M. Galopim de Carvalho. É professor catedrático jubilado pela Universidade de Lisboa, tendo assinado no Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências desde 1961. É autor de 21 livros, entre científicos, pedagógicos, de divulgação científica e de ficção e memórias. Assinou mais de 200 trabalhos em revistas científicas. Como cidadão interventor, em defesa da Geologia e do património geológico, publicou mais de 150 artigos de opinião. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural, entre 1993 e 2003, tempo em que pôs de pé várias exposições e interveio em mais de 200 palestras, pelo país e no estrangeiro.
Blogue: http://sopasdepedra.blogspot.com/