REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

...onde a terra se acaba e o mar começa
Luís Vaz de Camões

A propósito dos trabalhos visando o crescimento artificial da Praia de Dona Ana (Lagos) ocorre-me lembrar que a adulteração da paisagem física em nome do desenvolvimento é um facto que está a atingir proporções preocupantes.

Os reflexos no litoral da intervenção do homem são hoje bem visíveis e as soluções encontradas, para os minimizar ou eliminar, nem sempre são as melhores. A conclusão a tirar desta realidade é a de que não se pode continuar a planear o litoral de costas viradas para os conhecimentos que a ciência já está apta a fornecer. Há, pois, que saber conviver com o mar e respeitar os seus códigos que já conhecemos com razoável pormenor. No sentido de minimizar estes inconvenientes, tem-se recorrido a ensaios realizados em tanques especiais, onde, em modelos reduzidos, se procuram simular as condições naturais e as alterações a introduzir, a fim de estudar os seus efeitos. Modernamente, com o desenvolvimento dos meios informáticos, estão a utilizar-se, com idênticos propósitos, modelos matemáticos, mais rápidos e menos onerosos.

Seria desejável que decisores, jornalistas e comentadores falassem a mesma linguagem. Pareceu-me, pois, útil reunir nestas linhas o essencial do que dizem os estudiosos desta temática.

Dizem eles que a geometria e as características dinâmicas desta franja “onde a terra se acaba e o mar começa” resultam de um conjunto de factores e condicionantes naturais, a que se têm vindo a sobrepor-se outros, próprios da civilização.

Para além das oscilações globais do nível do mar, apenas sensíveis em intervalos de tempo que excedem largamente a nossa longevidade, sobressaem, por serem mais visíveis:  (1) a natureza e a estrutura das rochas e a sua maior ou menor vulnerabilidade à erosão; (2) o clima, em especial no que diz respeito à pluviosidade, à temperatura e aos ventos; (3) a intensidade e orientação das vagas; (4) a amplitude das marés e (5) as  correntes marinhas litorais; (6) todo e qualquer tipo de intervenção humana, como sejam portos, molhes e outros tipos de enrocamentos,  exploração de areias, barragens (que impedem o fornecimento de inertes), entre outros.

Esperemos que, no que diz respeito à Praia de Dona Ana, os necessários parâmetros naturais tenham sido avaliados.

No essencial, o comportamento desta interface do mar com a terra define-se pelas leis naturais, ou seja, pelas leis da física e da química, sempre subjacentes aos processos geológicos, biológicos ou os decorrentes de quaisquer acções do génio humano e que não podemos, nunca, modificar.

Entende-se por litoral não só a faixa emersa da linha de costa, geralmente limitada do lado de terra por uma arriba ou por uma rotura de declive, mas também a faixa imersa, limitada inferiormente por uma linha abaixo da qual o fundo marinho não é significativamente perturbado pela ondulação habitual na região (até 1 a 2 m de altura). Na nossa costa ocidental, este limite inferior ronda a profundidade de 10 m, sendo de 6 m, em média, na costa  algarvia. 

No que se refere ao dinamismo dos processos litorais, destaca-se a ondulação, que não é mais do que a agitação da camada superficial das águas de uma determinada área do mar (área de geração) soprada pelo vento. A ondulação transporta quase toda essa energia, sob a forma de ondas ou vagas, a caminho do litoral. Ao aproximar-se de terra, e à medida que a profundidade se reduz, a crista da onda torna-se, progressivamente, assimétrica, tombando para a frente até rebentar.  Esta energia acaba, assim, por ser consumida quer na rebentação, quer nas correntes litorais a que dá origem.

Consequência directa das interacções gravíticas entre a Terra e os corpos celestes que lhe estão próximos (em particular o Sol e a Lua), as marés representam uma outra fonte de energia fornecida às águas do mar. No seu constante e ritmado movimento ascendente e descendente, avançando e recuando face ao litoral, penetrando nas reentrâncias da linha de costa, para delas sair e tornar a entrar, num vaivém interminável, as marés são geradoras de correntes susceptíveis de exercer erosão, transporte e redeposição de sedimentos, quer junto ao litoral, onde são mais visíveis, e conhecidas por correntes de maré, quer na plataforma continental, nomeadamente no seu bordo distal, na transição com a vertente continental.

Para além destas correntes, outras há com interferência na morfologia e na sedimentação litorais. Entre elas destacam-se as  geradas pela rotação da Terra e por diferenças de temperatura e de salinidade. 

O vento, a ondulação dele resultante e as correntes litorais a que dão origem, por um lado e, por outro, as marés e respectivas correntes são os principais agentes da dinâmica actuante no  litoral e, também, na plataforma continental (a chamada zona nerítica).

As características físicas da ondulação (altura, comprimento da onda, período, frequência, etc.) reflectem a energia disponível e dependem da intensidade do vento, da duração da sua incidência e da extensão e distância ao litoral de área soprada. Com poucas perdas de energia durante a propagação, as vagas atingem os litorais, exercendo aí erosão e transporte de sedimentos. Nos fundos arenosos não consolidados, situados a profundidades susceptíveis de sofrerem as acções das vagas, estas remobilizam uma parte mais superficial da cobertura móvel, em geral areias de quartzo e bioclásticas (conchas de moluscos trituradas), promovendo ressedimentação muito particular, reconhecida pelas marcas de ondulação  (ôndulas) que lhes são próprias. 

As vagas, desencadeadas por acção do vento, transmitem até ao litoral a energia que dele recebem e têm a sua acção erosiva grandemente potenciada pelo efeito abrasivo dos materiais (areias, seixos , blocos) que põem em movimento. Em resultado desta acção formam-se os litorais de erosão, ou catamórficos, caracterizados por arribas, ou falésias alcantiladas, que recuam à medida que aumenta a plataforma litoral ou de abrasão marinha. Deste recuo restam como testemunhos pontuações rochosas como, por exemplo, as que emergem do mar frente à praia de Dona Ana.

 Quando é o mar que recua, o litoral diz-se anamórfico ou de acumulação. Têm aqui lugar a praia, em geral arenosa (mas às vezes cascalhenta), e as dunas. Na sequência desta regressão do mar, a arriba fica liberta da erosão das vagas, passando a evoluir em ambiente subaéreo, até adquirir um perfil de equilíbrio ditado pela natureza e estrutura das rochas e pelas condições climáticas ambientais.

A praia é, na maior parte dos casos, uma acumulação instável de areia e algumas vezes de cascalho, seixos ou calhaus (três modos de referir os clastos mais grosseiros), no geral arredondados pela abrasão. Representa um ambiente onde o binómio morfologia-sedimentação se caracteriza por grande instabilidade. Qualquer modificação natural ou artificial introduzida na morfologia da praia ou no seu conteúdo sedimentar (areias e, eventualmente, cascalho) tem reflexos no balanço erosão-sedimentação. Como  faixa do litoral arenoso (algumas vezes de calhaus) exposta às vagas, compreende um domínio submarino (praia imersa) e outro subaéreo (praia emersa).

A praia imersa descobre-se na baixa-mar durante as marés vivas e corresponde ao domínio infralitoral ou infratidal (do inglês tide, que significa maré). Neste domínio, o perfil do fundo mostra, do mar para a terra, um talude, bancos de rebentação e uma faixa de espalho da onda. Para o largo segue-se o domínio circalitoral ou circatidal, na transição para a plataforma continental (offshore) onde só a ondulação de tempestade tem efeito dinâmico sobre o fundo.

A praia emersa corresponde ao domínio supralitoral ou supratidal, só ocupado por altura das marés vivas e durante as tempestades. É o domínio das dunas, dos salgados ou das marismas, das crostas calcárias ou dolomíticas, das lagunas evaporíticas, da cimentação vadosa promovida por águas infiltradas superficiais (do latim vadosus, atravessável a vau).

A praia propriamente dita (em sentido restrito) corresponde ao domínio intertidal (entre marés). Dela faz parte a face da praia, ocupada pela rampa de espraio e de ressaca (situada acima da faixa de espalho da onda), onde se consome grande parte da sua energia após a rebentação. À rebentação sucede-se o espraio de uma certa massa de água, que avança sobre a face da praia à chegada da crista, a que se segue a ressaca ou recuo, que corresponde à chegada da cava.  

As praias são, pois,  entidades instáveis. Quando a vaga incide obliquamente ao litoral, a areia retirada e reposta pelo vaivém das ondas vai migrando, em ziguezague, numa trajectória serreada, com uma resultante paralela à linha de costa, no sentido que as condições locais ditarem, referida entre os profissionais por deriva litoral ou longilitoral, conhecida entre as nossas gentes do mar por corredoira. Na costa portuguesa, no litoral arenoso entre Espinho e o Cabo Mondego, atingido por ondulação maioritariamente do quadrante NW, a deriva tem o sentido norte-sul, movimentando um a dois milhões de metros cúbicos de areia por ano (1 a 2106 m3/a). Na costa algarvia, esta cifra é bem menor, dez a cem vezes inferior, sendo aí  poente-nascente o sentido da deriva. O litoral arenoso comporta-se, pois, como um “rio de areia” que corre ao longo da costa, mais ou menos veloz, transportando maior ou menor carga sólida. Com uma parte emersa (praia emersa) e outra submersa (praia submersa), o litoral arenoso mantém-se enquanto os sedimentos, que recebe de “montante”, compensarem os que perde para “jusante” e para o largo. Esta mobilidade conduz a perfis transversais de Verão (perfil de acalmia ou de calmaria), com declive mínimo, diferentes dos de Inverno (perfil de temporal), de mais alta energia, mais abruptos e com roturas de declive.

Nas situações em que a ondulação se aproxima perpendicularmente ao litoral, formam-se correntes de retorno ou agueiros, que deslocam os sedimentos para o largo (impedindo a deriva litoral), espalhando-os na plataforma continental e/ou permitindo-lhes o escape para os grandes fundos, através dos canhões submarinos. No caso das praias assim expostas à vaga, a linha do litoral é uma sucessão de reentrâncias, em forma de crescente, com a parte côncava virada ao mar. As correntes nestas praias afastam-se do litoral, pelo que constituem grande perigo para os banhistas. 

Em termos de espaço, uma praia pode manter-se estável, crescer, recuar ou ser totalmente varrida pelo mar, consoante o balanço que aí se estabelecer entre a erosão e a sedimentação. Nestes termos, uma praia minimamente estabilizada indica uma situação de equilíbrio entre a quantidade de sedimentos que recebe de terra (das arribas ou através dos rios) ou do mar (através das ondas e da deriva litoral) e a que lhe é retirada pelo mesmo mar. Com a progressiva construção de barragens hidroeléctricas nos principais rios, durante o século XX, o litoral ocidental de Portugal, à semelhança de muitos outros, foi sendo privado da sua principal fonte de sedimentos terrígenos.

 

A.M. Galopim de Carvalho. É professor catedrático jubilado pela Universidade de Lisboa, tendo assinado no Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências desde 1961. É autor de 21 livros, entre científicos, pedagógicos, de divulgação científica e de ficção e memórias. Assinou mais de 200 trabalhos em revistas científicas. Como cidadão interventor, em defesa da Geologia e do património geológico, publicou mais de 150 artigos de opinião. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural, entre 1993 e 2003, tempo em que pôs de pé várias exposições e interveio em mais de 200 palestras, pelo país e no estrangeiro.
Blogue: http://sopasdepedra.blogspot.com/