É preciso elevar a cultura geológica dos
portugueses e isso começa na escola.
De há muito que venho alertando, em textos escritos e em conversas
públicas, para a pouca importância dada ao ensino da Geologia nas nossas
escolas do ensino básico e secundário. Até parece que quem decide
(leia-se o Ministério da Educação) sobre o maior ou menor interesse das
matérias curriculares, desconhece a real importância deste domínio da
ciência na sociedade moderna. Assim, não se compreende a relativamente
pouca importância desta disciplina nos nossos
curricula de ensino.
A vida profissional permitiu-me, ao longo de
décadas, conviver, algumas vezes de muito perto, com as mais altas
figuras nacionais, dos chefes de estado aos dos governos central e
local, com ministros da educação e outros, com parlamentares e figuras
gradas dos partidos políticos, com os mais prestigiados jornalistas e
comentadores dos jornais, da rádio e da televisão (tudo gente do
direito, da economia e finanças e das humanidades), e pude, salvo uma ou
outra excepção, constatar a falta de cultura geológica desta elite que,
neste domínio, não difere do comum dos cidadãos.
Para além do seu interesse utilitário na procura,
exploração e gestão racional de matérias-primas minerais metálicas e não
metálicas indispensáveis no mundo actual, a geologia ensina-nos, ainda,
a encontrar águas subterrâneas e recursos energéticos, como são, entre
outros, o carvão, o petróleo, o gás natural e os campos geotérmicos.
Essencial no estudo da natureza dos terrenos sobre os quais temos de
implantar grandes obras de engenharia (pontes, barragens, aeroportos), a
geologia dispõe dos conhecimentos necessários à utilização do solo, à
defesa do ambiente natural, numa política de desenvolvimento sustentado,
e à preservação do nosso património mais antigo. Para além destas
potencialidades, a geologia dá resposta a muitas preocupações de
carácter filosófico. Na história do pensamento científico, da
Antiguidade aos dias de hoje, são muitos os exemplos de filósofos,
alquimistas, naturalistas e, por último, geólogos que se destacaram nas
referidas preocupações.
Exceptuando aqueles que,
por formação académica e profissional, possuem os indispensáveis
conhecimentos deste interessante e útil ramo da ciência, a generalidade
dos nossos concidadãos não conhece nem a natureza, nem a história do
chão que pisa e no qual assentam as fundações da casa onde vive. Uns
mais, outros menos, sabem algo do que aqui se passou desde o tempo em
que o primeiro humano pisou estas terras, milhares de anos atrás, mas,
muitíssimo pouco ou nada sabem do que aqui aconteceu há milhões e
milhões de anos.
Marcados por um ensino, livresco, tantas vezes
desinteressante e fastidioso, são muitos os cidadãos deste nosso país
que frequentaram disciplinas do âmbito da geologia e que, terminada esta
fase das suas vidas, esquecem o pouco que lhes foi ministrado sem
entusiasmo nem beleza.
Através das rochas, dos minerais e dos fósseis
ou, por outras palavras, através da Geologia pudemos conhecer grande
parte da história deste “ponto azul-claro” (como lhe chamou Carl Sagan),
incluindo a da vida a que deu berço e, por enquanto, suporta.
De imensa e inesgotável que parecia, ao tempo de
Colombo, Gama e Cabral, a Terra tornou-se pequena e frágil aos nossos
olhos. Podemos vê-la, parcialmente envolta nos farrapos brancos das
nuvens, numa única imagem fotográfica obtida a partir de um dos muitos
satélites que a rodeiam. Constante e progressivamente agredida pelas
imensas e incontroladas forças do mundo dos cifrões, este nosso
condomínio, que nos transporta através da imensidão do espaço, está a
dar sinais preocupantes de esgotamento de recursos e de degradação
ambiental. Há, pois, que defendê-la e, para tal, é imperioso conhecê-la.
Nesta defesa, cabe à escola um papel fundamental.
Por exemplo, os habitantes
da cidade que me acolheu há mais de seis décadas, desconhecem que o lioz
(a pedra calcária, repleta de história, usada na cantaria e na
estatuária de Lisboa e arredores) nasceu há cerca de 92 a 96 milhões de
anos, num mar muito pouco profundo e de águas mais quentes do que as que
hoje banham as nossas praias no pino do verão.
Desconhecem que o basalto das
velhas calçadas da cidade brotou, como lava incandescente, de vulcões
que aqui existiram há uns 70 milhões de anos, nem imaginam que o Tejo já
desaguou mais a Sul, por uma série de canais entrançados, numa larga
planura entre a Caparica e a Aldeia do Meco. Ainda como exemplo, os
naturais de Sintra ignoram que, por pouco, não rebentou ali um grande
vulcão (há uns 85 milhões de anos) nem sabem explicar porque é que o
belo mármore de São Pedro, quando percutido, liberta um odor a ovos
podres.
E o mesmo se passa com a generalidade dos
portugueses, governantes e governados. Não sabem que grande parte do
Ribatejo e do Alto Alentejo foi uma área lacustre e pantanosa há poucas
dezenas de milhões de anos. Ninguém lhes explicou como e quando surgiram
e evoluíram as serras e os rios de Portugal. Desconhecem porque é que se
fala do Barrocal algarvio, da planície alentejana e do Norte montanhoso.
Portugal, de Norte a Sul, e nas Ilhas dos Açores
e da Madeira dispõe de uma variedade de terrenos que cobrem uma grande
parte do tempo geológico, desde o Pré-câmbrico, com mil milhões de anos,
aos tempos recentes (Holocénico). No que se refere à diversidade
litológica, o território nacional exibe uma variedade imensa de tipos de
rochas, entre ígneas, metamórficas e sedimentares e, no que diz respeito
aos minerais, a diversidade de espécies aqui representadas é,
igualmente, muito grande, e o número de minas espalhadas pelo território
e hoje abandonadas, ultrapassa a centena. Temos, muito bem documentadas,
as duas últimas grandes convulsões orogénicas. A orogenia Hercínica ou
Varisca, que aqui edificou parte da vasta e imponente cadeia de
montanhas de há mais de 300 milhões de anos e hoje quase completamente
arrasada pela erosão, e a orogenia Alpina que, nas últimas dezenas de
milhões de anos, entre outras manifestações, elevou, entre falhas, o
maciço da Serra da Estrela, à semelhança de uma tecla de piano que se
levanta acima das outras, e dobrou o espectacular anticlinal tombado
para Sul, representado pela serra da Arrábida. Dispomos de múltiplos
aspectos de vulcanismo activo e adormecido (nos Açores) e extinto, de um
passado recente (na Madeira e Porto Santo) e antigo de cerca de 70
milhões de anos (entre Lisboa e Mafra). Temos fósseis de todos os
grandes grupos sistemáticos e de todas épocas. Temos dinossáurios em
quantidade e algumas das pistas com pegadas destes animais estão entre
as mais importantes da Europa e do mundo.
Os portugueses sabem dizer granito, basalto,
mármore, calcário, xisto, barro, petróleo, gás natural, quartzo,
feldspato de mica, mas ignoram a origem, a natureza e o significado
destes materiais como documentos da longa história da Terra.
Páginas desta história, conservadas nas rochas,
nos minerais e nos fósseis, estão à disposição dos professores e dos
alunos nos terrenos que rodeiam as suas escolas. Conhecer esses terrenos
e os processos geológicos aí envolvidos, desperta a curiosidade dos
alunos, abrindo-lhes as portas a múltiplos domínios desta disciplina,
constantes de um programa convenientemente elaborado. Tais
conhecimentos, mais sentidos e interiorizados do que, simplesmente,
decorados (empinados), para debitar em provas de avaliação, conferem
dimensão cultural à geologia, formam cidadãos mais conscientes da sua
posição na sociedade e defensores activos do nosso património natural. À
semelhança de um velho pergaminho, de um achado arqueológico, ou de uma
ruína, as rochas, com os seus minerais e os seus fósseis, são documentos
que a geologia ensina a ler e a interpretar.
Se há matérias que têm características passíveis
de serem ministradas numa política de regionalização do ensino e que
muito conviria considerar, a maioria das incluídas na disciplina de
Geologia satisfaz esta condição. De tudo o que atrás se referiu e,
ainda, o sílex intercalado nos calcários do Cretácico da região de
Lisboa, o urânio da Urgeiriça, o cobre e o zinco de Neves Corvo, as
hipóteses de petróleo, em Torres Vedras, e de ouro, em Montemor-o-Novo,
se há disciplinas científicas onde a regionalização faz sentido, a
Geologia é, certamente, um delas. Neste panorama tenho vindo a propor
aos responsáveis uma reformulação dos programas de Geologia visando uma
adequada informação sobre a geologia regional, a definir pelas escolas,
em complemento de um bem pensado programa de base comum a todas elas.
Deveria dar-se às escolas e aos professores desta disciplina liberdade e
tempo curricular para, em cada local e em cada oportunidade, escolherem
a melhor via formativa, o que não exclui a obrigatoriedade de cumprir um
programa mínimo, criteriosamente escolhido, por quem tenha competência,
não só pedagógica, mas também científica e cultural, para o fazer.
Assim e a título de exemplo, as escolas das
regiões autónomas, aproveitando as condições especiais que a natureza
lhes oferece, deveriam privilegiar o ensino da geologia própria do
vulcanismo, incluindo a geomorfologia, a petrografia, a mineralogia, a
geotermia (nos Açores) e a sismologia. Do mesmo modo, o citado
vulcanismo extinto, entre Lisboa e Mafra, o maciço subvulcânico de
Sintra, o mar tropical pouco profundo que aqui existiu, durante uma
parte do período Cretácico, deveriam ser objecto de estudo dos alunos
destas regiões.
A orla mesocenozóica algarvia e a serra de
Monchique, as pegadas de dinossáurios da Serra d’Aire, de Carenque
(Sintra) de Vale de Meios (Alcanede) e do Cabo Espichel, o termalismo em
Chaves, São Pedro do Sul e em muitas outras localidades, os vestígios de
glaciações deixados nas serras da Estrela e do Gerês, o complexo
metamórfico e os granitos da foz do Douro, os “grés de Silves”, os
quartzitos das Portas do Ródão e da Livraria do Mondego (Penacova), o
Pulo do Lobo, no Guadiana, e a discordância angular da Praia do Telheiro
(em Vila do Bispo e hoje mundialmente conhecida), os mármores em
Estremoz, as areias brancas de Coina e Rio Maior, as pirites de
Aljustrel, o volfrâmio da Panasqueira e o caulino da Senhora da Hora
(Porto) deveriam constar dos programas das escolas das redondezas.
A Geologia, já o tenho
afirmado e não é de mais repetir, não pode deixar de ter uma dimensão
cultural ao dispor do cidadão comum. Os professores devem ter
consciência desta realidade quando se dirigem aos seus alunos. Não estão
só a fornecer bases para eventuais licenciados em Geologia (sempre raros
ou inexistentes numa qualquer turma escolar), estão, sobretudo e na
maioria dos casos, a formar cidadãos para quem essas bases são
fundamentais em termos de preparação global. Assim, o ensino deveria ser
tornado atraente com elementos culturais ligados ao quotidiano dos
alunos. As amarras do programa oficial e o obediente e acrítico manual
escolar contrariam qualquer acção dos bons professores, no que toca o
ensino vivo da disciplina.
E porque não ligar estes conhecimentos às nossas
origens, onde e em especial o sílex e o barro foram alvo de procura e
utilização, e à sucessiva ocupação do território por outros povos e
civilizações (fenícios, gregos, cartagineses, romanos e árabes), em
busca do ouro, do cobre e do estanho? E porque não associar a nossa
História à realidade física (leia-se geológica, geomorfológica, mineira,
sismológica) do país?
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