Incapaz de ser senão diferente,
há um modo de calar e um falar claro,
um olhar cara a cara e frente a frente,
um viver devagar que tudo é raro
e único e só assim urgente.
Manuel Alegre, em “o Estilo”, 1996.
Os vestígios
mais antigos da presença dos nossos antepassados em terras do Sul do
País remontam ao Paleolítico e estão representados, em especial, por
utensílios em pedra lascada encontrados, em abundância, nos terraços
fluviais de alguns dos seus rios, e por não menos importantes gravuras
rupestres, como as trazidas às primeiras páginas dos jornais, na
sequência dos trabalhos na barragem de Alqueva. Primeiro como
recolectores, apanhando bolotas nos então muito mais cerrados montados,
pescando e caçando, estes nossos longínquos avós acabaram por se tornar
pastores e agricultores. Tal fixação levou à construção dos primeiros
povoados nas colinas sobranceiras aos principais cursos de água. A
densidade de construções megalíticas (antas, menhires e cromeleques),
característica ímpar desta região, testemunha a importância da sociedade
agropastoril que aqui teve berço há mais de 5000 anos.
Durante mais ou
menos tempo, ligures, celtas, fenícios, gregos, cartagineses e romanos,
ocuparam terras do Algarve e do Alentejo ou por aqui passaram, uns nas
suas rotas comerciais e outros em busca do ouro, da prata, do cobre e do
estanho, com particular relevo para os romanos. Estes, chegados no
século III a.C., deixaram-nos importantes marcas civilizacionais da sua
ocupação e do domínio político que exerceram durante, pelo menos, meio
milénio. Antes de serem Alentejo e Algarve, estas terras constituíram
parte da Hispania Ulterior (a
mais afastada, em oposição a
Hispania Citerior) na sequência da divisão administrativa criada na
Península pelo invasor. Estas mesmas terras foram, mais tarde, a metade
sul da Lusitania, a mais
ocidental das três províncias ibéricas do Império Romano (Lusitania,
Betica e Tarraconensis).
Outra
importante presença, que ainda hoje se faz sentir, foi a muçulmana,
iniciada no século VIII com a conquista de Mértola, por Muçá ben Nusayr,
pondo fim à dominação visigótica, a última das invasões levadas a efeito
por povos do norte da Europa (vândalos, suevos e visigodos, entre
outros), habitualmente referidos como bárbaros (a palavra provém
do
grego antigo, βάρβαρος, que significa não grego).
A ocupação muçulmana teve aqui uma longa permanência, cerca de cinco
séculos, que só terminou com a reconquista cristã do Reino de Portugal,
no século XIII.
Com a
islamização, estas terras fizeram parte do
Garb, que quer dizer Ocidente,
designação naturalmente usada pelos que vinham de oriente, neste caso,
os invasores árabes. Mais precisamente, o seu nome foi
al Garb al-Andalus, que
significa “o ocidente da
Hispânia”, que incluía, não só o Algarve como também o Alentejo e a
Andaluzia, a oriente do Guadiana.
A civilização muçulmana deixou
aqui muito dos seus saberes, não só os tidos por eruditos, como os do
melhor aproveitamento da terra. À unidade de coabitação entre a
Andaluzia, o Alentejo e o Algarve, durante mais de um milénio, criada
pelos invasores romanos e continuada pelos conquistadores islâmicos,
seguiu-se a separação, delineada ao sabor da reconquista cristã e das
disputas fronteiriças entre o reino de Portugal e o de Leão e Castela,
ao longo do Guadiana. Não é, pois, por acaso, que há bastantes traços
comuns entre nuestros hermanos
andaluces e os alentejanos,
por um lado, e entre estes e os algarvios, por outro. «Mediterrâneo
por natureza e atlântico por posição», como nos ensinou o saudoso
Prof. Orlando Ribeiro, os parâmetros fisiográficos desta região marcaram
as populações que aqui viveram, do mesmo modo que continuam a marcar o
alentejano dos dias de hoje.
Após a reconquista, concluída
por D. Afonso III, e na sequência da reorganização territorial, foi
criada a comarca de “Antre Tejo e
Odiana” (Entre Tejo e Guadiana), designação antiga que resistiu ao
tempo através da poética de Bernardim Ribeiro, na Écloga de Jano e
Franco, e que corresponde, grosso-modo, ao actual Alentejo.
Anteriormente, o termo
Alentejo, como nome de região, não existia. Com o significado de “para
além do Tejo”,
esta designação
foi criada pelos conquistadores vindos do norte, do jovem reino de
Portugal. O “Ultra Tagum”, no
latim dos eruditos de então, deu algo foneticamente muito próximo de “Alem Tejo”, no dialecto romance galaico-prtuguês, que era o que se
falava aí, ao tempo dos nossos primeiros reis. Tendo este grande rio
ibérico por fronteira natural, as terras que lhe ficavam a sul estavam,
pois, para além do Tejo.
Alentejanos são, pois, todos os portugueses da margem esquerda do Tejo.
E o seu nome, que nada tem de especial quando dito por alguém da margem
norte, constitui um paradoxo sempre que são os próprios alentejanos a
assim se autonomearem, uma vez que sendo e estando do lado sul do grande
rio, para eles o lado de cá, e, portanto, aquém do Tejo, se estão a
afirmar além dele, como bem lembrou o Prof. José Matoso. Alentejano é,
pois, o nome pelo qual esta comunidade se identifica, sem se dar conta
que, em rigor, o termo só faz sentido quando dito por estremenhos,
beirões, minhotos, transmontanos, nunca por eles e, muito menos, por
algarvios. Nestas condições, dever-nos-íamos considerar
“aquentejanos”, ideia, aliás, já avançada no século XIII, mas que
não fez vencimento. Com efeito, dois documentos assinados em Beja, em
1284, auto-situam-se no “Aquem
Tejo”.
No que respeita esta que é a
mais extensa região do País, a sua diversidade geográfica e geológica
determina que, dentro de uma certa unidade, como é muitas vezes
apresentada, haja diferenças sensíveis de local para local. Há um
Alentejo interior, a oriente, semiárido, dominado pela azinheira, e um
outro, a ocidente, menos seco, influenciado pelos ventos húmidos do
Atlântico, onde o montado de cortiça impera. Por outro lado, a escarpa
de falha da Vidigueira, um acidente tectónico que limita a sul a serra
de Portel, marca igualmente, como um degrau, a separação entre duas
superfícies bem assinaladas pelos geógrafos, a de Évora, a norte, mais
elevada e acidentada, e a de Beja, a sul, mais rebaixada e de mais
vastas planuras. São ainda Alentejo os alagadiços campos de arroz da
bacia do Sado, os densos pinhais da franja litoral e o extenso areal e
os alcantilados da linha de costa.
O substrato geológico e os
condicionalismos climáticos que caracterizam o Alentejo foram favoráveis
à vegetação que aqui se desenvolveu, parte dela indígena e outra parte
introduzida, bem como à ocupação animal, também ela autóctone e
importada. O montado e o porco preto dele dependente, a vinha, o olival
e a seara de pão, a ”tetralogia mediterrânea”, no dizer de
Alfredo Saramago, constituem elementos maiores tradicionalmente
referidos nesta paisagem que, como todos sabemos, ficou marcada por um
regime de «Terra pouca para muitos, terra muita para poucos»,
como cantou Manuel Alegre, em 1996.
São alentejanos os madeireiros
serranos de Portalegre e os seareiros das planícies que se estendem para
Sul. São alentejanos os cultivadores de sequeiro, os regadores do vale
do Caia e os que vivem dos campos aluviais dos seus grandes rios. Mas
não são menos alentejanos, quase sempre esquecidos, os pescadores na
longa faixa litoral, que se estende da restinga de Tróia às falésias
atlânticas do Algarve
Fala-se do falar alentejano,
da cozinha alentejana, dos cantares do Alentejo e contam-se divertidas
anedotas, visando os seus habitantes.
Há
uma trintena de anos, transportei comigo, vinda do Alentejo interior,
uma comadre de visita a uma filha residente
em Almada. Viemos por Setúbal e, durante a subida da
serra da Arrábida, esta minha amiga que, pela primeira vez, saía do seu
cantinho, dava mostras de um certo mal-estar. «Não sei o que tenho,
sinto-me apertada. Falta-me a lonjura do nosso Alentejo. Isto aqui é só
cabeços. E que cabeços!», dizia para mim.
E
foi assim até ao alto da capelinha de Nossa Senhora das Necessidades. A
partir daí, na descida para Azeitão, foi-se-lhe diluindo a aflição e,
quando passámos à planura, ouvi-a exclamar: «Aqui, sim, já a gente
respira!».
Em
sua opinião, voltáramos ao Alentejo. E tinha razão!
Administrativamente integrada na Estremadura, a península de Setúbal só
a ela se liga pelas Pontes Vasco da Gama e 25 de Abril e pelo grande
fluxo de cidadãos que, de uma e de outra banda do gargalo do Tejo, o
atravessam diariamente, nos dois sentidos, a caminho do trabalho e no
regresso a casa. Como geólogo contactei de muito perto com os terrenos e
também com as gentes desta região, tendo tido oportunidade de constatar
aqui a continuidade, não só territorial, como também cultural do
Alentejo. São as fábricas de cortiça e de transformação de carne de
porco, são os mercados, onde não faltam o pão e o queijo alentejanos, a
massa de pimentão, os poejos, os cardinhos e as beldroegas, são os
restaurantes e as tabernas à moda antiga, as colectividades culturais e
recreativas.
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