REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Os serões em Évora, nos anos 30 e 40

Depois do jantar, os homens saíam a caminho dos seus interesses. Fossem ricos, remediados ou pobres, a regra era essa. As mulheres ficavam em casa. Prisioneiras das responsabilidades que, tradicionalmente, lhes eram atribuídas, continuavam no exercício das tarefas domésticas e, ao mesmo tempo, a cuidar dos filhos. Destes, os mais pequenos faziam os trabalhos da escola ou brincavam, muitas vezes na rua, à porta da casa, sempre aberta. Nas famílias sem posses para terem criadas, competia às mães e às filhas com idade para ajudar, levantar a mesa, lavar a loiça, arrumar a cozinha e, as mais das vezes, costurar. Eram as mães que, contra elas próprias, educavam raparigas e os rapazes a perpetuarem os hábitos da sociedade machista em que cresci e me fiz homem, numa vivência estimulada pela Igreja e pelo poder político da época. Jovem casadoira, qualquer que fosse a sua condição, já sabia que o seu lugar ia ser no lar ou no ninho como algumas e alguns gostavam de dizer. Ao contrário das mulheres do campo, eram poucas as da cidade com trabalho fora de casa. Grande número destas, uma vez casadas, abandonavam o emprego, para se dedicarem à casa e aos filhos. No mundo rural não era assim. Pobres por condição e tradição, mães com ou sem filhos e raparigas adolescentes tinham mesmo de trabalhar sempre que as oportunidades surgissem e essas oportunidades eram, sobretudo, a monda, a ceifa e a apanha da azeitona.

Nesse tempo a roupa de casa e quase toda a de vestir eram confecionadas no seio da família. O pronto-a-vestir dos dias de hoje estava a décadas de distância, mas já havia algumas lojas onde se podia comprar roupa feita. Eram os algibebes, (do árabe al gebabb, uma reminiscência de cinco séculos de ocupação muçulmana), mas isso  só para os homens e, em especial, para os que tinham ligações ao mundo rural. Para uma clientela urbana com posses para tal, havia os alfaiates e as camisarias. As mulheres, via de regra, compravam os tecidos e as mais endinheiradas tinham costureiras em casa ou pagavam às modistas. As tidas por remediadas talhavam, cosiam e orientavam as filhas a fazerem o enxoval, respeitando  o mesmo caminho que fora o delas.

No Verão, mães, filhas e filhos pequenos saíam à noite com destino ao Jardim Público, onde, às quintas-feiras e aos domingos, havia concerto pela banda de Infantaria 16 ou pela dos Amadores de Música. Era preciso chegar cedo para apanhar um bom lugar nos bancos da rua principal, perto do coreto. Conversando com as companheiras de ocasião, comentando isto ou aquilo acerca deste ou daquela que passava, tinham olho nas crianças brincando por perto, e nas filhas adolescentes, passeando para lá e para cá, de uma ponta à outra do jardim, flanando, como se dizia, acompanhadas pelos rapazes seus amigos ou namorados, numa das poucas oportunidades que tinham para estarem juntos. Uma outra oportunidade, mais apetecida, era a que podiam ter nos bailes nos clubes e nas sociedades recreativas. Uns restritos à classe mais endinheirada, onde as roupas caras se exibiam e disputavam, outros, frequentados pela classe remediada e outros, ainda, de cariz popular. Todos, porém, tinham um aspecto em comum: duas filas de cadeiras ao redor da sala, sendo que na fila da frente se sentavam as raparigas, à mercê dos rapazes que as fossem buscar para dançar e, na de trás, se instalavam as mães por muitas horas, entretidas a falar umas com as outras e, ao mesmo tempo, a vigiarem e protegerem as respectivas filhas das “más línguas”. Oportunidade única para andarem abraçados, era importante prevenir exageros e abusos que “dessem nas vistas”.

Com excepção dos bailes, os namorados desse tempo, ou “conversados”, como também se dizia e como o nome indica, só tinham autorização para conversar.  O namoro tinha lugar com a pretendida à janela e o rapaz na rua. Aceite e de bom tom era que a janela fosse alta, normalmente, de primeiro andar. Namoro à janela do rés do chão ou à porta da rua era hipocritamente censurado pelos zeladores dos bons costumes e da decência. Beijos ou outras atitudes mais íntimas, que sempre houve, só aconteciam quando não houvesse olhos vigilantes por perto. Foi o tempo dos “paus-de-cabeleira”, um irmão, ou uma irmã, uma tia ou, por vezes, a própria mãe, com a função de evitarem atitudes tidas por “menos próprias” e garantir, às “bocas do mundo”, a honra da jovem. Rapariga com mácula, dizia-se, “ficava para tia”. 

Os interesses dos homens nos serões desses anos variavam em função do respectivo estatuto sociocultural. Havia o chamado “Clube dos Ricos” que, como o nome indica, era centro de convívio de umas tantas famílias de terratenentes e de homens do topo da hierarquia social, e as sociedades recreativas, com destaque para a “Harmonia Eborense” e a “Bota Rasa”, frequentadas, sobretudo, por comerciantes, pequenos industriais, empregados do comércio e dos serviços e militares graduados. Aí se jogava o bilhar de três bolas, o xadrez, as damas, o dominó e outros, em salas reservadas, com cartas e a dinheiro. Uma outra classe de eborenses confraternizava na Sociedade Operária Joaquim António de Aguiar, um sopro de republicanismo laico e progressista, a sobreviver numa urbe particularmente conservadora. Havia os que preferiam o convívio nos clubes desportivos que eram três: o Lusitano, o Juventude e o Sport Lisboa e Évora, modesta sucursal do já então grande Benfica. Outros preferiam os cafés, nomeadamente, o Camões, na Porta Nova, o Arcada e a Brasserie, na Praça do Giraldo, todos com esplanada nos meses sem chuva nem frio, sob as arcadas e, ainda, o Estrela d’Ouro, no começo da antiga rua dos Infantes. Num outro mundo, as tabernas, sempre cheias de uma clientela de gente pobre , eram locais também frequentados pela soldadesca, sempre muita nesses anos em que sediavam ali o Quartel General da 4ª Região Militar, o Regimento de Infantaria e o de Artilharia 1, o Hospital Militar, a Manutenção Militar, a Farmácia Militar e o Distrito de Recrutamento Reserva.

Nos serões, quando tempo o permitia, o tabuleiro da praça do Geraldo era um mar de homens e rapazes crescidos, em grupos de dois, três ou mais, a passearem para cá e para lá, horas e quilómetros, conversando.

Nos anos 40 já havia cinema, uma ou duas vezes por semana e, consoante a estação do ano, funcionava em espaço interior, no teatro Garcia de Resende e, depois, no Salão Central Eborense, ou ao ar livre, na Praça de Touros ou na esplanada dos Bombeiros Voluntários. Em qualquer deste locais de divertimento, o grosso da assistência era masculina. Mães e filhas no cinema, só acompanhadas pelo “chefe de família”.

Nesses tempos não havia televisão e a rádio ainda estava longe de entrar nas nossas vidas. Para os que, ao serão, ficavam em casa, as histórias que se ouviam e contavam, algumas de meter medo, com bruxas, feiticeiras, ladrões e salteadores, ou as conversas que se desenrolavam  faziam as vezes dos folhetins radiofónicos ou das telenovelas do presente. Alguns dos contos ouvidos nesses finais de dia, li-os, mais tarde, coligidos por Leite Vasconcelos em grosso volume editado pela Universidade de Coimbra.

Nem piores, nem melhores do que de hoje, foram tempos, isso sim, diferentes e que marcaram o meu modo de ver a sociedade.

Julho de 2014

 
 

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
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