REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Sabores e cantares

Como escreveu Monarca Pinheiro, em “Terras de Grandes Barrigas onde só há Gente Gorda” (Editora Alentejana, Évora, 1999), durante séculos, o alentejano viveu de frustração sublimada em invenção. Com as migalhas que lhe couberam, soube inventar uma cultura de eleição, e esta é, talvez, a sua maior glória. Do pouco fez muito e bem. E entre esse muito e bem, nascido da alma deste povo, salienta-se a sua capacidade inventiva nos cozinhados, a que o autor se refere como «arte dos comeres», a par da «arte de musicar», internacionalmente reconhecida, em especial, através dos seus cantares. Expressão a um tempo literária e musical da cultura popular tradicional da maior província de Portugal, o cante alentejano, com também se diz, iniciado no Baixo Alentejo, admite-se que em Serpa, no século XV, traduz, numa dramaturgia e numa poética muito próprias, o seu quotidiano, em toda a extensão sentimental, as mais das vezes, nostálgica.

Parafraseando Mário Rodrigues Correia, Director do Centro de Formação Profissional do Sector Alimentar, na apresentação de “A Cultura Gastronómica em Portugal-Alentejo” (1995), a cozinha alentejana, como cozinha tradicional que é, afigura-se como uma serenata de aromas e sabores do passado que se prolonga pelo presente e que, pretendemos nós, se perpetue no futuro. Nestas palavras alude-se, de forma poética, a um sentimento generalizado alusivo a uma certa associação que, em particular no Alentejo, se faz entre os sabores da sua cozinha e as vozes dos grupos de cantadores, sentimento esse, já expresso por Mathilde Guimarães, em “Comeres Alentejanos” (Quetzal Editores, 1994), ao afirmar Para mim, para sempre, ficam ligados os cantares e os comeres alentejanos.
     
Todo aquele que teve oportunidade de ouvir os homens em coro numa das antigas tabernas onde os cheiros da cozinha invadiam a zona de convívio, não poderá deixar de fazer esta associação. Quem já comeu numa qualquer aldeia do Alentejo e, a dada altura, os homens se levantam e se abrem em coral nos seus cantares, únicos na museografia nacional e mundial, não pode deixar de ligar os sons e os sabores que ali persistem, como que a fazerem frente à mundialização cultural, há muito iniciada pelas televisões, bem antes da globalização económica de que agora tanto se fala. Deve dizer-se, porém, que, felizmente, estamos a assistir, nos dias de hoje, nos jornais e revistas, na edição livreira e, com particular relevo, nas televisões, a uma atenção crescente à gastronomia e culinária tradicionais.

Também eu sempre associei os aromas da comida dos alentejanos aos seus cantares. E isso resulta de uma vivência começada em criança, quando ia à taberna do Monginho buscar meio litro de vinagre e por lá me esquecia a ouvir os homens, à volta de uma grande mesa forrada de oleado, repleta de petiscos perfumados e de copos de vinho. Foi numa destas idas ao Monginho que o «Meu lírio roxo» nunca mais se separou do grão cozido, a fumegar, temperado de azeite, vinagre e muita cebola picada, que os homens comiam à colher, para acompanhar sardinhas de barrica, acabadas de fritar.

Esta junção dos cantares, dos comeres e seus odores, tive-a por diversas vezes, na adolescência, de que recordo um fim de tarde, na venda do Ti’ Zé Calado, na Vendinha, em que se assavam linguiças e se ouvia, cadenciada, «A ribeira quando nasce, vai de pedrinha em pedrinha...».

Uma outra vez foi na tasca do Rabino, em Valverde, em 1964, com os rurais que ali trabalhavam nas escavações da Anta Grande do Zambujeiro e no Cromeleque dos Almendres, com o arqueólogo Henrique Pina. E nesta era o coelho frito, temperado, de véspera, com alho e pimentão, ao som do «Deitei o limão correndo...».

O aroma e o sabor do toucinho assado, na brasa, com pão à navalha e copinhos de aguardente perfumada, saída ainda quente do alambique, na grande adega das Cortiçadas, em São Sebastião da Giesteira, nunca mais se separou do «Ao romper da aurora, sai o pastor da cabana...»

Em começos dos anos 70, já em Lisboa e pai de dois filhos, ainda a «Grândola, Vila Morena», do Zeca, não tinha a conotação que passou a ter a partir “daquela Madrugada”, e o significado que, felizmente, ainda tem, os seus belos acordes ficaram associados ao perfume de uma monumental açorda de poejos com bacalhau e ovos escalfados, comida lá para as tantas, depois de uma jornada de fartas comezainas e muitos copos, nas bodas de um parente.
     A última situação vivida deste casamento de comeres e cantares teve lugar em finais de 1998, na Pousada dos Lóios, em Évora, durante um almoço oferecido aos participantes do «1º Simpósio Internacional para a Paleobiologia dos Dinossáurios». Uma vintena de cientistas de nomeada, oriundos das cinco partes do mundo, degustaram as belíssimas entradas de paio, presunto e queijos locais, saborearam os magníficos branco e tinto das Cortiçadas e deliciaram-se com o magnífico ensopado de borrego, olhando e sorrindo para nós como que a dizer «coisa boa!».
     Começavam eles a regalar-se com a encharcada, bem perfumada de canela e hortelã, quando um grupo coral de homens e mulheres, envergando os seus trajes regionais, irrompeu lá no fundo do grande claustro, cantando e marchando, grudados uns aos outros, numa mole humana que se aproximava, lenta e cadenciada, a passo certo, num crescendo de arrepiar os cabelos e trazer aos olhos uma lágrima rebelde: «Olha a noiva, se vai linda...No dia do seu noivado…».
    
Estes meus colegas e amigos, com toda a certeza, não perceberam os versos ali cantados, mas ouviram a melodia com toda a atenção. E, assim, como para mim, a respectiva música ficará para sempre associada aos sabores e aos aromas que ali experimentaram pela primeira e, que eu saiba, última vez.

Grupo de cantadores alentejanos. Criação da barrista Ana Barbosa, Estremoz.

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
Blogue: http://sopasdepedra.blogspot.com/