Como escreveu Monarca Pinheiro, em “Terras
de Grandes Barrigas onde só há Gente Gorda” (Editora Alentejana,
Évora, 1999), durante séculos, o
alentejano viveu de frustração sublimada em invenção. Com
as migalhas que lhe couberam, soube inventar uma cultura de eleição, e
esta é, talvez, a sua maior glória. Do pouco fez muito e bem. E
entre esse muito e bem, nascido da alma deste povo, salienta-se a sua
capacidade inventiva nos cozinhados, a que o autor se refere como «arte
dos comeres», a par da «arte
de musicar», internacionalmente reconhecida, em especial, através
dos seus cantares. Expressão a um tempo literária e musical da cultura
popular tradicional da maior província de Portugal, o cante alentejano,
com também se diz, iniciado no Baixo Alentejo, admite-se que em Serpa,
no século XV, traduz, numa dramaturgia e numa poética muito próprias, o
seu quotidiano, em toda a extensão sentimental, as mais das vezes,
nostálgica.
Parafraseando Mário Rodrigues Correia,
Director do Centro de Formação Profissional do Sector Alimentar, na
apresentação de “A Cultura Gastronómica em Portugal-Alentejo” (1995), a cozinha
alentejana, como cozinha tradicional que é, afigura-se como uma
serenata de aromas e sabores do
passado que se prolonga pelo presente e que, pretendemos nós,
se perpetue no futuro. Nestas palavras alude-se, de forma poética, a
um sentimento generalizado alusivo a uma certa associação que, em
particular no Alentejo, se faz entre os sabores da sua cozinha e as
vozes dos grupos de cantadores, sentimento esse, já expresso por
Mathilde Guimarães,
em “Comeres Alentejanos”
(Quetzal Editores, 1994), ao afirmar
Para mim, para sempre, ficam
ligados os cantares e os comeres alentejanos.
Todo aquele
que teve oportunidade de ouvir os homens em coro numa das antigas
tabernas onde os cheiros da cozinha invadiam a zona de convívio, não
poderá deixar de fazer esta associação. Quem já comeu numa qualquer
aldeia do Alentejo e, a dada altura, os homens se levantam e se abrem em
coral nos seus cantares, únicos na museografia nacional e mundial, não
pode deixar de ligar os sons e os sabores que ali persistem, como que a
fazerem frente à mundialização cultural, há muito iniciada pelas
televisões, bem antes da globalização económica de que agora tanto se
fala. Deve dizer-se, porém, que, felizmente, estamos a assistir, nos
dias de hoje, nos jornais e revistas, na edição livreira e, com
particular relevo, nas televisões, a uma atenção crescente à gastronomia
e culinária tradicionais.
Também eu
sempre associei os aromas da comida dos alentejanos aos seus cantares. E
isso resulta de uma vivência começada em criança, quando ia à taberna do
Monginho buscar meio litro de vinagre e por lá me esquecia a ouvir os
homens, à volta de uma grande mesa forrada de oleado, repleta de
petiscos perfumados e de copos de vinho. Foi numa destas idas ao
Monginho que o «Meu lírio roxo»
nunca mais se separou do grão cozido, a fumegar, temperado de
azeite, vinagre e muita cebola picada, que os homens comiam à colher,
para acompanhar sardinhas de barrica, acabadas de fritar.
Esta junção
dos cantares, dos comeres e seus odores, tive-a por diversas vezes, na
adolescência, de que recordo um fim de tarde, na venda do Ti’ Zé Calado,
na Vendinha, em que se assavam linguiças e se ouvia, cadenciada, «A
ribeira quando nasce, vai de
pedrinha em pedrinha...».
Uma outra vez
foi na tasca do Rabino, em Valverde, em 1964, com os rurais que ali
trabalhavam nas
escavações da Anta Grande do Zambujeiro e no Cromeleque dos Almendres,
com o arqueólogo Henrique Pina. E nesta era o coelho frito, temperado,
de véspera, com alho e pimentão, ao som do «Deitei
o limão correndo...».
O aroma e o
sabor do toucinho assado, na brasa, com pão à navalha e copinhos de
aguardente perfumada, saída ainda quente do alambique, na grande adega
das Cortiçadas, em São Sebastião da
Giesteira, nunca mais se separou do «Ao
romper da aurora, sai o pastor
da cabana...»
Em começos
dos anos 70, já em Lisboa e pai de dois filhos, ainda a «Grândola,
Vila Morena», do Zeca, não tinha a conotação que passou a ter a
partir “daquela Madrugada”, e o significado que, felizmente, ainda tem,
os seus belos acordes ficaram associados ao perfume de uma monumental
açorda de poejos com bacalhau e ovos escalfados, comida lá para as
tantas, depois de uma jornada de fartas comezainas e muitos copos, nas
bodas de um parente. A última situação vivida deste casamento de
comeres e cantares teve lugar em finais de 1998, na Pousada dos Lóios,
em Évora, durante um almoço oferecido aos participantes do «1º Simpósio
Internacional para a Paleobiologia dos Dinossáurios». Uma vintena de
cientistas de nomeada, oriundos das cinco partes do mundo, degustaram as
belíssimas entradas de paio, presunto e queijos locais, saborearam os
magníficos branco e tinto das Cortiçadas e deliciaram-se com o magnífico
ensopado de borrego, olhando e sorrindo para nós como que a dizer «coisa
boa!».
Começavam eles a regalar-se com a encharcada, bem
perfumada de canela e hortelã, quando um grupo coral de homens e
mulheres, envergando os seus trajes regionais, irrompeu lá no fundo do
grande claustro, cantando e marchando, grudados uns aos outros, numa
mole humana que se aproximava, lenta e cadenciada, a passo certo, num
crescendo de arrepiar os cabelos e trazer aos olhos uma lágrima rebelde:
«Olha a noiva, se vai linda...No
dia do seu noivado…». Estes meus colegas e amigos, com toda a certeza,
não perceberam os versos ali cantados, mas ouviram a melodia com toda a
atenção. E, assim, como para mim, a respectiva música ficará para sempre
associada aos sabores e aos aromas que ali experimentaram pela primeira
e, que eu saiba, última vez.
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