No final
daquele ano lectivo de 1958-59, em que o Reitor Marcelo Caetano recusou
pagar os vencimentos dos assistentes recém contratados (eu era um
deles), o director do Centro de Geologia, Prof. Carlos Teixeira,
mandou-me acompanhar o seu colega
francês e amigo, Daniel Laurentiaux, da Universidade de Reims, a
realizar trabalho de campo na região de Mértola. Tive, assim,
oportunidade de percorrer o Guadiana em alguns dos seus mais belos
troços e isso encorajou-me a conhecê-lo de outros ângulos que não os da
geologia.
|
Grande rio
do sudoeste ibérico, de importância capital na estruturação do
território peninsular, o Guadiana foi usado pelos Romanos como divisória
entre duas das grandes províncias administrativas do império, a Bética,
a oriente, e a Lusitânia, a poente, confrontadas ao longo do troço que
hoje corre a jusante do Caia. Designado até ao século VIII por
Rio Ana, os Árabes
respeitaram-lhe o nome, antepondo-lhe
uadi, que significa rio, o
mesmo elemento composicional que nos ficou nas designações de alguns
rios no sul do país, como Odeleite, Odemira e outros mais, termo que
está igualmente em uso nos uedes
do noroeste africano, os vales secos correspondentes aos rios
temporários característicos das terras semiáridas do Magrebe.
Uadiana ou
Odiana foi o nome deste importante curso de água, eixo do
al Garb al Andalus, expressão que, em árabe, quer dizer o ocidente
da Hispânia, ou seja, grosso modo,
a Andaluzia, hoje na Espanha, o Alentejo e o Algarve. Odiana sobreviveu
à reconquista, no século XIII, e assim se manteve, por mais três
centenas de anos, na linguagem dos portugueses.
Antre Tejo e
Odiana era o nome da grande
comarca e da circunscrição administrativa meridionais, ao tempo em que
este rio foi fronteira entre os reinos de Portugal e de Leão. Por seu
lado os castelhanos transformaram o
uadi, radicado na região ao
longo de cinco séculos de ocupação islâmica, em
guadi, elemento que ainda hoje
compõe o nome de muitos rios do sul de Espanha, como Guadalimar,
Guadalupe, Guadojoz e, o mais conhecido de todos, o grande Guadalquivir.
Guadiana é, assim, um nome importado que se impôs em virtude da sua
posição raiana e que substituiu o antigo Odiana, perpetuado na Écloga de
Bernardim Ribeiro, influência que não se verificou com os nomes
Odeleite, Odiáxere e outros com a mesma raiz, correspondentes a rios
mais afastados da influência castelhana.
Desde sempre,
como qualquer grande rio, o Guadiana foi pólo de atracção das
populações. Os mais antigos testemunhos datam do Paleolítico,
representado por abundantes utensílios em pedra lascada jacentes nos
seus terraços. Tal atracção percorreu toda a Pré-história e os tempos
históricos até aos nossos dias, sendo de assinalar, entre outros, os
vestígios da ocupação romana, deixados nas minas de pirite de S.
Domingos, a presença islâmica, hoje bem conhecida em Mértola, os vários
castelos e praças fortes edificados nas suas margens e cercanias, o
porto mineraleiro do Pomarão e as muitas dezenas de açudes construídos
no seu leito a fim de lhe represarem as águas e, com isso, mover as
respectivas azenhas.
Na
continuidade da relação do Homem com a terra, temos hoje a barragem de
Alqueva, obra que representa, para muitos, o mais recente e talvez o
mais grandioso e esperançoso abraço entre o Alentejo e o grande rio do
Sul. Assim os inconfessáveis interesses de alguns não estraguem as
esperanças desses muitos outros.
|