Porta Nova, em Évora, é o nome antigo de um pequeno
espaço da cidade que me viu nascer. Pólo importante de uma da
comunidade urbana desta capital do Alentejo, foi oficialmente designada
por Largo Luís de Camões, com placa, poucos meses depois do derrube da
monarquia, em sessão camarária de 1 de Junho de 1911, num tempo marcado
pelo surgimento de valores culturais contra a superestrutura mental dos
terratenentes que então dominavam a vida da cidade.
Com séculos de história e a mesma tipologia
sócio-económica desde finais da Idade Média, a Porta Nova sempre foi uma
plataforma apta a responder aos citadinos e aos que, vindos de
extra-muros, entravam pelas portas de Avis e da Lagoa.
Num exercício de memória do tempo que ali se viveu
nos finais dos anos 30 e parte dos 40 do século que passou, mais ou
menos coincidente com o da Segunda Guerra Mundial, este pequeno largo
foi, para mim, um mundo de descobertas nos anos em que os meus pais, os
meus quatro irmãos, eu e uma irmãzinha, que já ali nasceu, nos tornámos
residentes nesta zona da velha urbe. De forma, grosso modo, triangular,
ladeado de prédios centenários e de arcadas ainda mais velhas a
protegerem os peões do sol abrasador do Verão e da chuva no tempo dela,
o largo da Porta Nova, rematado num dos seus três vértices por um belo
duplo arco granítico do aqueduto da Água da Prata, continua a ser parte
importante de um eixo comercial da cidade, eixo que se estende, quase
todo sob as referidas arcadas, entre o Jardim das Canas, no começo da
Rua Elias Garcia, até para lá da Praça do Giraldo, na antiga Rua do
Paço.
Para os residentes nesta zona da cidade-museu, a
Porta Nova era, como se diria hoje, um “centro comercial” a céu aberto.
«Tudo aquilo de que preciso para o governo da casa está aqui à mão»
dizia, satisfeita, a minha mãe. E tinha razão.
Saído da Rua do Segeiro, a São Francisco, por volta
de 1938, sem que me tivessem perguntado a opinião, e interrompido, no
melhor da minha aprendizagem, o “ofício de carpinteiro” que vinha
desenvolvendo sob simpática e paciente tutela do mestre Roberto, meu
vizinho na mesma rua, depressa me iniciei noutras actividades que deram
significado e encanto a esses anos, os melhores da minha meninice e
primeira adolescência, não obstante o espectro da Guerra, cujos horrores
nos chegavam, diariamente, vindos de Londres, pela inesquecível voz do
Fernando Pessa aos microfones da BBC. Sentida, sobretudo, pelos seus
reflexos no racionamento de muitos produtos essenciais e pelas
intermináveis “bichas” que tive de suportar, isso não impediu que desse
largas à minha necessidade de participar no mundo que me rodeava. Foi
neste outro meu universo, muitíssimo mais alargado, que, como voluntário
e no jeito do rapaz curioso do trabalho dos crescidos, ganhei muitas
outras “profissões”. Sempre pelo coração e a custo zero, fui aprendiz ou
ajudante de funileiro na oficina do Teófilo, de sapateiro na do meu tio
Manuel Almaça e de colchoeiro na do Ventura, fiz queijos de ovelha na
francela da minha tia Rosalina, fui caixeiro na mercearia do Anselmo,
fiz “mandados”, a troco e magros tostões, e dei serventia onde quer que
ela fosse aceite.
Ver fazer, aprender e, por fim, saber fazer foi uma maneira de estar na
vida que nunca me abandonou. Sempre parei o tempo que fosse preciso para
observar um caiador empoleirado numa escada, com o pincel amarrado na
ponta de uma cana, a branquear uma parede, um canastreiro a armar um
cabanejo com varas de souto molhadas, ou um engraxador a dar lustro nos
sapatos de um cliente, exibindo a sua perícia com sonoros estalos da
tira de lona. Observei pedreiros a levantarem uma parede de tijolo e
calceteiros, de joelho em terra e martelo de bico na mão, a executarem o
seu trabalho e lembro-me de um que, olhando para mim, disse, gracejando
«o meu trabalho é como o do médico. Os meus defeitos e os dele tapam-se
com terra». Levantei-me de madrugada para ver o meu amigo padeiro, na
travessa de santo André, a amassar à mão, a tender os pães enfarinhados
e a arrumá-los num grande tabuleiro aconchegados entre pregas de um pano
banco, numa atmosfera quente, marcada pelo lume do forno e pelos cheiros
do fermento e da lenha de azinho. Esperar pelo fim da cozedura levar
para casa um pão acabado de fazer era algo que dava sentido à minha
condição de gente no mundo de gente crescida.
Nesses
anos tudo me fascinava na Porta Nova. Fora de casa porque, na verdade,
em casa é que eu menos gostava de estar. Faltava-me o ar. Mais a mais,
era em casa que eu tinha de passar, diariamente, o tempo necessário para
cumprir os meus deveres escolares, “as minhas obrigações”, como se
dizia. À tabuada, recitada ao pé da mãe, enquanto ela costurava,
seguia-se, ainda com a ajuda dela, a leitura na Cartilha Maternal, do
João de Deus. Depois era cópia e as contas, mais tarde, os problemas e
as redacções. Tudo isto em casa porque, por decisão do meu pai, cumpri o
equivalente aos dois primeiros anos de escolaridade no chamado Ensino
Doméstico, uma modalidade legalmente autorizada, sob a tutela de um
membro da família com habilitações para o fazer, neste caso o meu pai.
Terminadas as ditas obrigações, num tempo que tinha o sabor da prisão e
sempre me pareceu uma eternidade, deixada a pasta dos livros caída a um
canto, zunia para a minha liberdade. E a minha liberdade era a Porta
Nova e tudo o que ali se fazia.
Já aluno da escola primária e, depois, a frequentar o
liceu o melhor, para mim, era o som da sineta com que a “menina” Júlia
anunciava o fim das aulas, e o melhor dia da semana sempre foi o Sábado,
a que se somava mais um dia de liberdade e mil tarefas e projectos para
realizar fora de casa, na Porta Nova. Findos esses dois dias, nos serões
de Domingo, a procurar fazer, mal e à pressa, os trabalhos de casa, era
invadido pelo sentimento do dever não cumprido e, na manhã de 2ª-feira,
era com esse sentimento e um certo novelo no estômago que percorria o
caminho que me levava ao encontro dos professores.
Nos
grandes fins de tarde e nos serões de Verão, corria-se e brincava-se na
Porta Nova. Era o tempo dos jogos do agarra e das escondidas, como nós
dizíamos. As colunas das arcadas eram esplêndidas para esconder e também
para as fintas, travagens e mudanças bruscas de trajectória, até que se
chegasse a salvo ao coito. Era o tempo dos filmes do Tom Mix, do Buck
Jones e do Ken Maynard. Escarranchados em canas com uma cabeçorra de
cavalo recortada em cartão, a rapaziada encarnava aqueles “cobóis”,
armada de pistolas de pau, que cada um engerocava de acordo com a sua
habilidade, correndo e gritando “camones” e “mãos-ao-ar”, escoiceando
com as botas cardadas e fazendo tiros com a boca: pum, pum, pum!....
Este
largo, como aliás toda a cidade, tinha trânsito diminuto, quase todo
reduzido a carros e carroças de tracção animal e, sobretudo, durante o
dia. Só lá de quando em quando passava um automóvel buzinando sempre, a
anunciar a aproximação. Brincar e correr na Porta Nova tinha a segurança
de um jardim. A única restrição era o polícia do giro e, aí, a malta
disfarçava ou sumia-se. Os que jogavam à bola escondiam a bola ou iam
jogar para outro lado.
Numa
pacata cidade de província desse tempo os elementos da Polícia de
Segurança Pública contavam-se pelos dedos e eram nossos conhecidos. Para
os rapazes como eu, cujas travessuras mais graves seriam gritar e correr
na rua, ir de encontro a um passante, ou acertar-lhe com uma bolada, o
agente limitava-se à apreensão do “esférico” (de trapos bem apertados
numa meia velha) seguida de uma ameaça nunca cumprida:
«Levo-te à
esquadra para que o chefe te mostre a menina-de-cinco-olhos que lá tem
numa gaveta. Ninguém sai de lá sem lhe tomar o gosto, com uma dúzia de
palmatoadas. E, quando é preciso, põem-se umas pedrinhas de sal na palma
da mão». Se punham ou não punham, nunca soube. Talvez o fizessem aos
mais pobres, desprotegidos e desgraçados, apanhados a roubar algo para
comer, que os havia muitos.
Esta minha
riquíssima vivência na Porta Nova só se inverteu já eu era crescidinho e
graças a dois ou três professores do Liceu e a uns tantos colegas, três
ou quatro anos mais velhos, invulgarmente interessados nas coisas da
cultura, fosse ela a das ciências exactas e naturais ou a das
humanidades. Estes meus amigos liam muito e discutiam mais. Falavam de
hereditariedade, de genética e de evolução, de física nuclear, de poetas
e poesia, de filosofia e de arte, sobretudo de pintura. Deram-me a ler
os «Cadernos» do Agostinho da Silva. Alguns gostavam e praticavam
fotografia, desde o acto de captar a imagem ao trabalho de revelação na
câmara escura. Faziam experiências de química e de física, atamancaram
um telescópio rudimentar que permitia ver nitidamente as crateras da
superfície lunar, dissecavam lagartixas e outros bichos para ver como
eram por dentro. Com eles apanhei folhas de árvores e de outras plantas,
que espalmávamos e secávamos entre folhas de jornais, com que começámos
um herbário. Eu era ainda um rapazinho de calções quando eles, já
adolescentes de calça comprida, me aceitaram como companheiro e me
deixavam assistir às suas discussões e participar nas muitas actividades
que desenvolviam. Como foi agradável aprender coisas, assim, pelo
verdadeiro interesse que elas despertavam, e como esta via de explorar
conhecimentos era diferente das aulas, tantas vezes livrescas e de fazer
sono, e do estudar a mando do professor.
Foi da Porta Nova que, com o meu irmão Mário ou com
dois ou três colegas de Liceu saí para as minhas primeiras incursões no
mundo rural envolvente da cidade. Esta experiência, que prolonguei anos
a fio, sob a forma de campismo rudimentar e selvagem em territórios
sucessivamente mais alargados, somada a todas as outras vividas no meio
citadino, foram determinantes na formação da minha maneira de estar e de
participar na sociedade. Nestas incursões nos campos do Alentejo,
dormindo numa canadiana emprestada pela Ala de Évora da Mocidade
Portuguesa e cozinhando o que calhasse numa velha panela de ferro,
conheci herdades, homens e mulheres do campo e os trabalhos que faziam.
Do lançar do trigo à terra, em braçadas do semeador, certas e
cadenciadas, à debulha, sob o brasido do sol de Verão e do calor não
menos intenso da ruidosa locomóvel, entre nuvens de moínha, tudo o que
vi e experimentei me deu a noção exacta do valor do pão. E esse tudo foi
presenciar o abrir dos regos, um trabalho duríssimo de homem só, de mão
firme na rabicha do arado, de aivecas bem fundas, puxado por possantes
parelhas de mulas, foi a monda da primavera, um trabalho de mulheres
novas e velhas, tagarelando e cantando, e, finalmente, a colheita do
cereal partilhada por “ratinhos”, nome algo depreciativo que se dava aos
homens da Beira Baixa vindos todos os anos para a “aceifa”.
Assisti a descortiçagens (ou despela, no dizer de
alguns) nos montados de sobro e dei-me conta da perícia dos tiradores,
manuseando o machado, e dos molheiros, a amontoarem as pranchas de
cortiça, explicando-me depois que, assim, bem arrumadas numa pilha de
base rectangular, permitiam ter uma ideia do peso de toda a tirada.
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