REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Porta Nova (Évora), anos 40

Porta Nova, em Évora, é o nome antigo de um pequeno espaço da cidade que me viu nascer. Pólo  importante de uma da comunidade urbana desta capital do Alentejo, foi oficialmente designada por Largo Luís de Camões, com placa, poucos meses depois do derrube da monarquia, em sessão camarária de 1 de Junho de 1911, num tempo marcado pelo surgimento de valores culturais contra a superestrutura mental dos terratenentes que então dominavam a vida da cidade.

Com séculos de história e a mesma tipologia sócio-económica desde finais da Idade Média, a Porta Nova sempre foi uma plataforma apta a responder aos citadinos e aos que, vindos de extra-muros, entravam pelas portas de Avis e da Lagoa.

Num exercício de memória do tempo que ali se viveu nos finais dos anos 30 e parte dos 40 do século que passou, mais ou menos coincidente com o da Segunda Guerra Mundial, este pequeno largo foi, para mim, um mundo de descobertas nos anos em que os meus pais, os meus quatro irmãos, eu e uma irmãzinha, que já ali nasceu, nos tornámos residentes nesta zona da velha urbe. De forma, grosso modo, triangular, ladeado de prédios centenários e de arcadas ainda mais velhas a protegerem os peões do sol abrasador do Verão e da chuva no tempo dela, o largo da Porta Nova, rematado num dos seus três vértices por um belo duplo arco granítico do aqueduto da Água da Prata, continua a ser parte importante de um eixo comercial da cidade, eixo que se estende, quase todo sob as referidas arcadas, entre o Jardim das Canas, no começo da Rua Elias Garcia, até para lá da Praça do Giraldo, na antiga Rua do Paço.

Para os residentes nesta zona da cidade-museu, a Porta Nova era, como se diria hoje, um “centro comercial” a céu aberto. «Tudo aquilo de que preciso para o governo da casa está aqui à mão» dizia, satisfeita, a minha mãe. E tinha razão.

Saído da Rua do Segeiro, a São Francisco, por volta de 1938, sem que me tivessem perguntado a opinião, e interrompido, no melhor da minha aprendizagem, o “ofício de carpinteiro” que vinha desenvolvendo sob simpática e paciente tutela do mestre Roberto, meu vizinho na mesma rua, depressa me iniciei noutras actividades que deram significado e encanto a esses anos, os melhores da minha meninice e primeira adolescência, não obstante o espectro da Guerra, cujos horrores nos chegavam, diariamente, vindos de Londres, pela inesquecível voz do Fernando Pessa aos microfones da BBC. Sentida, sobretudo, pelos seus reflexos no racionamento de muitos produtos essenciais e pelas intermináveis “bichas” que tive de suportar, isso não impediu que desse largas à minha necessidade de participar no mundo que me rodeava. Foi neste outro meu universo, muitíssimo mais alargado, que, como voluntário e no jeito do rapaz curioso do trabalho dos crescidos, ganhei muitas outras “profissões”. Sempre pelo coração e a custo zero, fui aprendiz ou ajudante de funileiro na oficina do Teófilo, de sapateiro na do meu tio Manuel Almaça e de colchoeiro na do Ventura, fiz queijos de ovelha na francela da minha tia Rosalina, fui caixeiro na mercearia do Anselmo, fiz “mandados”, a troco e magros tostões, e dei serventia onde quer que ela fosse aceite.

Ver fazer, aprender e, por fim, saber fazer foi uma maneira de estar na vida que nunca me abandonou. Sempre parei o tempo que fosse preciso para observar um caiador empoleirado numa escada, com o pincel amarrado na ponta de uma cana, a branquear uma parede, um canastreiro a armar um cabanejo com varas de souto molhadas, ou um engraxador a dar lustro nos sapatos de um cliente, exibindo a sua perícia com sonoros estalos da tira de lona.  Observei pedreiros a levantarem uma parede de tijolo e calceteiros, de joelho em terra e martelo de bico na mão, a executarem o seu trabalho e lembro-me de um que, olhando para mim, disse, gracejando «o meu trabalho é como o do médico. Os meus defeitos e os dele tapam-se com terra». Levantei-me de madrugada para ver o meu amigo padeiro, na travessa de santo André, a amassar à mão, a tender os pães enfarinhados e a arrumá-los num grande tabuleiro aconchegados entre pregas de um pano banco, numa atmosfera quente, marcada pelo lume do forno e pelos cheiros do fermento e da lenha de azinho. Esperar pelo fim da cozedura levar para casa um pão acabado de fazer era algo que dava sentido à minha condição de gente no mundo de gente crescida.

Nesses anos tudo me fascinava na Porta Nova. Fora de casa porque, na verdade, em casa é que eu menos gostava de estar. Faltava-me o ar. Mais a mais, era em casa que eu tinha de passar, diariamente, o tempo necessário para cumprir os meus deveres escolares, “as minhas obrigações”, como se dizia. À tabuada, recitada ao pé da mãe, enquanto ela costurava, seguia-se, ainda com a ajuda dela, a leitura na Cartilha Maternal, do João de Deus. Depois era cópia e as contas, mais tarde, os problemas e as redacções. Tudo isto em casa porque, por decisão do meu pai, cumpri o equivalente aos dois primeiros anos de escolaridade no chamado Ensino Doméstico, uma modalidade legalmente autorizada, sob a tutela de um membro da família com habilitações para o fazer, neste caso o meu pai. Terminadas as ditas obrigações, num tempo que tinha o sabor da prisão e sempre me pareceu uma eternidade, deixada a pasta dos livros caída a um canto, zunia para a minha liberdade. E a minha liberdade era a Porta Nova e tudo o que ali se fazia.

Já aluno da escola primária e, depois, a frequentar o liceu o melhor, para mim, era o som da sineta com que a “menina” Júlia anunciava o fim das aulas, e o melhor dia da semana sempre foi o Sábado, a que se somava mais um dia de liberdade e mil tarefas e projectos para realizar fora de casa, na Porta Nova. Findos esses dois dias, nos serões de Domingo, a procurar fazer, mal e à pressa, os trabalhos de casa, era invadido pelo sentimento do dever não cumprido e, na manhã de 2ª-feira, era com esse sentimento e um certo novelo no estômago que percorria o caminho que me levava ao encontro dos professores.

Nos grandes fins de tarde e nos serões de Verão, corria-se e brincava-se na Porta Nova. Era o tempo dos jogos do agarra e das escondidas, como nós dizíamos. As colunas das arcadas eram esplêndidas para esconder e também para as fintas, travagens e mudanças bruscas de trajectória, até que se chegasse a salvo ao coito. Era o tempo dos filmes do Tom Mix, do Buck Jones e do Ken Maynard. Escarranchados em canas com uma cabeçorra de cavalo recortada em cartão, a rapaziada encarnava aqueles “cobóis”, armada de pistolas de pau, que cada um engerocava de acordo com a sua habilidade, correndo e gritando “camones” e “mãos-ao-ar”, escoiceando com as botas cardadas e fazendo tiros com a boca: pum, pum, pum!....

Este largo, como aliás toda a cidade, tinha trânsito diminuto, quase todo reduzido a carros e carroças de tracção animal e, sobretudo, durante o dia. Só lá de quando em quando passava um automóvel buzinando sempre, a anunciar a aproximação. Brincar e correr na Porta Nova tinha a segurança de um jardim. A única restrição era o polícia do giro e, aí, a malta disfarçava ou sumia-se. Os que jogavam à bola escondiam a bola ou iam jogar para outro lado.

Numa pacata cidade de província desse tempo os elementos da Polícia de Segurança Pública contavam-se pelos dedos e eram nossos conhecidos. Para os rapazes como eu, cujas travessuras mais graves seriam gritar e correr na rua, ir de encontro a um passante, ou acertar-lhe com uma bolada, o agente limitava-se à apreensão do “esférico” (de trapos bem apertados numa meia velha) seguida de uma ameaça nunca cumprida:

«Levo-te à esquadra para que o chefe te mostre a menina-de-cinco-olhos que lá tem numa gaveta. Ninguém sai de lá sem lhe tomar o gosto, com uma dúzia de palmatoadas. E, quando é preciso, põem-se umas pedrinhas de sal na palma da mão». Se punham ou não punham, nunca soube. Talvez o fizessem aos mais pobres, desprotegidos e desgraçados, apanhados a roubar algo para comer, que os havia muitos.

Esta minha riquíssima vivência na Porta Nova só se inverteu já eu era crescidinho e graças a dois ou três professores do Liceu e a uns tantos colegas, três ou quatro anos mais velhos, invulgarmente interessados nas coisas da cultura, fosse ela a das ciências exactas e naturais ou a das humanidades. Estes meus amigos liam muito e discutiam mais. Falavam de hereditariedade, de genética e de evolução, de física nuclear, de poetas e poesia, de filosofia e de arte, sobretudo de pintura. Deram-me a ler os «Cadernos» do Agostinho da Silva. Alguns gostavam e praticavam fotografia, desde o acto de captar a imagem ao trabalho de revelação na câmara escura. Faziam experiências de química e de física, atamancaram um telescópio rudimentar que permitia ver nitidamente as crateras da superfície lunar, dissecavam lagartixas e outros bichos para ver como eram por dentro. Com eles apanhei folhas de árvores e de outras plantas, que espalmávamos e secávamos entre folhas de jornais, com que começámos um herbário. Eu era ainda um rapazinho de calções quando eles, já adolescentes de calça comprida, me aceitaram como companheiro e me deixavam assistir às suas discussões e participar nas muitas actividades que desenvolviam. Como foi agradável aprender coisas, assim, pelo verdadeiro interesse que elas despertavam, e como esta via de explorar conhecimentos era diferente das aulas, tantas vezes livrescas e de fazer sono, e do estudar a mando do professor.

Foi da Porta Nova que, com o meu irmão Mário ou com dois ou três colegas de Liceu saí para as minhas primeiras incursões no mundo rural envolvente da cidade. Esta experiência, que prolonguei anos a fio, sob a forma de campismo rudimentar e selvagem em territórios sucessivamente mais alargados, somada a todas as outras vividas no meio citadino, foram determinantes na formação da minha maneira de estar e de participar na sociedade. Nestas incursões nos campos do Alentejo, dormindo numa canadiana emprestada pela Ala de Évora da Mocidade Portuguesa e cozinhando o que calhasse numa velha panela de ferro, conheci herdades, homens e mulheres do campo e os trabalhos que faziam. Do lançar do trigo à terra, em braçadas do semeador, certas e cadenciadas, à debulha, sob o brasido do sol de Verão e do calor não menos intenso da ruidosa locomóvel, entre nuvens de moínha, tudo o que vi e experimentei me deu a noção exacta do valor do pão. E esse tudo foi presenciar o abrir dos regos, um trabalho duríssimo de homem só, de mão firme na rabicha do arado, de aivecas bem fundas, puxado por possantes parelhas de mulas, foi a monda da primavera, um trabalho de mulheres novas e velhas, tagarelando e cantando, e, finalmente, a colheita do cereal partilhada por “ratinhos”, nome algo depreciativo que se dava aos homens da Beira Baixa vindos todos os anos para a “aceifa”.

Assisti a descortiçagens (ou despela, no dizer de alguns) nos montados de sobro e dei-me conta da perícia dos tiradores, manuseando o machado, e dos molheiros, a amontoarem as pranchas de cortiça, explicando-me depois que, assim, bem arrumadas numa pilha de base rectangular, permitiam ter uma ideia do peso de toda a tirada.

 
 

Porta Nova, em começos do século XX, antes da implantação da República.

Ficou-me no ouvido o som cavo do machado, bem afiado e brilhante do uso, a entrar fundo na cortiça madura, e o cantar das grandes e encurvadas pranchas a descolarem do tronco descarnado.

Experimentei o varejo da azeitona e andei de joelhos na apanhá-la caída nos oleados ali estendidos no chão e estive num velho lagar de azeite o tempo suficiente para saber como se faz o precioso óleo da gastronomia mediterrânea. Vi esmagar a azeitona com mós de pedra num engenho da antiga Fábrica Metalúrgica do Tramagal. Vi espremer a pasta entre capachos, a separar o bagaço do mosto oleoso, senti o forte aroma do azeite virgem a sobrenadar uma aguadilha suja e percebi o sentir da minha mãe quando dizia «não se come uma azeitona de uma só vez», explicando que não se trata assim uma preciosidade que leva um ano a criar.

Ajudei, como curioso de ocasião, em vindimas, respirei o cheiro de um outro mosto, provei o vinho novo pelo São Martinho e acompanhei os trabalhadores, na grande adega das Cortiçadas, petiscando toucinho assado no braseiro da destila, junto ao alambique, acompanhado de sorvinhos de aguardente ainda morna, acabada de fazer. Acompanhei, interessado, o trabalho do caleiro, do desmonte e malho da pedra ao empilhamento do forno, vi armar e cobrir de terra os tradicionais fornos de carvão e conheci o intenso cheiro a tição que libertavam. Fiquei horas a ver oleiros no trabalho do barro vermelho com a roda e tive oportunidade de apreciar a arte de enfeitar com pedrinhas de quartzo a tradicional loiça de Nisa.

Bebi água por cocharros de cortiça, tirada do poço, junto ao bebedouro do gado e molhei os pés nos regos das hortas onde nos deixavam apanhar beldroegas com que fizemos tantas das nossas refeições. Foram muitas as vezes que confraternizei com os trabalhadores rurais, sentados no chão, de “navalhinha” na mão, comendo nacos de pão com lasquinhas de queijo ou de linguiça. Com estes meus amigos iniciei a consciencialização dos problemas sociais e políticos que a cidade, nesse tempo vigiada e censurada, não permitia. Com eles interiorizei uma saudável ruralidade que me acompanhou ao longo da vida e me permitiu caldear as influências elitistas do meio académico a que pertenci durante mais de quarenta anos.

   
     
 
 

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
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