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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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A.M. GALOPIM DE CARVALHO |
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Cante alentejano |
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A declaração do Cante Alentejano como Património
Cultural Imaterial da Humanidade foi aprovada pelo Comité
Intergovernamental da UNESCO,
em Paris, no passado dia 27 de Novembro. Logo após a feliz
decisão, as vozes dos cantadores do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do
Povo de Serpa fizeram-se ouvir nos espaços da nobre Organização das
Nações Unidas para a Educação Ciência e Cultura na capital francesa.
Todos sabemos que, com uma ou outra excepção, por
razões óbvias, os media
preferem os grande escândalos.
Casos como o que tem ocupado as primeira páginas na semana que
findou, vendem, seguramente muito mais do que esta
honraria atribuída à cultura portuguesa. Todos sabemos que é assim e é
ingénuo quem pensar o contrário.
Na literatura sobre a gastronomia alentejana
encontram-se referências a uma certa associação que sempre se fez entre
os comeres e o cante que distinguem esta que é a maior província de
Portugal. Não será exagerado dizer que todo aquele que teve o privilégio
de ouvir os homens em coro numa das muitas vendas e tabernas, onde os
cheiros da cozinha invadem a zona de convívio, não poderá deixar de
fazer esta associação. Quem já comeu numa qualquer aldeia do Alentejo e,
a dada altura, os homens se levantam e unem num coral, único na
museografia nacional e mundial, não pode deixar de ligar os sons e os
sabores que ali persistem, como que a fazerem frente à mundialização
cultural que nos invade.
Sempre associei os aromas da gastronomia tradicional alentejana aos seus
cantares. E isso resulta de uma vivência começada em criança, em finais
dos anos 30, quando ia à taberna do Monginho buscar meio litro de
vinagre e por lá me esquecia a ouvir os homens, à volta de uma grande
mesa forrada de oleado, repleta de petiscos perfumados e de copos de
vinho, uns cheios, uns meios, outros vazios. Foi numa destas idas ao
Monginho que o «Meu lírio roxo» nunca mais se separou do grão cozido, a
fumegar, temperado de azeite e vinagre, com salsa e cebola picadas, que
os homens comiam a acompanhar sardinhas de barrica acabadas de fritar,
enchendo o espaço do convidativo
cheiro da fritura.
Esta junção dos cantares, dos comeres e seus odores,
tive-a por diversas vezes, na adolescência, de que recordo um fim de
tarde, nos anos 50, na venda do Ti’ Zé Calado, na Vendinha, em que se
assavam linguiças e farinheiras e se ouvia, cadenciada, «A ribeira
quando nasce, vai de pedrinha em pedrinha...». Uma outra vez, foi na
tasca do Rabino, em Valverde,
num Agosto seco e escaldante, corria o ano de 1964. Foi
com os rurais que ali trabalhavam nas escavações da Anta Grande
do Zambujeiro e no Cromeleque dos Almendres com o arqueólogo Henrique
Pina. E nesta era o coelho frito, temperado de alho e pimentão, e as
perninhas de rã de tomatada, ao som do «Deitei o limão correndo...». O
aroma e o sabor do toucinho tirado da salgadeira e assado na brasa,
comido com pão à navalha e copinhos de aguardente perfumada, saída ainda
quente do alambique, na grande adega das Cortiçadas, em São Sebastião da
Giesteira, nunca mais se separou do «Ao romper da aurora, sai o pastor
da cabana...»
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Uns tempos mais
tarde, ainda a «Grândola, Vila Morena», do grande e saudoso
Zeca, não tinha a conotação que passou a ter a partir “daquela
Madrugada”, os seus belos acordes remataram uma monumental
açorda de poejos com bacalhau e ovos cozidos, comida lá para as
tantas, para “desenratar” de uma jornada de fartas comezainas e
muitos copos nas bodas de um parente.
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Ilustração do Autor |
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A última situação que me foi
dado viver deste casamento de sabores e cantares teve lugar em finais de
1998, na Pousada dos Lóios, em Évora, durante um almoço oferecido aos
participantes do «1º Simpósio Internacional para a Paleobiologia dos
Dinossáurios», que tive o gosto de promover, como director do Museu
Nacional de História Natural. Uma vintena de cientistas de nomeada,
oriundos das cinco partes do mundo, saborearam as belíssimas entradas de
paio, presunto e queijos locais e deliciaram-se com o magnífico ensopado
de borrego, olhando e sorrindo para nós como que a dizer «que coisa
boa!». Começavam eles a regalar-se com a encharcada, bem perfumada de
canela, quando um grupo coral de homens e mulheres, envergando os trajes
regionais, irrompeu lá no fundo do grande claustro, cantando e
marchando, grudados uns aos outros, numa mole humana que se aproximava,
lenta e cadenciada, a passo certo, num crescendo de arrepiar os cabelos
e trazer aos olhos uma lágrima rebelde: «Olha a noiva, se vai linda...».
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Grupo de Cante Alentejano
de Évora, por ocasião do 1º Encontro Internacional de
Paleobiologia dos Dinossáurios, na Pousada dos Lóios.
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Como alentejano que me orgulho de ser, cantei com eles e desses momentos
conservo na memória os olhos a brilhar da Doutora Angela Milner,
do Museu de História Natural de Londres, o ar extasiado do Prof. John
Horner, o paleontólogo americano que se celebrizou como assessor
científico de Spielberg no inesquecível
Jurassic Park, ou o do Prof.
Detlev Thies, da Universidade de Hannover. Não esqueço ainda o ar feliz
de merecido orgulho do Dr. Abílio Fernandes, um dinossáurio entre os
autarcas do pós-25 de Abril, um goês que assimilou, a cem por cento, a
maneira de ser e de estar dos alentejanos.
Lisboa, 02 de Dezembro de 2014
A. M. Galopim de Carvalho
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A.M. Galopim de Carvalho. Professor
jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do
Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
Blogue:
http://sopasdepedra.blogspot.com/ |
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