Faleceu
no passado dia 2, aos 101 anos de idade, a Dona Almerinda,
tranquilamente, como um pavio que se apaga.
Quando, há muitos anos, lia
as Selecções do Reader’s Digest,
um dos artigos que mais me agradava, pelo que tinha de conteúdo humano,
era o “O meu tipo inesquecível”. A Dona Almerinda cabia perfeitamente
nesta secção da conhecidíssima revista.
Foi nos anos
oitenta do século que passou, eram os meus dois filhos rapazes de onze e
treze anos. Fiz uma ronda por diversas praias algarvias com o propósito
de arranjar um apartamento para as férias de Verão. Como muita gente,
também nós sentíamos que o mar da costa meridional era incomparavelmente
mais convidativo do que o da fachada ocidental. Foi nesta ronda que fui
dar à Ilha de Faro e aí nos fixámos até que os filhos, quase adultos,
quiseram começar a fazer as suas próprias férias. Nesta restinga de
areia, eles fizeram os seus amigos, todos os anos reencontrados, e nós
fizemos outro tanto com os pais e outros familiares deles. Com as
sombrinhas das diversas famílias, coladas umas às outras, a praia
proporcionava-nos um convívio multifacetado, numa coabitação aberta a
todos os níveis etários, da infância à terceira idade, onde se falava de
tudo, se lia, se bordava, se vigiavam os mais pequenos, a par dos que
tinham por principal objectivo deixar que o Sol lhes desse o bronzeado
que faria a inveja dos vizinhos, colegas de trabalho e demais
conhecidos, uma vez chegados a casa.
Havia sempre
quem trouxesse umas guloseimas caseiras, batatas-doces cozidas, a
escaldar e enroladas num pano branco, por sua vez abafado em jornais,
figos e bolos de amêndoa e, o que mais guardei na memória, os rissóis de
lingueirão feitos na hora pela Dona Cândida, a nossa hospedeira. Foi
neste convívio que conheci a Dona Almerinda. Com casa própria, na Ilha,
ao lado da que todos os anos alugávamos, em Setembro, esta notável
senhora, natural de S. Braz de Alportel, uns dezoito anos mais velha do
que eu, é uma das figuras mais marcantes, pelas boas razões, que me foi
dado conhecer. A Dona Almerinda não andou na escola. Os trabalhos da
casa, da cozinha à costura e a todo o serviço, enquanto rapariga e
depois de casada e mãe de três filhos, ocuparam a tempo inteiro a sua
existência.
A raiar a
idade adulta, viu partir o namorado, forçado a emigrar para o
estrangeiro, em procura de trabalho. Ele sabia ler e escrever e as
cartas que mandava para ela tinham de ser lidas por uma amiga que também
lhe fazia o favor de lhes responder, escrevendo tudo o que ela ditava.
Esta dependência limitava-a, não lhe permitindo dizer tudo o que lhe ia
no pensamento. Tomou então a decisão de aprender o valor das letras e a
desenhá-las, no que, uma vez mais, contou com a ajuda desta amiga. Com
determinação e inteligência, duas características que conservou ao longo
da vida, aprendeu a ler e a escrever o suficiente para, em tempo útil,
comunicar com o seu amor lá longe. Foi esta determinação e inteligência,
associadas a uma natural tranquilidade, que pôs em prática na educação
dos três filhos que, homens entrados na terceira idade se lhe dirigiam
usando, no convívio com ela, palavras e gestos de muito respeito e
carinho. Quando, já centenária, a Dona Almerinda falava, os filhos, as
noras e os netos ouviam-na com a atenção que as suas palavras sábias e
ponderadas sempre suscitaram.
Foi esta
senhora que conheci no areal da praia de Faro, que todas as manhãs ia
“dar banho”, o seu modo de dizer o acto de entrar na água, dar umas
braçadas e sair de seguida. Depois era o prazer de a ouvir contar
histórias, dar opiniões, narrar acontecimentos, descrever situações e
lugares. Era assim, conversando, que se passava a maior parte da manhã.
Após o almoço, nas horas de maior calor e quase sempre ao serão, o
terraço da Dona Almerinda era uma espécie de tertúlia a que muitas vezes
nos juntávamos. Algumas vezes tivemos o privilégio de nos sentarmos à
sua mesa. A canja de berbigões, as ”lulas cheias”, expressão muito sua
de referir as suas incomparáveis lulas recheadas, e o perfumado xerém de
sardinhas, foram sabores e aromas inesquecíveis.
Uma das
histórias que lhe ouvi, deliciosa pelo conteúdo e pelo modo como a
narrou, passou-se em Vancouver, na casa de um dos seus filhos, há muitos
anos radicado no Canadá, casado com uma senhora de origem alemã, pai de
filhos ali nascidos e já avô. No fim do jantar no dia da sua chegada a
casa deste filho, a primeira vez que ali foi em visita, e ao aceitar o
café que a nora lhe servia, esta, que nunca aprendeu o português,
perguntou-lhe «too much?»,
expressão inglesa que, aos ouvidos da Dona Almerinda, apenas soou como a
palavra bem portuguesa tomates. «Ora»,
contava depois esta minha amiga, a segurar o riso, «eu olhava, olhava
para cima da mesa e para todo o lado e não via tomates nenhuns».
Só ao outro
dia teve oportunidade de perguntar ao filho de que tomates lhe falara a
esposa e, assim, lhe foi possível desvendar aquele mistério.
Nos anos que se seguiram à época em que, com
os filhos ainda muito jovens, fizemos ali o nosso mês de praia, foram
muitas as ocasiões em que tive de me deslocar a Faro em serviço docente
no Campus de Gambelas ou para proferir palestras numa escola ou numa
biblioteca municipal da região. De todas essas vezes houve encontro
marcado com a Dona Almerinda para conversarmos e irmos jantar na Ilha,
ao “Zé dos Matos” e saborear os choquinhos fritos e o arroz de
lingueirão da saudosa Celestina.
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