REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

A Dona Almerinda

Faleceu no passado dia 2, aos 101 anos de idade, a Dona Almerinda, tranquilamente, como um pavio que se apaga.

Quando, há muitos anos, lia as Selecções do Reader’s Digest, um dos artigos que mais me agradava, pelo que tinha de conteúdo humano, era o “O meu tipo inesquecível”. A Dona Almerinda cabia perfeitamente nesta secção da conhecidíssima revista.  

Foi nos anos oitenta do século que passou, eram os meus dois filhos rapazes de onze e treze anos. Fiz uma ronda por diversas praias algarvias com o propósito de arranjar um apartamento para as férias de Verão. Como muita gente, também nós sentíamos que o mar da costa meridional era incomparavelmente mais convidativo do que o da fachada ocidental. Foi nesta ronda que fui dar à Ilha de Faro e aí nos fixámos até que os filhos, quase adultos, quiseram começar a fazer as suas próprias férias. Nesta restinga de areia, eles fizeram os seus amigos, todos os anos reencontrados, e nós fizemos outro tanto com os pais e outros familiares deles. Com as sombrinhas das diversas famílias, coladas umas às outras, a praia proporcionava-nos um convívio multifacetado, numa coabitação aberta a todos os níveis etários, da infância à terceira idade, onde se falava de tudo, se lia, se bordava, se vigiavam os mais pequenos, a par dos que tinham por principal objectivo deixar que o Sol lhes desse o bronzeado que faria a inveja dos vizinhos, colegas de trabalho e demais conhecidos, uma vez chegados a casa.

Havia sempre quem trouxesse umas guloseimas caseiras, batatas-doces cozidas, a escaldar e enroladas num pano branco, por sua vez abafado em jornais, figos e bolos de amêndoa e, o que mais guardei na memória, os rissóis de lingueirão feitos na hora pela Dona Cândida, a nossa hospedeira. Foi neste convívio que conheci a Dona Almerinda. Com casa própria, na Ilha, ao lado da que todos os anos alugávamos, em Setembro, esta notável senhora, natural de S. Braz de Alportel, uns dezoito anos mais velha do que eu, é uma das figuras mais marcantes, pelas boas razões, que me foi dado conhecer. A Dona Almerinda não andou na escola. Os trabalhos da casa, da cozinha à costura e a todo o serviço, enquanto rapariga e depois de casada e mãe de três filhos, ocuparam a tempo inteiro a sua existência.

A raiar a idade adulta, viu partir o namorado, forçado a emigrar para o estrangeiro, em procura de trabalho. Ele sabia ler e escrever e as cartas que mandava para ela tinham de ser lidas por uma amiga que também lhe fazia o favor de lhes responder, escrevendo tudo o que ela ditava. Esta dependência limitava-a, não lhe permitindo dizer tudo o que lhe ia no pensamento. Tomou então a decisão de aprender o valor das letras e a desenhá-las, no que, uma vez mais, contou com a ajuda desta amiga. Com determinação e inteligência, duas características que conservou ao longo da vida, aprendeu a ler e a escrever o suficiente para, em tempo útil, comunicar com o seu amor lá longe. Foi esta determinação e inteligência, associadas a uma natural tranquilidade, que pôs em prática na educação dos três filhos que, homens entrados na terceira idade se lhe dirigiam usando, no convívio com ela, palavras e gestos de muito respeito e carinho. Quando, já centenária, a Dona Almerinda falava, os filhos, as noras e os netos ouviam-na com a atenção que as suas palavras sábias e ponderadas sempre suscitaram.

Foi esta senhora que conheci no areal da praia de Faro, que todas as manhãs ia “dar banho”, o seu modo de dizer o acto de entrar na água, dar umas braçadas e sair de seguida. Depois era o prazer de a ouvir contar histórias, dar opiniões, narrar acontecimentos, descrever situações e lugares. Era assim, conversando, que se passava a maior parte da manhã. Após o almoço, nas horas de maior calor e quase sempre ao serão, o terraço da Dona Almerinda era uma espécie de tertúlia a que muitas vezes nos juntávamos. Algumas vezes tivemos o privilégio de nos sentarmos à sua mesa. A canja de berbigões, as ”lulas cheias”, expressão muito sua de referir as suas incomparáveis lulas recheadas, e o perfumado xerém de sardinhas, foram sabores e aromas inesquecíveis.

Uma das histórias que lhe ouvi, deliciosa pelo conteúdo e pelo modo como a narrou, passou-se em Vancouver, na casa de um dos seus filhos, há muitos anos radicado no Canadá, casado com uma senhora de origem alemã, pai de filhos ali nascidos e já avô. No fim do jantar no dia da sua chegada a casa deste filho, a primeira vez que ali foi em visita, e ao aceitar o café que a nora lhe servia, esta, que nunca aprendeu o português, perguntou-lhe «too much?», expressão inglesa que, aos ouvidos da Dona Almerinda, apenas soou como a palavra bem portuguesa tomates. «Ora», contava depois esta minha amiga, a segurar o riso, «eu olhava, olhava para cima da mesa e para todo o lado e não via tomates nenhuns».

Só ao outro dia teve oportunidade de perguntar ao filho de que tomates lhe falara a esposa e, assim, lhe foi possível desvendar aquele mistério.

Nos anos que se seguiram à época em que, com os filhos ainda muito jovens, fizemos ali o nosso mês de praia, foram muitas as ocasiões em que tive de me deslocar a Faro em serviço docente no Campus de Gambelas ou para proferir palestras numa escola ou numa biblioteca municipal da região. De todas essas vezes houve encontro marcado com a Dona Almerinda para conversarmos e irmos jantar na Ilha, ao “Zé dos Matos” e saborear os choquinhos fritos e o arroz de lingueirão da saudosa Celestina.

 

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
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