Naquele ano de 1948, depois de a menina Júlia ter
tocado a sineta para o começo das aulas, no segundo tempo de uma manhã
soalheira de começos de Outubro, ainda com muitos dos alunos a entrarem
nas respectivas salas, vi ao fundo dos claustros, caminhando na nossa
direcção, em largas e descontroladas passadas, uma figura algo estranha.
Um tanto inclinado para a frente, olhando o chão, longe do mundo alegre,
despreocupado e barulhento de rapazes e raparigas, aproximava-se de nós
um homem de meia idade, grande, com uma melena escura, nascida de um dos
lados da cabeça, a tentar tapar a parte calva. Era o nosso professor de
Filosofia, António Hortêncio da Piedade Morais. Saído do Liceu Alves
Martins, de Viseu, viera para Évora, com colocação no Liceu Nacional
André de Gouveia. Personagem introvertida, o Dr. Piedade Morais, assim
era referido entre nós, seus alunos, entrava sempre de rompante na sala
de aula e, sem olhar para a turma, proferia a sua lição, numa linguagem
clara e acessível, visivelmente interessado nos temas em
desenvolvimento. Terminado o tempo, assinalado por mais um toque da
sineta, saía, como entrara, a caminho da sala dos professores,
apressadamente, alheio ao bulício dos alunos, também eles a saírem das
aulas, cheios de energia, a descomprimirem de cinquenta minutos de
compostura.
Os diversos livros e cadernos que publicou, em
apoio das suas aulas, permitiam-nos ouvi-lo sem, praticamente, ter de
tirar apontamentos. E isso era bom. Aos poucos alunos que, vencendo a
aparente inacessibilidade deste professor, se aproximaram dele,
revelou-se um homem interessante, amável e de muito saber.
Passados mais de 60 anos, este meu velho
professor apareceu-me num sonho. Era a mesma figura, fisicamente
desajeitada, vestida numa roupa mal cuidada.
Sentámo-nos na escadaria de mármore, frente à
nobre Sala dos Actos do que fora o nosso Liceu, hoje a Universidade de
Évora. Os claustros, vazios de gente e silenciosos, convidavam a um
exercício de memória. Falámos dos colegas dele, meus professores,
lembrando as qualidades de uns e a falta delas de outros. Falámos dos
meus colegas, seus alunos, que, ao contrário de que eu supunha, ele
conhecia perfeitamente. E, como não podia deixar de ser, falámos de
filosofia.
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- Ainda te lembras dos pré-socráticos? – Deu ele
início à nossa conversa.
- A minha vida profissional – respondi, ainda
surpreso pelo inesperado aparecimento - arrastou-me quase obcessivamente
para o domínio das ciências exactas e naturais. Mas não esqueci o papel
da filosofia e, em particular, da que surgiu na Grécia antiga e deu
nascimento a estas mesmas ciências. Lembro-me perfeitamente dos
filósofos, Leucipo de Mileto e de Demócrito de Abdera, do século V,
antes de Cristo, para os quais tudo o que existia era feito de átomos e
vazio.
- Para esses atomistas e precursores do
materialismo, o átomo, como o nome indica, era algo indivisível. Uma
ideia que se manteve até ao século XX. - Interrompeu o velho professor.
- Eu sei. - Anui. - Os trabalhos do neozelandês
Ernest Rutherford e do dinamarquês Niels Bohr, mostraram que assim não
era. Quanto ao vazio, - continuei - trata-se de um conceito que posso
imaginar como sendo o que em física se entende por vácuo absoluto.
- Como deves ter deduzido das minha aulas, também
sou um materialista como esses dois atomistas que citaste e ainda, como
Epicuro de Samos, um outro grego do século seguinte, e como Lucrécio
Caro, o poeta romano que viveu cerca de três centúrias mais tarde. Sou
um materialista, diga-se, no sentido filosófico da palavra, não no
vulgar e pejorativo de pessoa só interessada nos bens materiais. Sou de
opinião de que tudo o que existe é matéria e que todos os fenómenos que
observamos são o resultado de interacções materiais. O pensamento, ou
seja, a actividade intelectual, psíquica ou espiritual, como alguns
preferem dizer, cria as ideias, mas temos de concordar que essa
actividade é processada por células do cérebro, que sabemos serem
entidades materiais.
- Feitas de átomos como oxigénio, carbono,
hidrogénio, azoto, fósforo e outros. – Acrescentei.
- Isso já eu não sabia. – Disse ele, com um
sorriso de quem pede desculpa por desconhecer este pormrnor.
- Não sendo matéria, - ocorreu-me dizer, em
consonância com o pensamento do meu interlocutor - as ideias são fruto
de um estado muito avançado desta realidade física e biológica, que é o
cérebro.
As ideias – continuou ele - são parte do
intelecto ou do espírito de quem as concebeu enquanto criatura viva e,
portanto, radicam em algo bem material. Morto o cérebro são muitas as
ideias que sobrevivem através das suas criações, por tempo menos ou mais
dilatado. Leucipo e Demócrito, para citar apenas dois, morreram há mais
de dois milénios, mas as suas ideias continuam bem vivas. As criações
materiais, que podemos tocar ou ver, uma escultura ou uma pintura, por
exemplo, encerram ideias que não morrem, a não ser que algo as destrua.
Mas as criações imateriais morrem se não tiverem quem as mantenha vivas
e as transmita. O pensamento filosófico ou o matemático só existem se
forem registados num qualquer suporte material ou se alguém, como
criatura viva, os recordar. A música existe mas só nos damos conta dela
se for escrita, tocada, gravada ou cantada. O mesmo sucede com a poesia.
É por isso que se fala da imortalidade de Píndaro, de Virgílio, de
Camões, de Pessoa e de tantos outros.
Numa pausa do meu interlocutor, ousei entrar
neste tema dizendo banalidades como:
- Fala-se da alma do poeta esteja ele, ou não, no
mundo dos vivos. Há quem chame alma à actividade intelectual do ser
humano. Para mim, a alma dos que partiram é a memória que deles nos
ficou. Qual é, pois, a vossa ideia sobre a alma? Gostava de vos ouvir
sobre esta entidade que a minha formação, demasiado materialista, tende
a negar.
- Como certamente sabes, a Bíblia ensina que a
alma, entendida como espírito, é uma emanação exclusiva do Homem a quem
Deus deu vida no sexto dia da Criação, o que, segundo o texto sagrado,
aconteceu há cerca de seis mil anos. Para os crentes, a alma nasce com o
ser humano, cresce e evolui com ele, liberta-se dele no momento da morte
do respectivo corpo e permanece para além dele.
- Nessa concepção, - anui - a
morte
física de alguém tem lugar no momento em que a alma abandona o corpo e
parte para uma outra forma de existência, entendida como unicamente
espiritual, imortal e, portanto, eterna!?
- Exacto. O termo radica no latim
anima e significa “o que anima” e dele
derivam palavras do nosso dia-a-dia, como animal,
animado, animação, ânimo e
animismo, a teoria que
considera a
alma,
simultaneamente, princípio de vida psíquica e física ou orgânica.
- Nesta óptica, abandonado pela alma, o corpo
fica sem animação e, portanto, morto. – Conclui.
- O conceito de alma é muito antigo. – Continuou o professor. -
No
âmbito da grande maioria das religiões cristãs e não cristãs, a alma é
uma entidade imaterial que continua a existir após a morte do corpo,
destinada a fruir, para sempre, a graça celestial ou condenada ao eterno
tormento.
- Poderemos, então, admitir – perguntei – que,
uma vez libertas do corpo e dos interesses e compromissos inerentes à
vida terrena, as almas se tornam as melhores críticas dos actos dos
homens ou das mulheres que foram?
- Na linha da tradição religiosa pagã da antiga
Grécia, Platão ensinava que as almas, na sua imortalidade, caminhavam
para a perfeição, libertando-se dos medos e de outros defeitos humanos,
entre os quais, a inevitável condição de errar.
- Ganhando sabedoria, portanto. – Conclui.
- E essa sabedoria, - retomou o meu interlocutor, - era interpretada por
Platão como a capacidade de conviver com os deuses por todo o sempre.
Mas deixa-me dizer que, para
Lucrécio, a alma morria com o corpo de que foi complemento. Ele defendia
que, após a morte, dela restava o que ele designou por simulacrum,
a entidade a que o povo chama fantasma e que muitos acreditam deambular
entre os vivos. Nesta sua visão o poeta romano revela ter bebido na
sabedoria grega. É evidente que foi buscar a ideia epicurista de
eidolon, termo grego que refere o mesmo tipo de entidade.
- Para os espíritas, na palavra de Alan Kardec[1],
o
ser humano
é um
espírito
preso temporariamente num corpo material. E esse espírito é a alma? –
Perguntei.
- No meu entender – respondeu – os dois conceitos confundem-se. O
espiritismo é uma doutrina
centrada na natureza, origem e destino dos espíritos ou, se
quiseres, das almas, nas suas relações com o mundo corporal e nas
consequências morais que delas emanam.
- Voltando à almas, - acrescentei, procurando manter a nossa conversa, -
a Igreja ensina que há tantas almas, quantas a pessoas nascidas na
Terra. Há, portanto, as almas das pessoas que estão vivas e as de todas
as que já morreram, digamos que desde Adão e Eva. Aceitando esta versão
bíblica, o número de almas é imenso e não para de crescer. Assim sendo,
apetece-me perguntar: onde é que cabem tantas almas?
- A resposta é muito simples. O conceito de alma
implica o seu carácter imaterial. Assim, as almas não têm dimensão
física, nem de volume nem de massa, não têm peso nem cor e não ocupam
espaço. São como o pensamento. Para elas não há gravidade nem
distâncias, nem fronteiras, não há alto nem baixo, nem dia nem noite,
nem quente nem frio. São ubiquistas, podendo estar, ao mesmo tempo e a
qualquer momento, aqui e nos quasares mais longínquos, nos confins do
Universo, a milhares de milhões de anos-luz.
- Já agora, uma outra questão. – Continuei. - Sendo a alma exclusiva do
Homem e se tivermos em atenção a evolução do ser humano como espécie,
desde o mais antigo primata, até ao
Homo sapiens actual, passando
pelos australopitecos e pelos outros hominídeos que os estudiosos têm
descoberto e descrito, a pergunta que me ocorre fazer é «a partir de que
estádio evolutivo da hominização, os nossos antepassados começaram a
surgir acompanhados das respectivas almas?» Foi no
Neanderthal, aparecido há
umas centenas de milhares de anos, ou foi só no
Cro-Magnon, que se pensa ter
exterminado aqueles, há uns trinta ou quarenta mil anos?
- Para mim, como já deves ter entendido, a alma é o psiquismo decorrente
da vida biológica. Ora nós sabemos, sem sombra de dúvida, que os nossos
antepassados exerceram actividade psíquica e, neste sentido, torna-se
evidente que tiveram alma tal como eu a entendo. E mais ainda, muitos
animais superiores revelam capacidades cerebrais amplamente investigadas
em institutos de psicologia animal, pelo que podemos dizer que também
têm alma, repito, no sentido que dou à palavra. Quem põe em causa a
inteligência de um chimpanzé, de um cão, de um golfinho ou, mesmo, do
Troodon formosus, o
dinossáurio carnívoro,
desaparecido há mais de
sessenta milhões de anos?
Nesta fase da nossa conversa, pareceu-me, por
fim, oportuno perguntar:- O que pensa o professor do Céu e do Inferno?
- Desde a Antiguidade, - começou por dizer, - o
vulcanismo preocupou, sobretudo, as populações do sul da Europa, por ser
aí, no Mediterrâneo, que se podia observar a respectiva actividade.
Lembremos, por exemplo, a catástrofe de Santorini e as erupções do
Estromboli, do Etna ou do Vesúvio. Na Idade Média prevaleceram as ideias
e os temores que marcaram aquele tempo antigo, acrescidas de crenças
religiosas que viam nas lavas incandescentes uma manifestação do fogo do
Inferno. Nessa convicção, os domínios de Satanás situavam-se sob os seus
pés, lá bem fundo, numa imensa e eterna fornalha. O essencial desta
ideia continuou a ter expressão no cristianismo e foi usada durante
séculos como ameaça de castigo dirigida aos pecadores. Relativamente ao
Céu, estou em crer que os seguidores da palavra de Cristo precisavam de
um “modelo matemático” para justificar os seus dogmas bíblicos e, assim,
o pensamento de Ptolomeu relativo ao geocentrismo foi particularmente
bem aceite pela Igreja católica. Em oposição ao Inferno, o Céu pairava
nas alturas, para lá das últimas esferas ptolomaicas, no imenso,
luminoso, feliz e também eterno reino de Deus, destino das almas
merecedoras de uma tal ventura. E agora, digo-te adeus. Foi bom falar
contigo.
Tal como
há décadas,
vi-o afastar-se em largas e descontroladas passadas, inclinado para a
frente, olhando o chão.
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