Zé Grande era o feitor de um importante lavrador com residência em Évora
e pai de dois rapazes da minha geração. No Alentejo o lavrador não é o
trabalhador que lavra a terra mas o dono delas. Via de regra, tem ao seu
serviço um homem da sua confiança, bom conhecedor dos trabalhos
agrícolas, incluindo os relativos à criação e negócio do gado. Zé Grande
tinha sido porqueiro em criança, fora dos tempos de escola onde
concluíra a 4ª classe. Bom de cabeça, a leitura não lhe metia medo e,
dizia-se, era esperto e fino que nem um doutor. Fora ganhão respeitado
em todas as fainas, tendo revelado qualidades de organização do trabalho
e de chefia que o fizeram chegar onde chegou.
O lavrador era um homem com estudos e invulgarmente culto, uma excepção
na sociedade provinciana, atrasada e preconceituosa que ainda era a
nossa nos anos 50 do século que passou. Conhecedor de arte, tinha em
casa dezenas de pinturas originais, entre as quais recordo algumas do
pintor arraiolense Dórdio Gomes, com magníficas paisagens alentejanas,
onde os homens e mulheres do campo, o montado de cortiça e os cavalos
eram temas dominantes. Apreciador da grande música, dispunha das maiores
obras dos mais destacados mestres da Europa, em discos da
Deutsche Grammophon,
de 78 rotações. Foi na sua casa que ouvi, pela primeira
vez, os concertos e as sinfonias de Beethoven, a abertura da ópera
Tannhäuser, de
Wagner,
Daphnis e
Chloé, de Ravel,
a
Sagração da Primavera,
de
Stravinsky e muitas outras.
Zé Grande era um homem de estatura avantajada, na casa dos 50 anos, bem
parecido e bem falante. Era grande por fora e por dentro, diziam os que
com ele privavam. Conhecia “de olhos fechados” todos os segredos da vida
do campo, quer os do trabalho, quer os do dia-a-dia dos homens e
mulheres que ali trocavam a força dos braço pelo pão que comiam.
Conheci-o numa das vezes em que, a convite do Domingos, o filho mais
velho do lavrador, fui à herdade das Pedras Alvas, onde ele vivia.
Ficámos amigos e foram muitas as vezes que nos sentámos à mesma mesa, no
Café Arcada, quando ele vinha à cidade tratar dos mais variados assuntos
próprios das suas funções.
Recordo o modo de se tratarem entre si estes meus amigos. Vingava nesse
tempo, no Alentejo que conheci, a hierarquia da idade. O patrão velho
tratava por tu o feitor e este, ao responder-lhe , dava-lhe senhoria.
Aos filhos do patrão, que ele vira nascer e crescer e que, com o tempo,
acabaram por ser seus patrões, o Zé dava o tu, ao que eles respondiam
com o tradicional vossemecê.
Um belo dia de Maio, em que as searas de pão estavam a virar de verde a
ouro, o Domingos levou-me a percorrer aquela mesma herdade. Andámos por
lá o tempo todo numa charrete puxada pela
Vermelha, uma elegante e
ligeira égua, até fazer horas do almoço que ali e então se dizia
“jantar”. Não vi toda a propriedade, tal a sua extensão, mas vi que as
pedras alvas que deram nome à propriedade, eram as de um importante
filão de quartzo leitoso que, por ser mais duro do que o xisto,
aflorava, saliente, à superfície do terreno.
Na casa do feitor regalámo-nos com umas belas sopas de tomate,
enriquecidas pelo pingo da linguiça e do toucinho tirado da salgadeira,
aromatizadas com poejos e acompanhadas com ovos escalfados.
Estávamos de abalada e já prestes a entrar no velho Opel, quando o Zé,
pedindo-nos que esperássemos um minuto, entrou em casa, saindo momentos
depois com um par de botas de atanado que entregou ao jovem patrão.
- Podes usá-las à vontade, que já não te fazem bolhas nos pés.
Fiquei curioso face àquela conversa do feitor e, vínhamos nós na
estrada, a chegar à cidade, perguntei ao meu amigo o que é que ele
queria dizer com aquela história das botas e das bolhas nos pés.
É muito simples, - Respondeu-me, com um sorriso matreiro estampado no
rosto. – O Zé Grande calça o mesmo número que eu, mas tem os pés mais
calejados, mais valentes do que os meus. Assim, como as botas de atanado
são duras como um corno, passo-lhas para a mão antes de as calçar. Ele
besunta-as com sebo e anda com elas uma semana ou duas até as amansar.
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