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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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A.M. GALOPIM DE CARVALHO |
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Sopas de pão molhado |
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– Mas do que é que tu gostas, Ana Isabel!? Tirando o bife, o frango e as
batatas fritas, de que é que tu gostas, rapariga? Não comes feijão
porque enfarta e com o grão é a mesma desculpa. À massa chamas
“massunga” e não a queres, o arroz dizes que é para os pintos e eu que o
coma, e às sopas chamas “soponas” e não lhes tocas. Afinal o que é que
te posso fazer?
– Tudo, menos sopas de pão molhado. – Respondeu a
neta, com um lindo sorriso. Gosto de pão mesmo que seja duro e sem
manteiga nem nada, pão seco como se diz cá no monte. Gosto de sopa, mas
é só daquela de caldo, em puré, que é só de engolir como o leite, sem
mastigar. A sopa que nos dão no colégio também não presta. A gente
chama-lhe “sopa de lixo”. Gosto de “hamburgers” e de cachorros, mas isso
não há cá, nem a avó sabe o que é.
– Sei, sim senhor! – Atalhou a D.
Rosalina – Uns são bifes de carne moída. Já cá se vendem no talho e os
cachorros são salsichas no pão. Sei muito bem o que é! Quando fomos à
Expo, foi o nosso almoço. Não havia sítio para uma pessoa se sentar.
Posso muito bem fazer-te, mas isso não é comida de gente.
A Ana
Isabel passava todas as férias com os avós paternos no Monte da Cegonha
Grande, entre Pegões e Vendas Novas. Férias grandes e férias pequenas,
no Natal e na Páscoa, não falhava uma. Às vezes lá tinha de passar a
consoada em Lisboa, com a família da mãe, mas vinha logo que podia,
pedindo que a trouxessem para o pé da avó Rosalina onde, mesmo no frio
do Inverno, repartia os dias entre a rua e a grande chaminé da cozinha,
com lume convidativo, feliz como um pardal, no dizer do avô, até que o
pai a viesse buscar, quase sempre no último dia.
Como a maioria dos
alfacinhas, a Ana Isabel detestava sopas de pão.
– Fazem-me vómitos.
– Dizia, de cara franzida.
As sopas de pão eram as únicas coisas que
não a identificavam com o Alentejo. Ali tudo era bom e adorava estes
avós. Gostava das pessoas do campo, dos animais, da vida que ali se
vivia. Só não podia com as malditas sopas. Era a açorda, a sopa da
panela, a sopa de tomate, a sopa de peixe e todas as outras. E eram
tantas! Todos os dias! Muitas vezes, ao almoço e ao jantar. Tudo pão
molhado. Uma decepção! Apreciava os aromas e os sabores do coentro e do
poejo, mas aquela visão de pão embebido no caldo trazia-lhe à memória
uma «açorda» que a mãe fizera, horrível, com o pão de carcaça, numa
tentativa de imitar a já de si adulterada “sopa alentejana” que se faz
nos restaurantes de Lisboa. Acontece que, um belo dia, num domingo, a
mãe da Ana Isabel, com a maior boa vontade do mundo, tentara oferecer ao
marido um cheirinho de açorda da sua (dele) criação, mas, como não tinha
coentros, fê-la com salsa, esqueceu-se do alho e escorregou-lhe a mão no
óleo, pois quase não usava azeite. Uma mixórdia gorda, sem sabor e
espapaçada. Uma mistela horrorosa! Simpaticamente, o marido comeu sem
comentários, mas a filha, não. Devolveu ao prato a única colherada que
levara à boca e não houve quem a convencesse a comer. A mãe é que nunca
mais se dispôs a repetir a experiência. Ele que matasse as saudades
quando fosse a casa dos pais.
Estava aqui a origem da grande aversão
da criança pelas suas tão apetitosas sopas. Tinha pois de conciliar o
enorme prazer da alegre e terna companhia da sua neta, com a “ralação”
diária de lhe fazer comida do seu agrado.
Numa das minhas habituais
andanças pelos campos, de há muito conhecia os caseiros do Monte da
Cegonha Grande. Ficava-me no caminho de um areeiro com interesse para o
estudo dos terrenos da grande Bacia do Tejo-Sado. Sempre falei mais com
a mulher, todo o tempo ali à volta da casa, do que com o senhor Ernesto,
sempre afastado nos trabalhos do monte. Só tiveram aquele filho, bom
aluno e trabalhador. Com algum sacrifício, mandaram-no para Lisboa
estudar, onde cursou direito e onde conheceu a Delfina, hoje a mãe da
Ana Isabel.
– Esta aqui é a minha neta. – Disse a D. Rosalina,
depois de me retribuir as boas tardes que lhe dirigi, ao sair do jipe,
vinha ela com um franganito nas mãos.
– Anda cá, Nucha, diz boa
tarde ao senhor! Vou-lhe fazer uma canjinha e depois, frango acerejado
com batatinhas fritas. É muito “niquenta” esta linda menina. É um
castigo para comer. Sente-se aqui um pouco a descansar, que eu já lhe
vou buscar uma pinga de água fresquinha. – E apontou-me um cadeirão de
verga, à sombra do alpendre.
Morta a sede, devolvi o copo que a
minha amiga me trouxera com água do cântaro, pousando-o no pires que
ela, atenciosamente, conservava na mão.
– Já fez dez anos. Está
uma senhorinha. Vai no domingo para o colégio. Acabam-se as férias e o
pai vem cá buscá-la. É um pulinho. Para o Natal já cá a tenho de volta.
– Aqui é que se está bem. – Interrompeu a Ana Isabel. – Lá no
colégio nem vemos o Sol. – Quando for crescida quero ter um trabalho de
andar no campo, ver árvores e animais.
– Vai lá pôr este copo no
poial, faz favor. – Ordenou a avó. – Tem cuidado não caias! – E,
virando-se para mim, – Os pais são advogados. Têm cartório no Chiado e
não dão mãos a medir com tanta clientela. Não têm sábados nem domingos.
São muitos os fins-de-semana em que ela fica sem sair do colégio. O que
vale são as férias. Este ano os pais foram uns oito dias para o sul de
Espanha e ela nem quis ir. Ficou aqui. A mãe é de Lisboa. - Continuou,
depois da menina se ter afastado na companhia de uma amiguinha. - A
minha “genra” foi sempre rapariga de estudo. Primeiro o colégio, depois
a Universidade. Nunca aprendeu nada daquilo que é vida de mulher. Hoje,
com tanto trabalho que tem nem dá atenção à casa... nem à filha. Ele é o
mesmo. Estão-se a encher de dinheiro e nem têm tempo para o gastar.
Comem fora quase sempre e às vezes, quando estão mais cansados e já não
querem sair, lá mandam vir uma comida feita para o jantar. Num
fim-de-semana, em que vão buscar a menina, almoçam fora e, ao jantar, o
meu filho vai buscar um frango assado, batatas fritas, um bolo ou um
gelado e está feita a festa. É um viver que eu não entendo.
Visivelmente preocupada, a caseira balançava entre uma tentação
incontida de desabafar e o cuidado de não pôr os filhos em cheque.
– Ele é homem, sabe como é, mas, mesmo assim, não lhe perdoo. Agora
ela, valha-me Nossa Senhora... Ela é que é a mãe. Dá-se muito bem com o
meu filho. Valha-nos isso. Estão mesmo a calhar um para o outro. Minha
rica neta! Se não fosse eu e o avô, não sei o que seria dela. Que Deus
me dê vida para a acabar de criar. É por isso tudo que ela adora estar
aqui. Mal entra de férias, ó pés para que vos quero, lá obriga o pai a
vir traze-la e só abala mesmo nas vésperas das aulas. Traz a mochila com
tudo o que é preciso para fazer os trabalhos de casa e, lá nisso, é
cumpridora, mais dois ou três livros para, como ela diz, ler um
bocadinho antes de dormir, mas quase nem os abre.
Deliciado, eu
escutava a D. Rosalina. Aquela sombra, a perspectiva de mais um copo de
água fresca a saber a barro, uma memória de infância, e aquele cadeirão
bem almofadado dispunham-me ao papel de psiquiatra, atento ao divagar da
minha amiga, ávida que estava de deitar cá para fora tudo aquilo que lhe
apertava a alma.
– De dia não pára – retomou ela o fio à
conversa. – Anda por todo o lado e mexe em tudo. Dá-se com toda a gente,
velhos e novos. Tem aí amigos, rapazes e raparigas do monte que, quando
ela cá está, não me largam a porta. Ontem, trouxeram-lhe um canito. Já
lhe tinham dado um gatinho e... toma lá mais este trabalho para cima da
avó. Logo de manhã cedo, ainda antes do nascer do sol, já cá está em
baixo com o avô que é quem lhe prepara o pequeno-almoço, como ela diz.
Aí não me dá trabalho. O pior são as sopas que uma criança não pode
deixar de comer. Depois vai ajudar a tratar dos animais, que já a
conhecem e ficam num alvoroço quando a vêem. A semana passada assistiu
ao nascimento do bezerro. No resto do dia, feitas as obrigações do
estudo, tem sempre ocupação. Os cães não a largam, sempre atrás dela. Ao
fim da tarde vai regar a horta. Regar é como quem diz, vai atrás do avô,
descalça, com os pés nos regos, sempre a falar e a rir.
Na sua
incessante e zodiacal caminhada, o Sol franzia-me agora os olhos,
furando por entre as ramadas da glicínia, despertando-me daquele embalar
bucólico. O jipe, uns metros à minha frente, a refrescar à sombra do
telheiro, dizia-me que ainda havia trabalho para fazer.
– Se a
senhora me der mais um copinho de água, antes de ir ao meu trabalho...
– Deixe-se estar aí descansadinho, que a calma ainda é muita. – E
vendo que eu me ajeitava de novo depois daquele outro copo de água,
ganhou alento. – Nem televisão ela vê. Mal janta, vem logo cá para fora
brincar com a rapaziada. Correm, cantam, gritam, eu sei lá. É preciso o
avô vir buscá-la e, mal cai na cama, ferra no sono como um anjo, até de
manhã. Se pudesse tinha-a cá o tempo todo. Quando acabam as férias
vai-se a alegria. É a tristeza do céu cinzento, da chuva e do vazio
deste casarão sem ela. O avô não diz nada mas a gente vê que lhe sente a
falta. Diz que vai mandar pôr telefone para não estarmos assim tão
isolados da família, mas eu sei que é para poder falar à neta e ouvi-lhe
a voz.
E, batendo com as mãos nos joelhos e levantando a cabeça,
em jeito de quem reage à tristeza, esta minha amiga suspirou: –
Paciência. O tempo passa depressa e daqui a uns meses já cá a tenho
outra vez.
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A.M. Galopim de Carvalho. Professor
jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do
Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
Blogue:
http://sopasdepedra.blogspot.com/ |
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