REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Sílex, a primeira matéria-prima

Desde sempre a natureza ofereceu ao homem tudo o que ele necessita para viver, - a água, o ar, os produtos vegetais e animais de que se alimenta e, ainda, as rochas e os minerais. Do sílex, no Paleolítico Antigo, ao actualíssimo “coltan”, passando pelo barro, pelos minérios de ouro, cobre, estanho, ferro e muitos outros, o homem teve artes de, ao longo do tempo, retirar da geodiversidade tudo o que soube utilizar ou transformar em seu proveito.

Sílex, mostrando a fractura conchoidal característica. Notar a crosta (patine) acastanhada clara, de opala e hidróxido de ferro, no cortex. Imagem recolhida em «ancientpoint.com»

De raiz latina, sílex é o nome de uma rocha sedimentar essencialmente siliciosa, ou seja, um silicito, como se diz na moderna nomenclatura petrográfica, e é étimo das palavras silício, o elemento químico, sílica, o dióxido de silício (SiO2) e silicon, um material bem conhecido em cirurgia reconstrutiva. Na origem, significou, também, pedra e calhau. Sendo pedra, o seu uso pelos nossos remotos antepassados, na produção de utensílios vários, deu nome ao período da Pré-história referido por Idade da Pedra.

Artefacto de sílex. Imagem obtida em «sylvie-tribut-astrolog.com»

Em termos populares é a pederneira, isto é, a pedra capaz de produzir centelhas ou faíscas quando percutida ente si ou pelo ferro. Em virtude dessa capacidade recebeu, também, o nome de pedra-de-fogo, tendo sido utilizado, sobretudo, nos séculos XVII e XVIII, em peças de artilharia, mosquetes, bacamartes e pistolas.

O sílex foi descrito pelos autores franceses como uma silicificação no seio de um calcário de granularidade muito fina e pouco coeso do Cretácico superior (que se pode ver nas brancas e escarpadas arribas francesa e inglesa que ladeiam o Canal da Mancha) a que se dá o nome de cré e que é interpretado como um produto da diagénese e, portanto, posterior à sedimentação do referido calcário.

Arribas de cré com leitos de sílex na Normandia, França. Imagem obtida em «lerelaisduboneur.com.»
 

Pormenor do cré, na base da arriba, com interstratificação de nódulos de sílex negro. Imagem obtida em «ruedeslumieres.morkitu.org»

No decurso deste processo, a sílica gera nódulos ou concreções (de alguns centímetros a alguns decímetros) distribuídos segundo as juntas de estratificação, desenhando cordões e, ainda, ao longo de fracturas que permitem a progressão da sílica.

Com sílica quase a 100%, o sílex é uma rocha muito compacta, homogénea, dura mas frágil, com fractura conchoidal característica, particularidade habilmente aproveitada pelos nossos antepassados mais remotos. A expressão Idade da Pedra Lascada, corrente em muitos textos, alude a este tipo de fractura igualmente própria do quartzo macrocristalino (nomeadamente, o hialino e o defumado), do jaspe, do vidro vulcânico (obsidiana) e do quartzito.

O sílex do cré é essencialmente constituído por quartzo microcristalino (com 8 a 20 μm), habitualmente referido por calcedonite, alguma opala, rara argila, vestígios de calcite, de óxidos de ferro, responsáveis pelas tonalidades amarelada, acastanhada ou avermelhada que podem exibir, e de substâncias carbonosas que, quando em quantidade suficiente, lhe conferem a cor negra muito comum. Na periferia das concreções, ou nódulos, forma-se uma delgada crosta (patine), essencialmente de opala, finamente porosa, de aspecto pulverulento e, por vezes, penetrada por calcite.

Todas as características do sílex indicam origem a partir de uma lama ou vasa predominantemente carbonatada (carbonato de cálcio), biogénica, contendo, à mistura, uma certa percentagem de restos esqueléticos siliciosos (de opala), em especial, espículas de espongiários, a que se associam restos de radiolários em menor quantidade. Numa fase precoce tem lugar a dissolução dos referidos restos siliciosos, seguida de migração e precipitação da correspondente sílica sob a forma de cristobalite, no seio do sedimento ainda não consolidado, gerando um material do tipo porcelanito. Numa fase tardia, a cristobalite recristaliza sob a forma de calcedonite, com segregação do carbonato de cálcio.

Inicialmente usado para designar os nódulos siliciosos ocorrentes em rochas mais antigas do que o cré do Cretácico superior, o termo inglês chert, o mais divulgado entre os geólogos dos quatro cantos do mundo, abarca, praticamente, todos os silicitos litificados. Entre nós, este vocábulo tem sido usado com a grafia cherte e está na base de expressões, correntes entre os petrógrafos, como chertificado e chertificação, em substituição de silicificado e silicificação.

Os autores mais recentes têm vindo a distinguir neste tipo litológico dois conjuntos, com base no modo de ocorrência. Assim, tem-se dado relevo, por um lado, aos que ocorrem sob a forma de estratos, conhecidos pela expressão bedded cherts e, por outro, aos limitados a acidentes descontínuos, sob a forma de concreções ou nódulos, no seio de outras rochas, divulgados como nodular cherts. Os primeiros incluem, entre os mais comuns, o jaspe, o lidito e o ftanito, sendo os segundos representados pelo sílex do cré, ou flint, o seu sinónimo em inglês.

Não há uniformidade entre os diversos autores no uso da nomenclatura dos silicitos, uma situação que, aliás, se repete, com maior ou menor evidência, em toda a petrografia sedimentar. Os autores anglo-saxónicos preferem o termo chert, que abrange o material a que franceses e nós (por influência destes, nos primórdios da nossa investigação geológica) chamamos sílex. A tendência actual vai no sentido da internacionalização e generalização do chert, reservando-se sílex e flint como nomes da matéria-prima mais usada nos artefactos pré-históricos.

Os calcários do Cretácico superior (Cenomaniano) da região de Lisboa e arredores exibem, com relativa frequência, nódulos e outras acumulações de sílex que foram exploradas na Pré-história. Dois destes afloramentos, classificados como geomonumentos pela Câmara Municipal de Lisboa, podem ser vistos nesta cidade, na Avenida Infante Santo. O Museu Nacional de Arqueologia e o Museu Geológico, do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG) têm nos seus acervos abundantes testemunhos desta actividade dos nossos longínquos avós.

 

Notas

Calcedonite - variedade microcristalina de quartzo. Normalmente branca leitosa. A sua textura porosa, torna-a susceptível de alojar impurezas responsáveis pelas cores que pode apresentar. O termo radica em Khalkedon, antiga localidade junto a Istambul, por onde este material transitava na Antiguidade. Entre as calcedonites distinguem-se, com valor gemológico, ágatas, cornalina, sarda, plasma, prásio, crisoprásio e ónix. O mesmo que calcedónia. 

Coltan - nome abreviado do mineral columbite-tantalite o columbo-tantalite, uma solução sólida de columbite (Fe, Mn)Nb2O6 e tantalite (Fe, Mn)Ta2O6, de onde se extraem os elementos nióbio ou colúmbio e tântalo, dois óxidos que só muito raramente ocorrem puros. Usado no fabrico de computadores, telemóveis e outros equipamentos electrónicos.

Cré – calcário marinho (90% ou mais de carbonato de cálcio), de grão muito fino, poroso e algo friável, essencialmente formado por cocólitos (estruturas calcárias nanométricas de algas unicelulares – cocolitoforídeos) e, por vezes, foraminíferos planctónicos.

Cristobalite – mineral polimorfo de sílica que, no domínio sedimentar, forma as pequeníssimas esférulas que edificam a opala. O nome evoca San Cristobal, no México.

Ftanito – pelito microcristalino, cinzento a negro (grafitoso), geralmente resultante de metamorfismo de baixo grau sobre vasas radiolaríticas antigas, depositadas em ambientes marinhos profundos. O mesmo que xisto silicioso.

Jaspe – silicito calcedonítico ou microquartzítico impregnado de óxidos de ferro, de coloração variável entre o vermelho, o castanho e o amarelado, raramente verde. Corresponde, muitas vezes, à silicificação de vasas radiolaríticas. O nome radica no étimo hebreu antigo, iaschpeh, que terá passado no latim a iaspis.

Lidito – silicito negro, usado como “pedra-de-toque” pelos ourives, descrito na região de Lydia, na Ásia Menor. Corresponde a um radiolarito chertificado com impregnação de matérias carbonosas.

Opala – não sendo um mineral no sentido mineralógico do termo, é um material amorfo essencialmente constituído por esférulas de cristobalite e água. Pode também constituir o material de substituição epigénica de outros minerais (calcite, gesso ou glauberite) ou de fósseis. O termo deriva, provavelmente do sânscrito, upala, pedra preciosa. Entre as variedades desta pedra distingue-se a opala comum, não preciosa, e uma vasta gama de opalas iridescentes com valor gemológico.

Porcelanito – rocha sedimentar siliciosa de aspecto semelhante a porcelana, constituído por cristobalite, com 4 a 9% de água. Representa uma fase intermédia entre a opala e o quartzo.

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
Blogue: http://sopasdepedra.blogspot.com/