REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Sapateiro em Paris

O irmão mais novo da minha mãe, Manuel Almaça, de seu nome, mestre sapateiro, tinha oficina com oficiais e aprendizes a trabalharem em consertos e obra nova. Foi ali que, em criança, brincando, brincando, aprendi tudo o que se fazia nesta arte a dei toda a serventia possível num rapaz da minha idade, desde apanhar os pregos e os restos de cabedal aproveitáveis caídos no chão, varrer depois de o borrifar com água, bater a sola num grande calhau rolado e, aos serões de sábado, engraxar e entregar, correndo, os arranjos nas casas dos fregueses. Tudo isto por um tostão e um beijo na testa dado por uma boca molhada de saliva, que eu limpava com a manga da camisa e que sempre me cheirou à água da sola.

Uma vintena de anos depois, corria o ano de 1962, o então Instituto de Alta Cultura (depois Instituto de Investigação Científica, extinto em 1992) atribuía-me uma bolsa de estudos, no montante de cinco mil escudos mensais, para estagiar no Instituto de Paleontologia do Museu de História Natural, em Paris. A tarefa que me fora destinada pelo catedrático, director do Departamento de Geologia, onde eu acabara de entrar como 2º assistente além do quadro, consistia em estudar uma abundante e diversificada fauna fóssil de Briozoários (invertebrados coloniais, na maioria marinhos e recifais) dos terrenos do Miocénico e Pliocénico (23,5 a 1,75 milhões de anos) de Portugal.

Este tema não era, nem de perto nem de longe, o que verdadeiramente me interessava como tema de trabalho. O meu grande interesse apontava, fundamentalmente, para a dinâmica externa da Terra, incluindo a geomorfologia e a sedimentologia. Mas no meu tempo era assim. O catedrático mandava e a gente ou obedecia ou dava lugar a outro

Mas Paris era Paris e era o sonho de muitos dos meus contemporâneos. Além do Museu, teria à minha disposição a Sorbonne, o Colégio de França, a Escola de Minas, Instituto de Geografia e todas as especializações possíveis. E ali estávamos nós, a Isabel e eu, num pequeno apartamento do Hotel Blanadet, na Rue Monge, em pleno Quartier Latin, no 6º andar, sem elevador, nem casa de banho privativa. A toilette diária era feita no quarto de dormir. O lavatório de parede, com água quente e fria, era também lava-loiça e lava-roupa.

Ao fim de duas ou três semanas de estadia na capital dos franceses, descoseu-se-me uma das botas, entre a sola e a vira. Era coisa de pequena monta. Meia dúzia de pontos e o problema ficaria resolvido.

Ao lado do nosso Hotel, trabalhava, de manhã cedo ao cair da noite, um cordonnier (sapateiro) italiano de meia-idade, imigrante, fugido à miséria a que a profissão o amarrara na terra-mãe. O cenário da sua pequena oficina era o mesmo que eu conhecera bem de perto. A um canto, um molho de sapatos e botas à espera de conserto, com indicação do arranjo pretendido escrita a lápis sobre as solas. No outro, uma prateleira com as obras acabadas, aguardavam quem as viesse levantar, e no outro, ainda, o balde de demolhar a sola, cheio de uma aguadilha negra, de odor característico. A meio de uma das paredes, a cadeirinha baixa onde se sentava o único ocupante do espaço, à frente do qual uma banqueta, de tamanho reduzido, punha à sua disposição a caixa compartimentada, contendo os vários tipos de pregos usados no ofício e o essencial das ferramentas, com destaque para o martelo de peta larga, a turquês de pregar, a grosa, a faca afiada como um bisturi, as sovelas, os ferros de brunir e uma lamparina de azeite para os aquecer. A um canto, a máquina de costura Singer própria do ofício e, no chão, ao alcance da mão, a pedra de bater a sola, igualzinha à do meu tio, a forma de ferro de três posições. Ainda no chão, espalhados por todo o lado, acumulavam-se os pedaços de sola e cabedais rejeitados, restos de solas velhas, tacões usados e outros desperdícios e, ainda, pregos velhos e torcidos, inutilizados.

No nosso hotel residia um jovem siciliano, alto e magro, de rosto tisnado, ossudo e de cabelos negros como as asas de um corvo. No tempo, a que se refere esta crónica, este jovem, de seu nome Benito Merlino, era mais um dos muitos compositores-intérpretes da canção, candidatos ao sucesso na “cidade das luzes”. De viola na mão, falando um francês italianizado, este nosso companheiro de hotel corria os caveaux e bares da rive gauche, procurando aquela porta que se abre ao futuro. Benito tinha composições alegres, ao estilo do folclore da Catânia, com poemas agradáveis de ouvir numa cativante prosódia siciliana. E essa porta abriu-se-lhe. Benito fez carreira em Paris, nos anos 60 e 70, e vendeu muitos discos

Soube por este nosso amigo que o cordonnier era, igualmente, um siciliano, de nome Alberto, ali radicado, havia meia dúzia de anos. Este só me conhecia de ver-me passar à porta e do bonjour que ocasionalmente trocávamos. Ao dirigir-me a ele, de bota na mão, recebeu-me com a atenção que dispensava aos seus clientes. Pegou nela, mirou-a de um lado e de outro e foi peremptório.

- São dez francos.

Dez francos, ao câmbio de então, eram sessenta escudos, eram dez almoços no restaurante universitário. Sessenta escudos por meia dúzia de pontos, entre a sola e a vira, era um exagero. Um concerto daqueles era trabalho que não chegava aos dez escudos, na oficina do meu tio. E se o freguês fosse conhecido, era arranjo que ele fazia de graça.

No meu francês, que ainda dominava mal, lá lhe fui dizendo que achava o preço muito elevado para as minhas posses. Que, em Portugal, aquilo era obra para muito menos, ao que ele, num tom reivindicativo, quase agressivo, contrapôs:

- Na terra de onde eu vim era a mesma exploração. Lá, sapateiro é profissão de pobre, não permite ganhar para dar educação aos filhos, o que os condena, também a eles, à pobreza. Leia, aí, o que diz o jornal. - Apontou-me o “L’Humanité”, a seu lado, no chão, e desabafou:

- Na Sicília, os que têm dinheiro comem bifes e nós comemos massa sem conduto, não compramos livros nem fazemos férias. Aqui sou gente igual aos outros, agora como carne, tenho tempo gosto para ler. e – acrescentou no francês que já falava – moi, aussi, je fais des vacances.

E ficámos conversados.

O tempo foi passando e houve um dia em que o Benito me apresentou ao seu amigo e conterrâneo, Alberto. Como amigo do meu amigo, meu amigo é, passámos a conviver mais a miúdo, a ponto de, muitas vezes, ao fim da tarde, no regresso do Museu, ficar a falar com ele dos mais variados assuntos: do meu trabalho e do dele, das nossas origens e do muito que havia em comum nos nossos dois cantinhos da Europa do Sul. Num desses dias, a meio da conversa, ele, que não esquecera o nosso primeiro encontro, perguntou-me:

- E a bota, ainda está à espera de concerto?

 À minha resposta afirmativa, mandou-me ir buscá-la, prontificando-se a cosê-la, agora como amigo, isto é, de graça.

- Ao levar-lha, sugeri. – Dê-me um pedaço de fio encerado, uma seda e empreste-me a sovela.

Duas décadas depois da minha experiência na oficina do meu tio Manuel, eu estava, em Paris, sentado na cadeira do mestre cordonnier, de avental de atanado, luvas de sapateiro e a bota segura entre os joelhos, a recordar os gestos que aprendera.

 
 
 
 

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
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