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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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A.M. GALOPIM DE CARVALHO |
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Gastronomia alentejana |
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Nas múltiplas vertentes da cultura popular do alentejano são notórias o
folclore, a poética, o artesanato, mas também e muito, a gastronomia. O
pão que aqui se come, por tradição e em quantidade, e que hoje se
fabrica em grande parte com trigo importado, sabe Deus se já
geneticamente manipulado, faz parte dessa cultura. Os queijos de ovelha
ainda se fazem à mão, por toda a província, no rigor da sabedoria
caseira, e deles se celebrizaram os de Évora, de Serpa, de Nisa, de
Borba, entre outros. Este rigor que, natural e espontaneamente, se tem
sabido impor e opor à sua industrialização é a razão de ser da sua
notoriedade. O queijo artesanal, não só o alentejano como o do país
inteiro, apoiado e encorajado por uma procura exigente e cada vez mais
numerosa, torna Portugal um caso único no mundo. Quem não se rende aos
queijos da Serra, de Castelo Branco, de Rabaçal, de Serpa, de Azeitão...
Os enchidos e os presuntos caseiros são outra vitória da nossa
resistência à industrialização que tudo homogeneiza e adultera em nome
do mercado. De Portalegre a Ourique, de Grândola a Barrancos, grande é a
variedade que o alentejano soube temperar e pôr ao fumeiro. Como os
queijos, não são nem melhores nem piores do que os que se fazem por todo
o país. São é diferentes, como é diferente o porco preto, alimentado a
bolota de azinho.
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COZINHA DOS GANHÕES - Boneco de Estremoz das Irmãs Flores.
Fotografia de José Cartaxo
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Depois de anos de algum afastamento induzido por campanhas poderosas e
adversas, visando outras gorduras e outros lucros, o azeite está de
volta, triunfante.
Os verões quentes e secos e as terras de xisto e de areia fazem do
Alentejo uma referência nacional em matéria de vinhos de “qualidade de
origem controlada”. Portalegre, Borba, Redondo, Reguengos, Vidigueira,
Évora (Cartuxa), Granja, Amareleja, Moura, Terras do Sado, são hoje
nomes grandes nos cardápios dos restaurantes de todo o país. Não ficam
por aqui os flashs da nossa paisagem gastronómica, da qual, embora menos
falados, fazem ainda parte, o mel e o pinhão, bem como os peixes e
outros produtos do mar ou dos rios, que os transportes rápidos põem
diariamente à nossa porta.
Não só na literatura culinária e gastronómica, como também nas da
história, da geografia, da sociologia e da ficção, são muitas as
reflexões sobre a cozinha alentejana. De todas elas, em grande parte
coincidentes no essencial, transparece um elogio a uma comunidade muito
particular, culturalmente bem caracterizada, que do «pouco fez muito
e bem» (Monarca Pinheiro, 1999). Algumas dessas reflexões merecem
ser divulgadas com o destaque que lhes é devido, pois são as que melhor
definem as relações entre este povo e os seus comeres.
A arte de cozinhar, como também se diz, e bem, constitui uma reserva
cultural imensa, transmitida de gerações em gerações, numa história tão
longa quanto a do Homo sapiens.
Nesta caminhada de milénios, a descoberta e a procura de sabores foram
transformando o simples acto de comer e beber para sobreviver, num
outro, marcado pelo prazer, primeiro o dos sentidos e depois o da
convivência. Aliás, como bem lembra Manuela Barros Ferreira (in
Nádia Torres, 1997), comer, do
latim comedere, significa tomar os alimentos em companhia, posto que
radica no verbo edere que, por
si só, significa esse acto de ingestão, antecedido do elemento
cum, que alude à ideia de companhia e que é o mesmo prefixo com que
se fez a palavra convivência.
Com características muito próprias, a cozinha alentejana é, como
quaisquer outras cozinhas regionais portuguesas, rica, não só na
variedade dos produtos naturais utilizados, como nas maneiras de os
confeccionar. Como elas, é uma cozinha que, diríamos, do produtor ao
consumidor, isto é, com produtos idos directamente da terra ou do mar
aos tachos e às panelas, sem as incorporações industriais, que marcam os
dias de hoje e de que são exemplo os muitíssimos produtos da indústria
alimentar: os enlatados, os congelados, os semi-feitos, os
take-away, à nossa disposição
no mercado. António de Oliveira Bello que, além de industrial, foi
conceituado mineralogista amador, gastrónomo e fundador, em 1933, da
Sociedade Portuguesa de Gastronomia, dizia: «a
cozinha portuguesa é saborosa, higiénica, substancial e muito
característica. As matérias-primas empregadas, de produção
nacional, são, culinariamente,
perfeitas. A combinação é variada, mas sem
exageros». No caso do Alentejo
a sua riqueza resulta, talvez, de uma imaginação levada ao extremo, no
espírito do velho ditado «a
necessidade é
mestra de engenhos»,
como bem lembraram Alfredo Saramago e Manuel Fialho (1998).
Uma pesquisa pela vasta e variada bibliografia alusiva à cozinha
alentejana põe em evidência as condicionantes físicas e humanas dos seus
sabores, uns doces e outros bem amargos, que têm sido, ao longo dos
séculos, uma característica forte dos seus comeres.
«Comeres frugais são estes que ora
se apresentam, feitos de coisas simples, pequenas, do dia-a-dia e do que
as pessoas tinham à mão»...«fazer das tripas coração e inventar sopas e condutos, enganando a
vontade de comer» ou,
ainda, «compensar a magreza do
caldo com ouropéis mágicos de ervas, cheiros e misturas que
dão sabores disfarceiros das pobrezas», escreveu Helder Pacheco (in
Falcato Alves, 1994). Na verdade, ervas e cheiros foi coisa que a
natureza nunca nos negou.
Em «Cozinha Alentejana», numa edição, sem autoria expressa, da Câmara
Municipal de Évora, em 1988, lê-se:
«A mágica da cozinha alentejana encontra expressão de, como, com
produtos simples e pobres, elaborar pratos onde o gosto e o prazer de
comer constituem um efectivo acto cultural».
Os bons sabores da cozinha alentejana resultam, com
efeito, de uma procura de prazer numa terra pobre onde, como disse
Orlando Ribeiro (1987), «comer foi, acima de tudo, encher
a barriga e iludir a sensação de fome». Com efeito, como afirmou
Domingos Lobo (in Marília Abel
e Carlos Consiglieri, 2000), «A
fome espevita sempre a imaginação dos povos».
«Aproveitando ao máximo a riqueza dos seus
recursos e sabendo compensar com extraordinária habilidade as suas
limitações, o alentejano criou uma cozinha única, sólida, nutritiva e
surpreendentemente saborosa, que não é mais, afinal, do que o espelho
fiel da sua própria maneira de ser»,
são palavras do meu conterrâneo e amigo, Manuel Fialho (1992). Noutro
descrito, Rui Camboias (1999) opina que a cozinha alentejana «é
caracterizada por um conjunto muito
variado de condimentos, também
chamados “temperos” ou “cheiros”, muitos dos quais são ervas aromáticas
existentes nos campos da região ou outras que, não “morando” nestas
paragens, foram perfeitamente assimiladas pelas gentes desta zona».
Uma tal cozinha distingue-se por conservar e valorizar os aromas e os
sabores dos produtos utilizados, sem recurso a molhos especiais e a
sofisticações culinárias. Entre as ervas e os cheiros ganharam relevo
beldroegas, acelgas, labaças, cardos, espargos, saramagos, tomilho,
orégão, alecrim, murta, coentro, hortelã, hortelã da ribeira e poejo, o
mais alentejano dos cheiros, quanto a mim, com direito à posição de
ex-libris.
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Paio
alentejano.Imagem retirada de
www,montanheira.com.
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Já Estrabão, o grande geógrafo grego dos finais
do século I a. C., reconhecera esta grande região a sul do Tejo como o
«paraíso das ervas frescas».
Destas e de outras
análises fica a ideia de que, num quadro geográfico e social marcado por
carências e necessidades suficientemente apontadas, a cozinha alentejana
soube tirar proveito dos produtos ao seu alcance, onde, para além dos
que produzia, trabalhando a terra e cuidando do gado, têm particular
importância as ervas e os cheiros. Deve, no entanto, acentuar-se que
este quadro existe noutros locais envolvendo outras gentes. No seu
interessante livro «Comer como Diós manda», Jacinto Garcia (1999)
escreve: “A cozinha mais admirável é
aquela capaz de conseguir um prato suculento e harmonioso utilizando
somente um conjunto díspar de humildes alimentos”.
Do receituário que sempre se comeu nos montes
fazem parte, em primeiro lugar, o pão, uma constante, na quantidade
necessária para encher a barriga, logo a seguir o azeite e as gorduras
do porco, para cozinhar e dar sustento, depois o alho, a cebola, o
vinagre, os cheiros, usados como «disfarces para a falta de condutos» (Monarca Pinheiro, 1999), e algo
mais que podiam colher na horta. Tudo o mais que se lhe acrescentasse,
em particular as carnes e o peixe, fazia a diferença entre os que tinham
posses e os que as não tinham. Como fez notar Alfredo Saramago (1997),
no Alentejo não há grande contraste entre uma cozinha de rico e uma
cozinha de pobre. As práticas alimentares são as mesmas. As diferenças
mais marcantes, segundo este autor, estavam no valor nutritivo dos
ingredientes usados nas confecções e na frequência com que certos pratos
iam às respectivas mesas. Diz o ilustre gastrónomo: «A
açorda dos ricos tinha mais
azeite e as migas mais carne. Uns
comiam mais chouriço e paio,
outros mais toucinho e farinheira». As receitas, em si, algumas com
mais de mil anos, foram sempre as mesmas e, segundo ele, «nunca constituíram sinais de
distinção». Não obstante o ataque cerrado feito à cozinha alentejana
por nutricionistas, dietistas e alguma indústria agro-alimentar, esta
sobreviveu e afirmou-se sem perda de identidade, sendo hoje um
importante recurso em termos de oferta turística. Com efeito e em
palavras do mesmo autor, «azeite de mau passou a óptimo,
as gorduras animais, bem vistas as coisas, eram necessárias, o pão
indispensável e outros produtos que conheceram
execração vêem-se hoje reabilitados». Eis, pois, de novo, o azeite
vitorioso na açorda, do mesmo modo que o toucinho e o chouriço fritos
nas migas tão apetecidas e procuradas.
A identidade e a
singularidade da cozinha alentejana, no contexto da cozinha portuguesa,
assentam em duas características: a intemporalidade e a diversidade
(Alfredo Saramago e Manuel Fialho, 1998). A intemporalidade está
demonstrada nos documentos estudados pelos historiadores e a diversidade
é um facto que podemos constatar e que é tanto mais notável quanto
parcos sempre foram os seus recursos em terras de sequeiro. A este
propósito escreveu
Francisco Guedes, em 1997, «Terra
de planícies extensas de trigo
e sol, de vinho e paz, de ervas aromáticas e solidão, o Alentejo
é também uma região ímpar no
aproveitamento culinariamente imaginoso dos
seus recursos».
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Poejo. Imagem retirada de
biologiaipb.blogspot.com
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Joaquim
Ferreira Canário,
presidente da Câmara de Castelo de Vide, no prefácio de «Comida de
Cheiros» uma edição desta autarquia, em 1999, lembra e bem que a
gastronomia alentejana «tem sido,
ao contrário de outros usos e costumes, um elemento excepcionalmente
resistente ao tempo e às influências estranhas e constituiu um valor
etnográfico muito especial».
Uma síntese destas diversas mas coincidentes reflexões está no dizer de
Mariana Cascais (in Noémia T. Vaz Freire, 1997): «a gastronomia alentejana é um ingrediente essencial da imagem do
Alentejo».
É verdade que o alentejano usa e abusa do pão,
quer na mão, em grandes nacos a condutar com umas falhinhas de
queijo ou de linguiça, quer nas migas, nas açordas e noutras sopas de
pão. Sopas de pão molhado,
como dizia a menina nascida e criada em Lisboa, filha de pai alentejano
e de mãe alfacinha de Arroios, a passar férias com os avós no monte.
-
Não gosto de sopas de pão molhado. O meu pai é que gosta, mas a minha
mãe nunca faz. Diz que engordam e que fazem borbulhas na cara.
- Pois olha, isto é que alimenta
– contrapunha o avô, bem torneado de carnes, sorridente e vermelhusco de
rosto, às voltas com uma lauta açorda de poejos com sardinhas, assadas
no fogareiro de carvão, a fumegarem na rua, à porta da cozinha. – Essas
águas-palhas que te dão lá em Lisboa não enchem barriga.
Experimenta e verás como vais daqui mais bonita. Anda, experimenta lá...
Este diálogo entre dois tempos e dois lugares
podia alargar-se às migas, aos ensopados e a muitos outros sabores,
tantos quantos os que marcaram a diferença entre mim e a cidade que há
muitas décadas me acolheu. O alfacinha pega nas sopas de favas de uma
qualquer receita alentejana, tira-lhe o pão, corta-lhe no alho e nos
coentros e faz dela uma delicada e excelente sopa, bem batida num
aveludado creme que, quando muito e eventualmente, servirá com umas
migalhitas de pão torrado. O alentejano, ao contrário, agarra numa
ligeira sopa de alface saloia, carrega-lhe no alho e nos coentros,
acrescenta-lhe queijo, escalfa-lhe uns ovos, miga-lhe pão em quantidade
e transforma-a numas fartas e perfumadas sopas de alface. É esta mesma
cozinha que começa a ser servida pelos restaurantes não só do Alentejo
como por alguns fora dele, em resposta a uma clientela conhecedora, em
crescimento, a testemunhar o sucesso reconhecido deste renascer a que
felizmente se assiste.
A
cozinha alentejana é a que nos foi proporcionada pelos enquadramentos
físico e humano que tivemos, evolucionando numa dialéctica entre muitas
culturas. «Cozinha que, apesar da intemporalidade, tem sabido ser
dinâmica, ajustando-se às circunstâncias, às maneiras e aos modos»
(Alfredo Saramago, 2001). Numa certa
fase, por exemplo, tal dialéctica estabeleceu-se entre os hábitos
alimentares de fenícios e de celtas. Os primeiros, como povo
mediterrâneo, vivendo mais dos cereais, do azeite, do vinho, dos legumes
e das frutas, recursos compatíveis com um certo sedentarismo, e os
segundos, nómadas e guerreiros, tidos por grandes consumidores de carne
que caçavam. Mais tarde, aos hábitos alimentares transformados e
introduzidos pelas ocupações romana e bárbaras (sobretudo a visigótica)
sobrepuseram-se os de árabes e mouros. No vocabulário gastronómico, aos
muitos termos de origem latina, como
pão,
vinho, peixe, sal, carne, favas,
ervilhas, couve, nabo, sertã, panela, fogão foram acrescentados
muitos mais, de raiz árabe, entre os quais
açorda, alcaparras, albricoques,
almôndegas, alguidar, almotolia, alface, alfitetes, escabeche, azeitonas
e azeite, este em
substituição do óleo de oliva dos romanos, expressão que persiste nas
línguas de povos onde se não fez sentir a influência islâmica, como a
francesa (houile d’ olive) ou
a inglesa (olive oil).
Poder-se-á perguntar: o que é que têm a ver
apontamentos de cariz histórico, num texto como este, que não pretende
ter preocupações de erudição? A resposta é imediata. Todas as
oportunidades são boas para aprender, e aprendizagem significa
valorização pessoal. Se um leitor interessado em culinária e, caso não
saiba, puder ficar a saber que, ao contrário do que a escola nos
ensinou, a ocupação muçulmana constituiu um ponto alto da nossa
História, não só na vida quotidiana, como nas letras, nas artes e nas
ciências, já ganhou algo. Mouros,
sarracenos,
infiéis, têm sido nomes com carga pejorativa, pois assim no-lo eram
ensinados na escola e, quase sempre, em relação com grandes derrotas
infringidas por nós, cristãos, os “bons”. É evidente que nesse ensino, o
que se praticava na minha geração, estava a influência de uma Igreja
Católica tão retrógrada quanto o regime, a mesma Igreja que, em nome de
Deus, criou o Tribunal do Santo Ofício, queimou vivo o pensador Giordono
Bruno e perseguiu Lutero, Galileu, Copérnico, Descartes, Erasmo, Pascal,
Buffon, Lamarck, Darwin, e a que não escaparam portugueses como Damião
de Góis, Garcia de Orta, ou Francisco Xavier de
Oliveira, também conhecido por Cavaleiro de Oliveira.
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Seara de trigo. Imagem retirada de
luardameianoite.pt
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A.M. Galopim de Carvalho. Professor
jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do
Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
Blogue:
http://sopasdepedra.blogspot.com/ |
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