REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Em memória do «capitão» de Abril António Marques Júnior

(Falecido a  31 de Dezembro de 2012)

Lembrando “aquela madrugada” e os Homens que a protagonizaram…

GRAVAR ZECA POR CIMA DE RAVEL

Nesse tempo, há quase quatro décadas, eu ainda conservava o hábito, que me ficara da juventude, de estudar até tarde, pela noite fora, com música de fundo num rádio-gravador portátil. Fora assim também em Paris, na preparação do doctorat e, mais tarde, em Lisboa, com a redacção da tese que me casou com a Universidade. Era o contrário do que faço agora, que acerto o horário pelo das galinhas, sendo na solidão e no sossego das madrugadas que gosto de escrever.

Se fosse hoje, tinha sido dos primeiros a ouvir o comunicado do Movimento das Forças Armadas, que viria a chamar-se Movimento dos Capitães. Mas ouvi “E depois do Adeus”, pelo Paulo de Carvalho, por mero acaso, numa daquelas muitas rodagens do botão do condensador, em busca do tal fundo musical. Porque sempre apreciei a sua belíssima voz, detive-me a ouvi-lo, na íntegra, sem saber que estava atento à senha que “abriu Abril”. Mas não ouvi a “Grândola”, pois já sintonizara uma qualquer música a contento.

Acabara de adormecer quando a Isabel me acordou, excitada.

- Acorda! Parece que há um golpe militar. Telefonou-me agora uma aluna. Diz que há tropas a entrarem na cidade, mas que não sabe de que lado estão.

Instantes depois, preparava-me para pegar no telefone em busca de respostas, quando esta voltou a tocar. Era um amigo.

- Liga a rádio! - exclamou, entusiasmado. – Desta vez é a valer! São dos nossos!

- Tens a certeza? Não será uma golpaça dos ultras?

- Não! Garanto-te. São dos nossos! - E ele lá tinha as suas razões.

Daí a momentos, ouvia-se a voz inconfundível do Luís Filipe Costa – “Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas” - logo seguida do inesquecível “On the waves”, que nos ficou como uma das marcas musicais mais profundamente gravadas dessa madrugada e dos dias de regozijo colectivo que se lhe seguiram, em festejo do fim do sufoco que foi a vida dos portugueses da minha geração.

Sucediam-se os comunicados, intercalados por marchas militares e por aquelas cantigas, até então proibidas, do Zeca, do Mário Branco, do Luís Cília. Atento, eu ouvia e gravava, saltando de estação em estação. Como não tinha cassetes disponíveis, disse adeus ao Daphnis e Cloé, de Ravel, à Missa nº 1, de Bruchkner, e às Quatro Estações, de Vivaldi.

Ainda conservo estas gravações e na primeira, cuja etiqueta não apaguei, em vez dos acordes melodiosos do poema sinfónico do compositor francês, ouvem-se as passadas firmes e cadenciadas do grupo coral alentejano a iniciar a libertadora “Grândola, Vila Morena”.

Às nove horas saí de casa em busca de jornais e de convívio. As certezas da vitória avolumavam-se e a rua era uma romaria a crescer. Daí a pouco os cravos vermelhos floriam nas espingardas dos soldados, radiantes, fraternos e orgulhosos, e começava a ouvir-se «o povo, unido, jamais será vencido!». Recordo os risos, as lágrimas e os abraços dessa manhã radiosa.

Em casa, frente à televisão, com o rádio-gravador ao alcance da mão e cassetes novas que fora comprar gravei tudo o que me foi possível, relatos, comunicados, declarações, músicas libertas da proibição, auxiliado pelo Nuno, que ainda não tinha sete anos mas já manejava, à perfeição, estes equipamentos. O Rui, a caminho dos cinco, fazia bases e naves espaciais no meio de um mar de peças de lego espalhadas pelo chão.

 
 
 

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
Blogue: http://sopasdepedra.blogspot.com/