Lembrando “aquela madrugada” e os Homens que a
protagonizaram…
GRAVAR ZECA POR CIMA
DE RAVEL
Nesse tempo, há quase quatro décadas, eu ainda conservava o hábito, que
me ficara da juventude, de estudar até tarde, pela noite fora, com
música de fundo num rádio-gravador portátil. Fora assim também em Paris,
na preparação do doctorat e, mais tarde, em Lisboa, com a redacção da
tese que me casou com a Universidade. Era o contrário do que faço agora,
que acerto o horário pelo das galinhas, sendo na solidão e no sossego
das madrugadas que gosto de escrever.
Se fosse hoje, tinha sido dos primeiros a ouvir o comunicado do
Movimento das Forças Armadas, que viria a chamar-se Movimento dos
Capitães. Mas ouvi “E depois do Adeus”, pelo
Paulo de Carvalho, por mero acaso, numa daquelas muitas
rodagens do botão do condensador, em busca do tal fundo musical. Porque
sempre apreciei a sua belíssima voz, detive-me a ouvi-lo, na íntegra,
sem saber que estava atento à senha que “abriu Abril”. Mas não ouvi a
“Grândola”, pois já sintonizara uma qualquer música a contento.
Acabara de adormecer quando a Isabel me acordou,
excitada.
- Acorda! Parece que há um golpe militar.
Telefonou-me agora uma aluna. Diz que há tropas a entrarem na cidade,
mas que não sabe de que lado estão.
Instantes depois, preparava-me para pegar no telefone
em busca de respostas, quando esta voltou a tocar. Era um amigo.
- Liga a rádio! - exclamou, entusiasmado. – Desta vez
é a valer! São dos nossos!
- Tens a certeza? Não será uma golpaça dos ultras?
- Não! Garanto-te. São dos nossos! - E ele lá tinha
as suas razões.
Daí a momentos, ouvia-se a voz inconfundível do Luís Filipe Costa –
“Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas” - logo seguida
do inesquecível “On the waves”, que nos ficou como uma das marcas
musicais mais profundamente gravadas dessa madrugada e dos dias de
regozijo colectivo que se lhe seguiram, em festejo do fim do sufoco que
foi a vida dos portugueses da minha geração.
Sucediam-se os comunicados, intercalados por marchas militares e por
aquelas cantigas, até então proibidas, do Zeca, do Mário Branco, do Luís
Cília. Atento, eu ouvia e gravava, saltando de estação em estação. Como não tinha cassetes disponíveis,
disse adeus ao Daphnis e Cloé, de Ravel, à Missa nº 1, de Bruchkner, e
às Quatro Estações, de Vivaldi.
Ainda conservo estas gravações e na primeira, cuja
etiqueta não apaguei, em vez dos acordes melodiosos do poema sinfónico
do compositor francês, ouvem-se as passadas firmes e cadenciadas do
grupo coral alentejano a iniciar a libertadora “Grândola, Vila Morena”.
Às nove horas saí de casa em busca de jornais e de
convívio. As certezas da vitória avolumavam-se e a rua era uma romaria a
crescer. Daí a pouco os cravos vermelhos floriam nas espingardas dos
soldados, radiantes, fraternos e orgulhosos, e começava a ouvir-se «o
povo, unido, jamais será vencido!». Recordo os risos, as lágrimas e os
abraços dessa manhã radiosa.
Em casa, frente à televisão, com o rádio-gravador ao
alcance da mão e cassetes novas que fora comprar gravei tudo o que me
foi possível, relatos, comunicados, declarações, músicas libertas da
proibição, auxiliado pelo Nuno, que ainda não tinha sete anos mas já
manejava, à perfeição, estes equipamentos. O Rui, a caminho dos cinco,
fazia bases e naves espaciais no meio de um mar de peças de lego
espalhadas pelo chão.
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