Se, como se ouve dizer, a terceira idade começa aos 60 anos, tenho
de admitir que, embora sem me ter dado conta disso, entrei na classe
etária dos chamados idosos, corria o ano de 1991. Há, pois, pouco mais
de vinte anos que sou um idoso na condição inexorável de envelhecer. Mas
ser idoso aos 60 anos, profissionalmente realizado, com saúde, e ter
sido alvo das atenções e da respeitabilidade que, infelizmente, nem toda
a gente tem, mas que eu, muito felizmente, pude desfrutar, foi bom. Foi,
mesmo, muito bom. Só que o tempo não pára e as artérias envelhecem
mesmo. Com elas envelheceu o corpo mas não a mente, para meu bem e dos
que ainda beneficiam do meu trabalho.
Dei-me conta dessa minha nova condição em Drumheller, uma
cidadezinha no despovoado território a norte do estado de Alberta, no
Canadá, que vive, em parte, do suporte que presta às importantes
escavações ali levadas a efeito por paleontólogos de todo o mundo,
interessados em dinossáurios - e aos cerca de 250 000 visitantes/ano do
mundialmente conhecido "Royal Tyrrel Museum", detentor de uma das mais
numerosas e variadas colecções de fósseis completos destes belos animais
do nosso passado geológico. Foi aqui, numa loja como aquelas que sempre
aparecem nos filmes do Far West americano, que vende de tudo, dos
alfinetes aos electrodomésticos, que a senhora que me atendeu e, ao
fazer a conta, me perguntou a idade. Dada a resposta, abateu 10% no
preço a pagar e, simpaticamente, acrescentou: "it's an old people
privilege".
"Velhos são os trapos" diz muito boa gente, preferindo usar o termo
idoso que, assim, se generalizou. Mas pior do que ser velho ou idoso é
ser pensionista contra-vontade, como no meu caso, estupidamente afastado
do serviço activo e colocado na "prateleira" por imposição do "limite de
idade". Jubilara-me aos 70 anos, como determina a lei, em 2001, e já
levava nessa altura 17 anos na direcção do Museu Nacional de História
Natural. Ainda consegui autorização do Conselho de Ministros para
continuar ao serviço por mais dois anos, mas a administração não perdoa
e, assim, tem sido como voluntário que tenho continuado a prestar a
minha colaboração a esta instituição da Universidade de Lisboa,
nomeadamente, no apoio às autarquias com vista à defesa e valorização do
património geológico existente nos respectivos concelhos.
Estar na "prateleira" proporcionou-me, porém, alguns aspectos
positivos e um deles foi ter disponibilidade para, com grande
assiduidade, proferir palestras e participar em debates em escolas,
sociedades recreativas, centros culturais e bibliotecas municipais por
todo país. Outro, foi a possibilidade de me envolver em domínios das
humanidades, como a história do homem e das ideias, temas que a
exclusividade profissional pouco tempo deu para os abordar
convenientemente. Ainda um outro aspecto muito positivo foi vencer a
rejeição ao computador, uma atitude que caracteriza muita gente da minha
geração. Sempre tive, tanto na Faculdade de Ciências, onde fui professor
durante quatro décadas, como no Museu, quem me dactilografasse
(primeiro) ou processasse no computador (depois) o muito que escrevi,
entre artigos, memórias, relatórios e livros de ensino.
A aposentação retirou-me, de forma abrupta, um importante
complemento de trabalho numa fase em que a minha capacidade de produção
era cada vez mais evidente. E a solução foi pedir à minha mulher que me
ensinasse as bases mínimas de informática que me permitiram e continuam
a permitir escrever muitas horas por dia, indiferente a sábados,
domingos ou dias feriados. Pude, assim, por ter mais tempo, produzir
mais do que quando estava no activo.
A verdade é que, quando estou frente ao monitor, seguindo as
palavras que, letra a letra, os dois indicadores vão dedilhando, num
esforço de acompanhar e não deixar perder as ideias que fluem, tantas
vezes velozes, a verdade é que, dizia eu, não tenho idade, não tenho
corpo nem coronárias entupidas e consigo esquecer os problemas que a
todos afligem, em particular os que estamos a viver graças a um punhado
de espertalhões que, ingenuamente, temos vindo a consentir que conduzam
o nosso destino. E, assim, o tempo rende.
- Estás óptimo, pá! - É o que, geralmente, oiço, sempre que dou de
caras com um parente ou amigo que não via há algum tempo. - Estás na
mesma!
Esta apreciação, sem dúvida, cordial e simpática, verifica-se,
praticamente, em todas as situações, em moldes menos ou mais
cerimoniosos, com mudanças apenas na forma verbal do tratamento, que vai
do tu e do você ao deferente senhor professor. Reflectindo acerca destas
expressões, estereotipadas e muito comuns entre a nossa sociedade, não
posso deixar de concluir que, no subconsciente das pessoas que as
formulam, ainda que em jeito de cumprimento amistoso, era suposto
estar-se mais envelhecido, debilitado ou, mesmo, decrépito. Ditas com a
melhor das intenções, estas frases têm o condão de nos confrontar com
uma realidade incontornável, a todo o momento lembrada, com a qual não
podemos deixar de aprender a conviver. De qualquer maneira, é bom sinal
continuar a ouvi-las.
Continuar a ouvi-las também porque, no meu caso, isso implica não
ter perdido, de todo, a capacidade de ouvir. Deficiente auditivo em
agravamento progressivo fui aprendendo a conviver pacificamente e, por
vezes, humoradamente com esta limitação.
Devo acentuar que esta condição me potenciou as capacidades de
observação, de interiorização, de reflexão, de apelo à memória e, ainda,
me ensinou a viver comigo próprio. Sendo a escrita um acto solitário,
julgo ter encontrado, nesta minha dureza de ouvido, total
disponibilidade para a exercitar.
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