Não lhe chamávamos Páscoa, para nós e muitos
alentejanos era, simplesmente, a Festa. Os crentes festejavam,
religiosamente, o “Domingo de Festa”, mas a festividade, de raiz popular
e pagã, vivida pela generalidade das gentes, era a da chamada
“Segunda-feira de Festa”. Para mim havia ainda uma outra festa que era a
de cerca de duas semanas longe da escola.
Primeiro chegavam os
Ramos, em que se iam «benzer» molhinhos de alecrim, de que se ofereciam
raminhos que seriam, mais tarde, retribuídos em amêndoas. Era para nós o
começo da Semana Santa, com a procissão do Senhor Jesus dos Passos, as
Endoenças e o Lava-pés, o Enterro do Senhor na Sexta-feira de Paixão e,
finalmente, as Aleluias e a Festa. O Lava-pés tinha lugar na nave
central da Sé, na tarde de Quinta-feira. Num estrado alto, para que toda
a gente visse, e num grande banco corrido, todos virados para o mesmo
lado, sentavam-se uma meia dúzia de seminaristas, bem como alguns
velhotes, mendigos conhecidos na cidade. Bacia e jarro de prata, finas
toalhas brancas, de linho e com rendas e uma multidão de cónegos e
outros eclesiásticos dispostos por ordem da sua hierarquia, iam
percorrendo a fila dos contemplados enquanto o Senhor Arcebispo, um a
um, lhes mergulhava o pé na água benta, que depois enxugava e por fim
beijava, numa bela evocação da vida de Jesus, imitando-Lhe a santa
humildade.
– Ó mãe, o Senhor
Arcebispo não tem nojo de estar a mexer e a dar beijos naqueles pés tão
porcos? – Perguntei à minha mãe que, como eu, sabia como eram
habitualmente sujos alguns dos pés ali à nossa frente. Víamo-los todos
os dias, quase descalços, pedindo esmola nas ruas da cidade.
– Não! – Segredou-me –
Antes de virem para aqui, levaram-nos ao Hospital onde as irmãzinhas os
lavaram muito bem e os calçaram!
- Depois tiram-lhes os
sapatos?
- Não! Foram-lhes dados
pelas Senhoras da Caridade!
- O que é isso? –
Inquiri.
– São as esposas dos
lavradores e de outros homens ricos, que servem a Deus fazendo o bem aos
pobres!
- Ainda bem! – Concluí
para mim.
No dia seguinte íamos
todos para as janelas da Sociedade Harmonia, na Praça do Geraldo, ver
passar a grande procissão do Enterro do Senhor. Coroado de espinhos, na
sua longa veste roxa, vergado ao peso da enorme cruz de madeira, esta
evocação do sofrimento de Jesus marcava o auge da Paixão e a véspera das
Aleluias.
Nesses anos (estou a
falar da década de 30 do século passado), ao meio-dia de Sábado, os
carrilhões da Sé, logo seguidos pelo repicar de todos os sinos de todas
as igrejas da cidade e arredores, anunciavam o fim da Paixão. Era,
finalmente, o fim do luto! Eram as Aleluias e a festa que se lhes
seguiria!
A rapaziada arranjava
maneira de descobrir e colocar ao pescoço badalos, chocalhos e
chocalhinhos, guizos, sinetas e tudo o que pudesse fabricar barulho. Aos
bandos, em enorme algazarra e correrias, badalando e chocalhando, qual
manada em galope desordenado, feitas das ruas canadas, a miudagem
percorria a cidade, detendo-se em frente de lojas e armazéns, redobrando
a barulheira até que, de dentro, uns lhes atiravam punhados de amêndoas
e rebuçados, outros, moedas de baixo valor que, nesse tempo, eram
tostões e meios-tostões. De olhos no chão e rabo no ar, os rapazes iam
apanhando, de entre as pedras da calçada e metendo ao bolso tudo o que
podiam.
Eram as nossas Aleluias.
Por respeito à tradição,
os comerciantes, respondiam, esmerando-se, em competição uns com os
outros, na sua generosidade e simpatia. Os mais generosos eram sempre o
Fomento Eborense e o Anselmo, dois importantes armazéns de mercearias,
rivais de longa data.
Vendo-me chegar a casa,
sujo, com os bolsos cheios de amêndoas e de chocalho, já na mão,
prudentemente retirado do pescoço, a minha mãe iniciava os ralhos e as
admoestações que se repetiram naquela meia dúzia de anos em que sempre
arranjei maneira de participar nestas que foram as minhas Aleluias.
Comer o borrego pela
Páscoa está ligado a tradições religiosas e culturais chegadas até nós,
vindas de longe, no tempo e na distância. É ler a Bíblia e ver como este
simpático animal, com este ou outros nomes, se liga à tradição
judaico-cristã, não sendo difícil procurar-lhe raízes ainda mais
antigas. No antigamente, sacrificava-se o anho no altar; hoje come-se o
borrego em reunião de família, depois de passadas as trevas e a dor,
todos os anos evocadas durante a Semana Santa.
Nesse tempo, quem tinha
posses matava o borrego em casa. Muito cedo, na manhã de Sábado,
magarefes de ocasião, açougueiros sem escola, de grandes navalhas bem
afiadas, iam de casa em casa, degolando e esfolando borregos, a troco
das peles que levavam, flácidas e ensanguentadas, pouco destoando das
vestes que traziam. Deixavam às mulheres da casa as tarefas de
desmanchar as carcaças, separar as peças e dar-lhes destino. Entre eles,
recordo que as costeletas eram para fritar com alho e sal, as mãos e o
peito destinavam-se ao ensopado e que as pernas se guardavam para o
assado do dia de Festa.
Muitas famílias, no
geral, as de condições mais modesta, a «malta do garrafão», como lhes
chamavam os meus pais, comiam o assado da “Segunda-feira de Festa”, no
campo, debaixo de um sobreiro ou de uma azinheira. Cada árvore, uma
família. Nem o pai nem a mãe apreciavam estas comezainas no campo, com
moscas, pó e muitas bebedeiras à mistura. Mas havia os que gostavam, e
muito.
Sempre que o estado do
tempo o permitia, o Alto de São Bento enchia-se de eborenses. Logo pela
manhã, carregados de cestos, garrafões e mantas para se instalarem,
partiam a pé ou em carroças a caminho desta pequena elevação granítica,
nos arredores da cidade, arborizada e fresca, sobranceira ao velho
convento de São Bento de Cástris. Os mantimentos para um dia inteiro
eram propositadamente abundantes a contar com os muitos amigos, que
sempre apareciam de mãos nos bolsos. |