REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

A Festa

Não lhe chamávamos Páscoa, para nós e muitos alentejanos era, simplesmente, a Festa. Os crentes festejavam, religiosamente, o “Domingo de Festa”, mas a festividade, de raiz popular e pagã, vivida pela generalidade das gentes, era a da chamada “Segunda-feira de Festa”. Para mim havia ainda uma outra festa que era a de cerca de duas semanas longe da escola.

Primeiro chegavam os Ramos, em que se iam «benzer» molhinhos de alecrim, de que se ofereciam raminhos que seriam, mais tarde, retribuídos em amêndoas. Era para nós o começo da Semana Santa, com a procissão do Senhor Jesus dos Passos, as Endoenças e o Lava-pés, o Enterro do Senhor na Sexta-feira de Paixão e, finalmente, as Aleluias e a Festa. O Lava-pés tinha lugar na nave central da Sé, na tarde de Quinta-feira. Num estrado alto, para que toda a gente visse, e num grande banco corrido, todos virados para o mesmo lado, sentavam-se uma meia dúzia de seminaristas, bem como alguns velhotes, mendigos conhecidos na cidade. Bacia e jarro de prata, finas toalhas brancas, de linho e com rendas e uma multidão de cónegos e outros eclesiásticos dispostos por ordem da sua hierarquia, iam percorrendo a fila dos contemplados enquanto o Senhor Arcebispo, um a um, lhes mergulhava o pé na água benta, que depois enxugava e por fim beijava, numa bela evocação da vida de Jesus, imitando-Lhe a santa humildade.

– Ó mãe, o Senhor Arcebispo não tem nojo de estar a mexer e a dar beijos naqueles pés tão porcos? – Perguntei à minha mãe que, como eu, sabia como eram habitualmente sujos alguns dos pés ali à nossa frente. Víamo-los todos os dias, quase descalços, pedindo esmola nas ruas da cidade.

– Não! – Segredou-me – Antes de virem para aqui, levaram-nos ao Hospital onde as irmãzinhas os lavaram muito bem e os calçaram!

- Depois tiram-lhes os sapatos?

- Não! Foram-lhes dados pelas Senhoras da Caridade!

- O que é isso? – Inquiri.

– São as esposas dos lavradores e de outros homens ricos, que servem a Deus fazendo o bem aos pobres!

- Ainda bem! – Concluí para mim.

No dia seguinte íamos todos para as janelas da Sociedade Harmonia, na Praça do Geraldo, ver passar a grande procissão do Enterro do Senhor. Coroado de espinhos, na sua longa veste roxa, vergado ao peso da enorme cruz de madeira, esta evocação do sofrimento de Jesus marcava o auge da Paixão e a véspera das Aleluias.

Nesses anos (estou a falar da década de 30 do século passado), ao meio-dia de Sábado, os carrilhões da Sé, logo seguidos pelo repicar de todos os sinos de todas as igrejas da cidade e arredores, anunciavam o fim da Paixão. Era, finalmente, o fim do luto! Eram as Aleluias e a festa que se lhes seguiria! 

A rapaziada arranjava maneira de descobrir e colocar ao pescoço badalos, chocalhos e chocalhinhos, guizos, sinetas e tudo o que pudesse fabricar barulho. Aos bandos, em enorme algazarra e correrias, badalando e chocalhando, qual manada em galope desordenado, feitas das ruas canadas, a miudagem percorria a cidade, detendo-se em frente de lojas e armazéns, redobrando a barulheira até que, de dentro, uns lhes atiravam punhados de amêndoas e rebuçados, outros, moedas de baixo valor que, nesse tempo, eram tostões e meios-tostões. De olhos no chão e rabo no ar, os rapazes iam apanhando, de entre as pedras da calçada e metendo ao bolso tudo o que podiam.

Eram as nossas Aleluias.

Por respeito à tradição, os comerciantes, respondiam, esmerando-se, em competição uns com os outros, na sua generosidade e simpatia. Os mais generosos eram sempre o Fomento Eborense e o Anselmo, dois importantes armazéns de mercearias, rivais de longa data.

Vendo-me chegar a casa, sujo, com os bolsos cheios de amêndoas e de chocalho, já na mão, prudentemente retirado do pescoço, a minha mãe iniciava os ralhos e as admoestações que se repetiram naquela meia dúzia de anos em que sempre arranjei maneira de participar nestas que foram as minhas Aleluias. 

Comer o borrego pela Páscoa está ligado a tradições religiosas e culturais chegadas até nós, vindas de longe, no tempo e na distância. É ler a Bíblia e ver como este simpático animal, com este ou outros nomes, se liga à tradição judaico-cristã, não sendo difícil procurar-lhe raízes ainda mais antigas. No antigamente, sacrificava-se o anho no altar; hoje come-se o borrego em reunião de família, depois de passadas as trevas e a dor, todos os anos evocadas durante a Semana Santa.

Nesse tempo, quem tinha posses matava o borrego em casa. Muito cedo, na manhã de Sábado, magarefes de ocasião, açougueiros sem escola, de grandes navalhas bem afiadas, iam de casa em casa, degolando e esfolando borregos, a troco das peles que levavam, flácidas e ensanguentadas, pouco destoando das vestes que traziam. Deixavam às mulheres da casa as tarefas de desmanchar as carcaças, separar as peças e dar-lhes destino. Entre eles, recordo que as costeletas eram para fritar com alho e sal, as mãos e o peito destinavam-se ao ensopado e que as pernas se guardavam para o assado do dia de Festa.

Muitas famílias, no geral, as de condições mais modesta, a «malta do garrafão», como lhes chamavam os meus pais, comiam o assado da “Segunda-feira de Festa”, no campo, debaixo de um sobreiro ou de uma azinheira. Cada árvore, uma família. Nem o pai nem a mãe apreciavam estas comezainas no campo, com moscas, pó e muitas bebedeiras à mistura. Mas havia os que gostavam, e muito.

Sempre que o estado do tempo o permitia, o Alto de São Bento enchia-se de eborenses. Logo pela manhã, carregados de cestos, garrafões e mantas para se instalarem, partiam a pé ou em carroças a caminho desta pequena elevação granítica, nos arredores da cidade, arborizada e fresca, sobranceira ao velho convento de São Bento de Cástris. Os mantimentos para um dia inteiro eram propositadamente abundantes a contar com os muitos amigos, que sempre apareciam de mãos nos bolsos.

 

Na toalha estendida no chão, os acepipes estavam à disposição de quem se aproximasse. As merendas variavam: coelho frito, galinha corada, borrego com ervilhas, costeletas panadas, pataniscas de bacalhau, sardinhas fritas, bolos caseiros e muito vinho no garrafão. Havia, contudo, uma iguaria comum a todas as famílias. Era o borrego assado com batatinhas inteiras e muita cebola, bem tostadinho, em assadeira de barro, queimada do forno de lenha. Como acompanhamento servia-se, por tradição, salada de alface muito segadinha.

Havia quase sempre quem levasse música em grafonola de dar corda, permitindo baile e animação até às tantas. Eu sempre gostei daquela confraternização. Fui muitas vezes, contra a vontade dos pais, algumas delas com um tio, sapateiro de profissão, especialista nestas festanças, dando largas à sua alegria, cantando, bailando e... bebendo.

 
 

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
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