REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

Alquimia e alquimistas

Excerto do livro em preparação, “Conversas com El-Rei de Portugal”

- A primeira obra escrita visando a mineralogia, de que temos conhecimento, – continuei – é um Tratado sobre as Pedras e foi escrito por Teofrasto, filósofo grego do século III antes de Cristo. Devemos a este discípulo de Aristóteles a primeira classificação mineralógica, baseada nas respectivas utilidades. Nesta classificação distinguiu, sobretudo, minérios, pedras preciosas e pigmentos. Há, no entanto, que ter em conta um longo caminho percorrido pelas civilizações que o precederam, no domínio do conhecimento das substâncias, das suas natureza e constituição. Em Roma, no século I, Plínio, o Velho, uma das vítimas da histórica erupção do Vesúvio, tem lugar de destaque através da sua “História Natural”. Nesta obra monumental, em 37 volumes, o autor retoma Teofrasto e volta a falar de minérios, pigmentos e gemas, uma outra maneira de dizer pedras preciosas.

- E não podemos esquecer o papel da alquimia nesta caminhada.

- De modo nenhum! Podemos afirmar que a mineralogia percorreu a Idade Média de mãos dadas com a alquimia, numa prática e numa atitude trazidas pelos árabes, seus cultores, sob a designação de al kimia. Esta expressão encerra um conceito carregado de sabedoria, nem sempre devidamente apreciado. É necessário lembrar que todo este saber vem da Antiguidade, com destaque para a chinesa, a babilónica, a hindu e a egípcia, através da tradição popular e dos textos eruditos dos clássicos gregos e latinos. Os alquimistas desenvolveram a Polypharmacia, uma actividade na qual se experimentavam, entre outros, processos como combustão, sublimação, dissolução e precipitação que, excluindo alguns procedimentos fantasiosos à luz do conhecimento actual, deram nascimento, não só à química como à mineralogia.

- Não há dúvida que a mineralogia tem aí as suas raízes.

- Exactamente. Foi, de facto, no seio da alquimia que a mineralogia cresceu, deixando para trás muitas das concepções fantasistas e místicas dos escolásticos. Mas só cresceu e se afirmou como disciplina científica no decurso dos séculos XVIII e XIX, a par da química, fazendo-a progredir e tirando dela o essencial do seu próprio aprofundamento como ciência de acentuada organização sistemática. A partir da 2ª metade do século XVI e na sequência dos trabalhos de Agricola, os alquimistas começaram a dividir-se em duas correntes.

- É do meu tempo esse Agricola. Foi também um notável médico alemão, de nome Georg Bauer com quem me encontrei muitas vezes neste mundo espiritual que é o meu. Mas, desculpa a interrupção, ias referir as duas correntes em que se dividiram os alquimistas.

- Uma delas preconizava explorar a natureza das coisas, caminhando no sentido da química científica. A outra cultivava uma atitude fantasista e extravagante, em busca da pedra filosofal, da transformação de metais vulgares em ouro e do elixir da longevidade, práticas estas obscuras e responsáveis pela imagem negativa que, injustamente, tem sido divulgada em torno da alquimia e dos alquimistas. Esta outra corrente teve como resultado retardar o avanço da química e, consequentemente, da mineralogia, disciplinas que, como disse atrás, só começaram a ganhar foros de ciência a partir do século XVIII.

Encorajado pelas palavras do monarca, dispus-me a explorar, juntamente com ele, assunto que tivera oportunidade de estudar durante a elaboração de uma monografia enquanto aluno, na Faculdade.

- No quadro de uma ciência oculta com magia à mistura, como alguns se referem à alquimia, há os que admitem que a ideia da transformação de metais inferiores em ouro é uma metáfora da purificação espiritual dos alquimistas, na qual a ignorância dava lugar à sabedoria. Esta transformação simbolizava a elevação da sua própria espiritualidade de um estado inferior para um superior. Assim, a divulgação do seu trabalho com os metais seria meramente metafórica, visando desviar as atenções da Igreja Católica relativamente ao trabalho espiritual que prosseguiam. É razoável admitir que tinham necessidade de ocultar todo e qualquer comprometimento espiritual no seu trabalho, uma vez que, como foi norma na Idade Média, correriam o risco de serem acusados de heresia e serem perseguidos pelo Tribunal de Santo Ofício. Muitos alquimistas foram julgados e condenados à fogueira por alegado pacto com Santanás. Por isso, ainda hoje o enxofre, um elemento químico muito usado pelos alquimistas, é associado ao Diabo e ao Inferno.

- Vejo que dominas este tema que, por sinal, tem sido alvo da minha curiosidade e me tem permitido falar com alguns deles de grande craveira intelectual.

- Surgida no extremo Oriente, a alquimia chegou ao Ocidente e, em particular, à Península Ibérica na Idade Média, durante a islamização. Aliás, o nome, como se disse, radica no árabe al kimia, expressão que, certamente, tem origem no termo grego khymeia, que aludia à mistura de vários sucos.

- É voz corrente – interrompeu D. João -  que os alquimistas visavam, sobretudo, a procura da “pedra filosofal” necessária à produção de ouro a partir de metais vulgares como o cobre, o chumbo, o estanho, o ferro e outros, considerados inferiores.

- Visava, ainda, a obtenção do que admitiam ser o “elixir da longa vida”, uma panaceia universal que curaria todas as enfermidades e daria vida longa àqueles que a ingerissem. No entanto, e para alguns, a alquimia caracterizou-se pelo seu carácter de prática precursora da ciência experimental, nomeadamente a química, a mineralogia e a metalurgia, manipulando minerais e outros produtos químicos no propósito de obter novas substâncias.

- Mas, não obstante a alquimia reunir outros interesses, como os ligados à filosofia, à religião, ao misticismo, à astrologia, e à magia, não podemos esquecer que são evidentes as preocupações de muitos alquimistas com a saúde e a medicina. Alguns deles são mesmo considerados precursores da moderna medicina, e entre eles destaca-se o suíço Paracelso. Se recuarmos aos primórdios vemos que há uma alquimia chinesa que se pensa estar ligada ao Budismo e que teria por principal objectivo conseguir o “elixir da longa vida”, e que, segundo os seus cultores, estava relacionado com a fabricação do ouro. Na Índia, a filosofia védica também estabelece um paralelo entre a imortalidade e o ouro.

- Filosofia védica? – Perguntei.

- É uma filosofia próxima do hinduísmo, explanada em textos antigos, escritos por volta de 1500 antes da nossa era, em sânscrito. Conhecidos por Vedas, estão incluídos num vasto conjunto de escrituras sagradas desta tradição religiosa da Índia.

- A alquimia desenvolveu-se depois ao longo do tempo na Mesopotâmia, no Egipto, com destaque para a cidade de Alexandria, no Mundo Islâmico, na Grécia, em Roma, e no resto da Europa, incluindo, naturalmente, a Península Ibérica.

- Diz-se que esta ideia do “elixir da longa vida” nasceu quando Alexandre o Grande, da Macedónia, invadiu a Índia no ano 325 antes de Cristo. Diz-se que este conquistador teria procurado a fonte da juventude. Há, assim, quem pense que essa ideia tenha migrado da índia para a China, mas também há quem admita o contrário.

- Os alquimistas aceitavam que a matéria era composta pelos chamados quatro elementos de Aristóteles (a água, o fogo, a terra e o ar), passíveis de serem afectados por outros tantos atributos (o húmido, o seco, o frio e o quente). Aceitavam, ainda, que combinações destes elementos e destes atributos, nas mais diversas proporções, determinavam a natureza dos objectos e, por isso, acreditavam na transmutação. É curioso assinalar que esta crença dos alquimistas se tornou uma realidade no século XX, em particular com a fissão e a fusão nucleares.

- Tens de me dizer o que é isso de fissão e fusão nuclear.

- É muito simples. Basta conhecer o sentido das duas palavras. Sabeis, com certeza, o que é um átomo e o que é o respectivo núcleo. Então, se souberdes que fissão é o acto de fender e que fusão é o acto de fundir, no sentido de unir, sabereis que fissão nuclear é fender o núcleo atómico, dividindo-o em dois núcleos mais pequenos, e que fusão nuclear é juntar dois núcleos leves, obtendo-se um núcleo mais pesado.

- Sabes, com certeza, que mercúrio e enxofre foram as principais matérias-primas da alquimia.

- Sei, sim senhor. O enxofre era tido como o princípio fixo, activo, masculino, associado à combustão e à corrosão dos metais. O mercúrio representava o princípio passivo, feminino, inerte e volátil.

- E sabes que, na linguagem dos alquimistas, era frequente o uso de imagens próprias da sexualidade, como seja comparar a combinação entre dois elementos químicos à cópula e que, assim, a combinação do enxofre com o mercúrio era referida como o "coito do Rei e da Rainha".

- Isso, eu não sabia. Mas sei que nessa mesma linguagem era frequente o uso dos nomes de certos planetas para referir alguns metais. Assim, por exemplo, o Sol representava o ouro, Mercúrio, o mercúrio, a Lua, a prata, Vénus, o cobre, Mate, o ferro, Júpiter, o estanho e Saturno, o chumbo.

- Como já foi dito, a alquimia medieval lançou as bases da química e da mineralogia modernas e legou-nos alguns procedimentos em uso nos laboratórios do presente, como o aquecimento à chama e em banho-maria, a destilação, a combustão, a evaporação e, ainda, a sublimação, a dissolução e a precipitação, já citadas.

- Entre os mais célebres alquimistas que conheci, cujas obras abriram caminho à experimentação científica, recordo o alemão Alberto Magno e o inglês Roger Bacon ambos do século XIII. O primeiro a descreveu a composição química do cinábrio e do alvaiade e preparou a potassa cáustica. O segundo, conhecido por Doutor Mirabilis, escreveu um longo tratado sobre os metais. Da mesma época, conversei muitas vezes com o italiano Tomás de Aquino. Este ilustre discípulo de Alberto Magno escreveu largamente sobre o arsénio. Do século XV, recordo o alemão, Basilius Valentinus que descobriu os ácidos sulfúrico e clorídrico e dissertou sobre o antimónio. Do século seguinte, conheci bastante bem o alquimista e médico alemão Georg Bauer, mais conhecido por Agricola, considerado o pai da mineralogia, da metalurgia e da prospecção e extracção mineiras, e o suíço Phillipus Aureolus Theophrastus Bombastus, mais conhecido pelo pseudónimo Paracelso. Este outro alquimista foi médico de grande prestígio e pioneiro na utilização medicinal dos compostos químicos. Identificou o zinco e alargou a sua actividade à astrologia.

- É dele o conceito de homúnculo?!

- Sim e o termo refere um imaginado homem de muito pequena estatura, com cerca de 30 cm de altura e que, segundo ele, poderia ser criado “colocando sémen humano numa retorta hermeticamente fechada e aquecida em esterco de cavalo durante 40 dias”. Esta ideia, que influenciou outros alquimistas, foi muito mais tarde divulgada na ficção sob a forma de criaturas monstruosas artificiais, das quais ficou famosa a figura de Frankenstein, na obra literária da britânica Mary Shelley, publicada em 1818.

- A psicologia moderna também tem algumas raízes na alquimia. A simbologia alquímica, de significado oculto, teve importância no percurso espiritual dos seus cultores.

- Isso é verdade e podemos acrescentar que a maior influência da alquimia encontra-se nas chamadas ciências ocultas como o exoterismo e outras correntes de pensamento que buscam as leis que regem o todo universal, conciliando o natural com o sobrenatural.

- Para mim, uma das ideias mais espectaculares dos alquimistas é a criação de vida humana a partir de materiais inanimados, que me parece testemunhar uma forte influência da tradição mística do judaísmo. É do conhecimento dos estudiosos da cultura judaico-cristã que a Kabala admite a possibilidade de dar vida a um ser artificial, a que foi dado o nome de Golem. A terminar direi que a alquimia deixou uma mensagem poderosa de busca pela perfeição. Na sociedade do presente maia marcada pelo ter do que pelo ser, rendida ao culto do dinheiro e do poder, as vozes dos antigos alquimistas surgem como um chamamento para o reencontro com o lado espiritual da vida.

- Acho que por agora já chega de alquimia e alquimistas. - Sugeriu o monarca.

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
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