Se perguntarmos aos nossos governantes, juristas,
economistas, quadros técnicos e científicos, agentes de cultura, opinion
makers e outros intelectuais se conhecem a natureza e a história do
terreno onde nasceu e cresceu a sua cidade, a esmagadora maioria, à
semelhança do cidadão comum, vai dizer-nos que não sabe. E não sabe
porque, desde sempre, o nosso sistema de ensino não dispensou à geologia
a atenção que esta disciplina justifica e merece, situação que tenho
denunciado. Os cidadãos, que tiveram formação académica e profissional
nos domínios da Geologia, são excepção ao grosso da população que
desconhece o chão que pisa e no qual assentam as fundações do prédio
onde vive.
A urbanização de Lisboa, como em muitas outras cidades, cobriu e ocultou
quase toda a área em que se expandiu e os poucos testemunhos das rochas
que formam o substrato da cidade, e que o acaso permitiu que
sobrevivessem ao camartelo, ao betão e ao asfalto, muito pouco ou nada
dizem a quem todos os dias passa por eles.
Relativamente à história da cidade, são muitos os que conhecem a lenda
do desafortunado Martim Moniz, entalado nas portas do Castelo de S.
Jorge, em 1147. Nem todos sabem o que aqui aconteceu entre esta data e o
tempo dos primeiros humanos que pisaram estas terras no Paleolítico
inferior, há mais de cem mil anos, sendo relativamente raros os que têm
uma ideia de uma história mais antiga que aqui recua ao chamado período
Cretácico, quando, bem perto, ainda havia dinossáurios, como o
demonstram as pegadas deixadas em Pego Longo, na vizinhança de Carenque,
vergonhosamente deixadas ao abandono. Desse período da Era Mesozóica
lembremos o lioz usado na construção dos Jerónimos, da Torre de Belém,
do Palácio da Ajuda e da maior parte da estatuária e cantaria local.
Esta bela pedra ornamental, explorada na região, por vezes,
incorrectamente referida como mármore, é um calcário gerado há cerca de
95 a 97 milhões de anos, num mar litoral, muito pouco profundo, de águas
mais quentes do que as que hoje banham as nossas praias no pino do
verão. Nesse tempo toda esta região era mar e as serras de Sintra e da
Arrábida estavam a muitos milhões de anos de surgirem, alterosas, acima
dele. Nesse mar raso, populações imensas de um tipo muito particular de
moluscos, a que chamamos rudistas, com conchas mais espessas do que as
das ostras, cobriram os fundos e, proliferando umas sobre as outras,
edificaram, camada após camada, os estratos de calcário que ainda
podemos ver, por exemplo, nas Avenidas Infante Santo, perto da Cova da
Moura, e Calouste Gulbenkian, sob o aqueduto das Águas Livres, ou na
base do bairro dos Sete Moinhos, à entrada de Lisboa pela ponte Duarte
Pacheco.
A pedra negra das velhas calçadas da cidade é basalto, ou seja, lava
consolidada de vulcões que aqui estiveram em grande actividade há uns 70
milhões de anos, já o mar tinha abandonado toda esta região. Um
esplêndido testemunho das potentes escoadas deste basalto ainda pode ser
admirado num enorme escarpado, resto de antiga pedreira, no interior de
um espaço desportivo, na Rua Aliança Operária.
No tempo imenso que se seguiu a este mar de fogo e cinzas, toda esta
região evoluiu num ambiente continental, cuja idade remonta aos 40
milhões de anos, marcado pela secura do clima, propício à deposição de
calcários lacustres, como são os de Alfornelos e da Brandoa, e a grandes
enxurradas, como as que ainda se podem observar na Calçada de Carriche,
nas camadas sedimentares repletas de calhaus arredondados.
Há cerca de 23 milhões de anos, o mar regressou a esta região e gerou,
de novo, um ambiente construtor de calcário, mas, desta vez, por um
grupo de minúsculos invertebrados coloniais – os briozoários – à
semelhança dos corais. Um belo exemplo deste ambiente marinho recifal
está protegido como geomonumento, na Rua Sampaio Bruno.
A geologia ensina-nos que as antigas fábricas de cerâmica que moldaram o
barro extraído dos próprios locais, hoje desactivadas ou demolidas,
invadidas pela cidade, só existiram porque esse mar recuou e passou a
haver nesta região uma paisagem aplanada, propícia à sedimentação
argilosa de um grande rio, povoada por grandes crocodilos, mastodontes
(grandes herbívoros ancestrais dos elefantes), e muitos outros
mamíferos, entretanto extintos. Ossadas destes animais têm sido
desenterradas dos respectivos sedimentos, como são os areeiros que deram
nome à praça que remata, no topo, a Avenida Almirante Reis. Graças ao
trabalho de geólogos e paleontólogos que, a partir de finais do século
XIX, estudaram, minuciosamente, os restos fósseis de animais e plantas
recolhidos nestes terrenos, atribuídos ao período Miocénico,
permitiram-nos ter uma ideia muito razoável da biodiversidade que
caracterizou esta pequena parcela da Estremadura no respectivo intervalo
de tempo, estimado entre 23,5 e 5,3 milhões de anos.
A geologia ensina-nos, ainda, que o chamado gargalo do Tejo não passava
por aqui. Se, há uns 2 milhões de anos, já houvesse humanos nestas
terras, eles poderiam ir a pé até à Outra Banda. Este troço final do
grande rio resultou de abertura facultada por um importante sistema de
fracturas, posterior a essa data, que o desviou do caminho que levava
para a sua antiga foz, mais a sul, na península de Setúbal, numa faixa
de terreno vizinha da actual Lagoa de Albufeira.
No que se refere às paisagens que marcaram este nosso espaço urbano,
apenas é possível referir com objectividade a dos últimos tempos
marcados pela presença dos nossos antepassados humanos. Para trás tudo
se perdeu em consequência das convulsões tectónicas que elevaram umas
áreas e deprimiram outras e dos efeitos da erosão que, sendo
imperceptível à escala da nossa dimensão temporal, é bem visível quando
se trata de milhões de anos. As chamadas sete colinas de Lisboa são o
resultado da dialéctica entre as forças que elevam e constroem relevos e
as que, por via dos agentes de erosão, os escavam e arrasam.
Desta acção erosiva resultaram vales como, para citar os mais
importantes na determinação do tecido urbano, o Vale de Alcântara,
bastante encaixado, ao estilo de um canyon, nos calcários do Cretácico,
o Vale de Arroios, percorrido pela Avenida Almirante Reis, que conflui,
no Rossio, com o da Ribeira de Valverde, que deu traçado à Avenida da
Liberdade. Na zona oriental da cidade tem importância a bacia
hidrográfica do Vale de Chelas, uma das últimas áreas de expansão de
Lisboa.
Páginas de toda esta história, milagrosamente conservadas na densa malha
urbana, visíveis em alguns raros locais e afloramentos rochosos na
capital, despertaram, em começo dos anos 90 do século que findou, a
atenção do Museu Nacional de História Natural (MNHN). À semelhança de um
qualquer património construído e aceite como um monumento, também estas
ocorrências geológicas começaram a ser entendidas como tal e, assim,
justifica-se o cuidado de as protegermos e legarmos aos vindouros como
documentos de um património natural que, não raras vezes, a civilização,
o progresso e, também, a ignorância vão destruindo ou soterrando.
Alertada a Câmara Municipal de Lisboa (CML) para este valioso
património, ao tempo do vereador Rui Godinho, que, em boa hora, tomou
este assunto em mãos, algumas destas ocorrências foram intervencionadas
no sentido de as colocar à fruição por parte do público.
Após alguns anos de estagnação, a actual vereação retomou esse trabalho
pioneiro, e que foi exemplo para outras cidades do País, havendo, neste
momento, um projecto visando concluir o que havia sido iniciado e
estender esta mesma preocupação a outros sítios entretanto referenciados
por funcionários da Câmara com preparação geológica adequada.
Lisboa dispõe, hoje, de um conjunto de geomonumentos já musealizados ou
em vias de musealizaçao, no espírito do que definimos como um Exomuseu
da Natureza (1º Encontro Nacional do Ambiente, Turismo e Cultura,
reunido em Sintra, em 1989, por iniciativa do Centro Nacional de
Cultura, ao tempo da saudosa Helena Vaz da Silva). Concebido como um
conjunto de ocorrências naturais, esta estrutura museológica,
geograficamente dispersa, pode ser coordenada a partir de um museu, de
uma autarquia, de uma universidade ou de uma fundação que as identifica,
inventaria, e as aceita como “peças de museu” que, como tal, protege,
estuda, valoriza e explica ao cidadão. Sendo evidente que tais
ocorrências não cabem, fisicamente, dentro do edifício de um museu
convencional e tendo em atenção que o seu enquadramento natural, no
local onde se encontram, é essencial à sua compreensão, elas têm,
forçosamente, de permanecer fora das paredes da referida instituição.
Na letra do protocolo, então assinado pela CML e pelo MNHN (22 de Junho
de 1998), os geomonumentos da capital, sendo propriedade material da
Autarquia, são considerados pólos científicos, pedagógicos e culturais
da Universidade de Lisboa. |