- Como certamente sabeis,
eu fui, no dizer do Poeta, aquele “fraco rei” que fez “fraca a forte
gente”. – Disse, ao aproximar-se de mim um personagem ricamente vestido
em traje que lhe dava o aspecto de um figurante de um desfile histórico
da Idade Média. – Não sou real. – Disse. – Sou apenas a aparição do que
fui em vida, o último rei da dinastia de Borgonha, ou Afonsina, como
também se diz. Ainda hoje me penitencio de ter posto em perigo a
independência nacional. Como disse Camões, fui, de facto, um monarca sem
grandeza.
- Reza a História que
Dona Leonor Teles, vossa esposa, vos dominou completamente.
- Sim. Na vida que
vivemos em conjunto e, até, nos assuntos de Estado. O seu poder, que ela
própria construiu, perante a minha incapacidade de lhe opor resistência,
foi aumentando à medida que o tempo passava. Confesso que fui incapaz de
assumir a minha condição de soberano e as intrigas na corte tornaram-se
frequentes e desagradáveis. Só quando a morte me transformou nesta
memória que sou, tive clarividência para analisar a sua e a minha
condutas.
- Li algures que lhe
puseram o cognome de “a Aleivosa”.
- E com razão. Com o meu
falecimento, em Outubro de 1383, Dona Leonor assumiu a
regência do reino e o seu amante,
João Fernandes Andeiro, conde de Ourém, passou a viver no paço real.
Esta ligação que suportei com alguma dificuldade em vida, compreendi-a
perfeitamente quando abandonei o meu corpo. Os espíritos uma vez
libertos dos respectivos corpos não se regem pelos mesmos códigos que os
vivos lhes determinam, enquanto presos a eles.
- Porquê? – Interrompi,
surpreendido por esta afirmação.
- Porque, ao contrário
dos vivos, conhecem a totalidade das condicionantes das mais diversas
situações. Mas, continuando, dizia eu, esta relação com o conde galego
desagradou principalmente ao
povo, à média
burguesia, e a alguma
nobreza, que odiavam a regente e temiam a perda da independência.
- À crise que nos
atingira, causada pela peste e pela fome, juntava-se, assim, uma crise
sucessória. A dinastia de Borgonha tinha os dias contados. –
Acrescentei, interessado na continuação daquela narrativa.
- Viveram-se então dois
anos de interregno. – Continuou D. Fernando. - Foi um episódio muito
importante da nossa História a que assisti de fora do mundo dos vivos e
que, despojado de quaisquer interesses terrenos e sem qualquer
possibilidade de agir, pude compreender na sua real dimensão.
- É por esta altura que
surge o Mestre de Avis.
Após a minha morte, e em
virtude do estado em que deixei o país, estivemos prestes a perder a
independência a favor de Castela. Salvou-nos esse valoroso filho
ilegítimo de D. Pedro I de Portugal. Foi ele que, ainda muito jovem, com
apenas 26 anos, deu início à revolução, pondo termo à vida do conde
Andeiro, no final desse mesmo ano.
- Iniciou e levou-a a bom
termo.
- Exacto, em 1385, com as
tão faladas Cortes de Coimbra que o colocaram no trono, como D. João I
de Portugal, depois de uma magistral alocução do jurisconsulto João das
Regras.
- D. Nuno Álvares Pereira
teve um papel de muito relevo nesta crise.
- Sem dúvida, e todos lhe
estamos gratos por isso. Mas, continuando, nesta minha condição
imaterial acompanhei, com o maior interesse, toda essa crise e, mais
recentemente, já no vosso tempo, o chamado Movimento dos Capitães, em
1974. Isto para dizer que encontro muitos aspectos que me parecem comuns
a ambas as revoluções.
- Essa é a opinião de
António Sousa Duarte, jornalista e biógrafo de Salgueiro Maia, um dos
valorosos “Capitães de Abril”. Segundo este professor universitário,
existe razoável paralelismo entre a revolução de 1383-85, que repôs e
consolidou a soberania nacional, e a revolução que nos libertou da
ditadura do Estado Novo.
- Agrada-me saber que
esta tese vem ao encontro de uma convicção muito minha. Mas antes de
explanar as minhas ideias sobre este assunto, deixai-me falar da
evolução social e política que experimentei nestes seis séculos em que
assisti, por dentro, como só as almas podem fazer, à evolução da nossa
História e aos seus muitos sobressaltos. Estive nos gabinetes reais, nas
chancelarias, nas reuniões secretas de conjurados. Assisti às conversas
e combinações havidas de ambos os lados das facções em confronto. Estive
também na rua, a ver e ouvir o povo e li documentos confidenciais. Não
necessito de chaves para abrir portas, cofres ou gavetas. Acompanhei as
revoluções que se seguiram à de 1383-85, nomeadamente, a que correu
contra os espanhóis, em 1640, a que pôs fim ao absolutismo, em 1820, a
que derrubou a monarquia e deu nascimento à República, em 1910, e,
finalmente, a Revolução dos Cravos, em Abril de 1974. Conheci-lhes todos
os pormenores e todos os protagonistas, mesmo aqueles de que não reza a
história mas, como é evidente, não tinha qualquer capacidade
intervenção. Para vossa grande surpresa, devo dizer que estas convulsões
produziram uma reviravolta de cento e oitenta graus nas minhas
convicções sociais e políticas. Hoje defendo a república e a democracia
como os regimes mais dignificantes da pessoa humana. Por outro lado,
tudo o que me foi dado assistir no seio da Igreja católica, aos mais
altos níveis dos seus protagonistas, atirou-me para o campo da
laicidade. Não faço quaisquer juízos de valor acerca da religiosidade
das pessoas, o que, aliás, respeito porque sei que ela é um atributo
importante dos homens e das mulheres no mundo dos vivos. Falo, sim, das
hierarquias desta e doutras Igrejas e dos crimes que, ao longo dos
séculos, foram cometidos em nome da Fé.
- É muito curioso e
surpreendente o que me estais a revelar.
- E ficai a saber que não
fui só eu a passar por esta evolução. Posso dizer que todos os monarcas
e outros responsáveis da governação com quem tenho tido oportunidade de
comunicar, evoluíram no mesmo sentido. Devo acrescentar que esta
evolução é inevitável, uma vez que, libertos do corpo e dos interesses,
ambições e compromissos inerentes ao mundo dos vivos, os espíritos
desconhecem o medo físico e não têm necessidade de mentir, tornando-se
os melhores críticos do que foram e fizeram na sua passagem pela Terra.
Na linha da tradição religiosa pagã da antiga Grécia, - continuou o
monarca - Platão, o fundador da
Academia em
Atenas, ensinava nos seus célebres diálogos, “Fédon”, citando
Sócrates, que as almas, na sua imortalidade, caminhavam para a
perfeição, libertando-se dos medos e de outros defeitos humanos, como
seja a inevitável condição de errar, ganhando sabedoria. Na verdade nós
sabemos tudo o que quisermos. Só não prevemos o futuro.
- Mas voltemos à
comparação de que estávamos a falar.
- Reparai que, quer na
revolução que se seguiu ao meu falecimento, quer na de 1974, o povo,
embora descontente e desejoso de mudança, praticamente não esteve nas
suas géneses e só veio para a rua em apoio aos revoltosos quando estes
já tinham vencido a resistência do poder contra o qual lutaram. Quer num
caso quer noutro, a revolução adquiriu, de imediato, dimensão popular e
nacional. Ambas as revoluções partiram de grupos de cidadãos incluindo
burgueses da classe média, intelectuais e militares de média patente. Na
do meu tempo, participaram ainda alguns nobres mais letrados e
esclarecidos.
- A revolução de 1383-85
surgiu em defesa da soberania nacional, a de há décadas ergueu-se a
favor da democracia, contra a ditadura. - Disse eu, no intuito de
convidar El-Rei a continuar.
- Exacto. Mas ambas foram
dirigidas por elites, em nome do povo. Ambas tiveram por meta mais e
maior justiça social, melhor acesso de todos os cidadãos a todas as
oportunidades. Em suma, a melhoria das condições económicas, sociais e
culturais.
- Ainda segundo o mesmo
jornalista, Salgueiro Maia protagonizou, no 25 de Abril de 1974, um
papel muito semelhante ao do Mestre da Avis, na crise dinástica que
acabou por vencer. Mas eu alargo esse papel a mais uns tantos dos nossos
“capitães”.
- Acontece que, na minha
condição de espírito ubíquo e intemporal, eu acompanhei as reuniões
secretíssimas destes militares que antecederam o golpe. Sabia que as
cantigas “E Depois do Adeus”, do Paulo de Carvalho, e “Grândola, Vila
Morena”, do Zeca Afonso, eram as senhas para eles começarem a sair dos
quartéis com as suas tropas. No dia 25 eu estava, ao mesmo tempo, no
Terreiro do Paço ao lado do Salgueiro Maia, no quartel da Pontinha com o
Otelo Saraiva de Carvalho, no Cristo Rei com os artilheiros de Vendas
Novas, no quartel da GNR, no Carmo a ver e ouvir o Presidente do
Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, impotente face a uma explosão de
alegria que alastrava a Lisboa e ao país. Isto para citar apenas alguns
dos envolvidos nos acontecimentos daquela gloriosa jornada. Estive em
todas as ruas de Portugal inteiro, nos dias que se seguiram às duas
revoluções, espaçadas de cerca de seis séculos, e posso testemunhar o
júbilo de um povo e a sua ingénua esperança em melhores dias. Mau grado
as dificuldades que estais a viver, não podemos negar que, com o 25 de
Abril, muita coisa mudou para melhor em Portugal.
- Isso é verdade, mas
muitos daqueles que vieram para a rua, de cravos vermelhos nas mãos e
nas espingardas, saudar a vitória, a sonharem dias felizes, estão no
desemprego ou tentam hoje sobreviver com ordenados e pensões de miséria
e vêem os filhos sem futuro. Cada vez há mais pobreza e a desigualdade
crescente entre os ricos e os pobres devia preocupar-nos muito mais. É
triste pensar no estado a que chegaram a educação e a justiça, nas
promiscuidades que geram a corrupção neste nosso pobre país e na
irresponsabilidade de alguns dos nossos políticos que só o foram porque
a ”gloriosa madrugada” nos devolveu a liberdade.
- Tendes a liberdade, mas
estais longe de conseguir a solidariedade social.
- Isso é bem verdade.
Como escreveu, recentemente, o jornalista Baptista-Bastos, no Diário de
Notícias, estamos hoje “reféns de dois partidos desprovidos de grandeza,
intelectualmente asténicos e politicamente impostores”. Os portugueses
e, em especial, os valorosos militares de Abril, tantas vezes
maltratados pelos políticos, têm toda a razão para se sentirem
atraiçoados.
- Acredita que tenho pena
de vos não poder ajudar. Vamos ficar por aqui. Vou assistir à conversa
privada entre o primeiro-ministro e o líder do maior partido da
oposição. Adeus. Foi um prazer falar convosco. - Deu El-Rei por finda a
conversa.
- Adeus, D. Fernando. – Disse eu, mas a sua imagem já
desaparecera. |