FREIRE FALCÃO
Freire Falcão nasceu em Coimbra, em 1947. Jurista de formação, professor jubilado, amador de artes e letras. Apenas publicou um pequeno livro, em edição de autor, para oferta a familiares e amigos; e alguns poemas na Revista DiVersos.
Gaivotas
O mar finge
tomar a praia,
submergi-la
para sempre.
Mas não.
Sugere a catástrofe
previsível
e logo desiste.
Apenas quer
o desenfado
das gaivotas,
que não têm
o que fazer,
quietas,
alinhadas,
viradas para lá;
(esta preguiça,
este sossêgo,
esta ordem natural
será tédio?)
Cabeça vazia
Caminho lento pelo vazio
que preenche este recinto
onde não moram objetos
nem almas se vislumbram.
É de um cinzento cremado.
Nem sei se marcho a direito
ou se o percorro em círculos,
sem propósito e sem fervor.
A pouca luz envergonhada
que entra por vias travessas
não chega para ver o céu
nem dá saídas pró mundo.
Carrego alguns pensamentos
que se movem sem espessura;
no útero desta cabeça oca,
serão poemas para nascer?
Cometa
Cometa Hale-Bopp, 1997
Sémen astral
na busca eterna
do óvulo perfeito
para a colisão única
de que nascerá
uma qualquer galáxia?
Ou um Deus remoto
que pecou algures
nos primórdios do tempo,
condenado à errância,
a este arrefecimento
exemplar e purificador,
a caminho da extinção fatal?
Sorte
A sorte muda como um dia de abril[1]
– dizem os românticos –
contando estórias e mágoas
que aconteceram aos outros.
Mas a sorte não muda nunca;
quem nasceu nas dobras do vento
guarda sempre na garganta
o travo agreste do musgo.
E o frio da noite, no estômago,
não abandona os olhos pálidos
nem as faces cavadas e secas
dos que viveram sempre sem querer.
O meu vizinho mais pobre
havia de se rir dolorosamente
se eu lhe falasse um dia
dos altos e baixos da sorte.
E pedia-me dois paus
para uma sandes.
[1] “Fortune will change like an April day” – Show Boat, primeiro ato, cena 3, de J. Kern e O. Hammerstein, 1927.