ALEXANDRE TEIXEIRA MENDES
O irreversível e a nostalgia
– uma visão de síntese de “Gadanha” de Aurelino Costa
Escrever primeiro. Isto é, organizar as palavras de maneira inequívoca e coerente, para ser entendido. Já que escrever sem ser entendido é um luxo da poesia. Pois só o poeta pode falar sozinho, para ele mesmo (e nessa altura recorre à ilegibilidade). Os exercícios poéticos de Aurelino Costa fazem, porém, do não-entendível algo de entendível. A sua poemática constitui, desde o início, um fértil manancial de tópicos privilegiados e de variações temáticas no enaltecimento e revelação da humana conditio e do tónus da rusticitas.
Simbólica de Saturno
Escreveu Blaise Pascal: “Nem a morte, nem o Sol, podem ser olhados de frente”. Esta precisa anotação do autor de “Pensées” permite-nos – num considerável arrojo hermêutico-lógico – descortinar a natureza essencial do poemário “Gadanha” de Aurelino Costa (Modo de Ler, Porto, 2018). O título requer, porém, uma ligação à simbólica de Saturno, que é precisamente aquele que mede o cumprimento do “fio da vida”, e o corta. Isto explica, por exemplo, o pendor meditativo-existencial, na primazia do que é próprio do ser humano: a capacidade de ser afectado. Haveria muito a dizer sobre um tipo de escritura poética que interiorizou o sentimento do peso da vida e o gosto amargo que a interrogação da morte causa, pressupõe um privilégio do emocional sobre o cognitivo. Mas permita-se-me primeiro uma observação útil à compreensão do que vamos dizer. E que permanece, rigorosamente, uma poética da “circunstância” biográfica” (onde se perscruta, no seu aparato, o “script” da vida).
Figura paterna
Um simples olhar ao índice de matérias mostra que este livro constitui uma pequena “suma” poética, em que perpassam os envolvimentos existenciais e emocionais da vida social diária. Parte-se do fulcro existencial, o “conteúdo” da auto-identidade – os traços a partir das quais as biografias são construídas. Limita-nos aqui a algumas considerações sobre a auto-identidade e a projecção parcial e contextual – o apreço – com (dos) outros e sobre o casulo protector das figuras parentais. Uma poesia que supõe essencialmente uma intersecção de afectos e de intensidades. Pleno, consequentemente, de alusões aos amigos e a um círculo de amigos. E onde é invocada a figura do pater familias que nos remete às emoções esquecidas que se reactualizam no presente: traumas e fantasmas. Não também por acaso a propósito da escrita e do dialecto materno (ou a língua/leite materno).
Ouvem-se os tamancos
Na casa ao lado
Os meninos atarracados
Ainda mamam… (p.57)
Dramaturgia
Se nos limitarmos a alinhar a série dos 6 + 33 poemas, estes aparecem-nos em duas partes: Linha Divisória e Sol & Locus. Neste ponto, é preciso recorrer à noção dos dois fenómenos personificados no Panteão grego por Eros e Tanatos ou, mais precisamente, à ideia de fatum – o destino. Considerando especificamente o imaginário preexistente, activo e contemplativo, rural e marítimo, que subaz nestes textos, devemos notar, por várias razões, o facto de que aqui se projecta uma dramaturgia íntima e, de facto, o retrato da miséria em viva voce.
Um freio fecha os homens
Abrindo-lhes a terra em ruína austera
Enquanto a aranha dos céus tece a agonia
A palma em recepção no Templo
Aí dormem, estantes de nereida, rastilho
Do tornado, Alexandria eólica. (p. 21)
Heréticos e (des)crentes
A despeito de toda a ênfase no assombro – enquanto afirmação desencadeadora da filosofia -um sentimento verdadeiro do admirável se impõe e propaga. O admirável não é entretanto simplesmente um inabitual ou estranho absoluto, mas algo cuja estranheza chama a nossa atenção e tem algo a nos dizer. Numa linguagem que se inspira na de um António Nobre e de José Régio “desconstruídos”, Carlos de Oliveira e Armando de Silva Carvalho, numa síntese impossível dos heréticos e (des)crentes, podemos dizer que a sua poética traz à linguagem ( isso que pertence ao específico, ao particular e ao acidental) o singular-humano.
De rabo sentado, olhando a terra batida
Do chão da cozinha, o velho bebia
Levantou a pata traseira
Sinalizou o dia em jacto contra a macieira
No quente da manhã, a mina de água
Resplandecia azul
Ficaram sólidos, sobre uma pedra,
Ingenuamente
Cai o pêssego
E o cão geme. (p.41)
Solicitude
Naturalmente não é possível interpretar o título deste livro sem nos colocarmos num ângulo visual particular, pondo em foco a sua simbólica: a de uma ferramenta utilizada na agricultura para ceifar cereais ou para o corte de erva. Pensa-se imeditamente na foice enquanto símbolo da morte ou a personificação da morte na cultura popular. A morte é assim associada à figura do ceifador, um esqueleto vestindo um manto preto e transportando uma gadanha. Há quem diga que vem das muitas metáforas antigas, que comparavam a vida humana com o ciclo de plantio. Não resta dúvida de que o título escolhido não surpreenderá os leitores já um pouco familiarizados com a sua poética , mesmo a consabida extroversão do seu verbo, dominado pela solicitude. Faz-nos ver que o homem é também um ser de múltiplas dimensões. A verdade é que a sua existência situa-se em diversos níveis, e não só a sua existência estática, mas o desenvolvimento da sua história individual e social.
Livro-écran
Este livro-écran esboçado, porém, na evanescência do tempo (im)põe-se: remete-nos “a priori” aos arquétipos afectivos e às subestruturas inconscientes. Nesta fidelidade aos solilóquios, ou, ainda, em um sentido específico, a um dizer instintivo-sexual. O que se delineia nestes poemas é a descoberta da essência do homem carregando o seu luto. Na exortação subentendida da revolução e da beleza redentora.
Irrepetível caminho
Fábula cadente
Soltas as cinzas, estou-te no presságio
Cego, me entrego aos da manhã
Com ou sem armadura
Os solilóquios tomam-nos conta
Coabitamos a sangria do olimpo
Projectamos a casa, a liberdade?
Mãos em luvas brancas e ilusão franqueada?
Escarpas de cio percorrem a pele
Mesmo, em cima, adormecem
Olhos, rugosos, robustecem a dor
E lenta arde, saboreando o feno
Pai, a mão?
Um formão aproxima-se da tábua
Voltaico e belo, imprime: revolução
Quem chora (p.48-49)
Registo pulsional
O poema (como cada fotografia entendida) é – em Aurelino Costa – um flagrante, ocorrência singular e actual, onde se jogam o furor, o prazer e a dor misturados. Cumpre estar atento, por outro lado, a um imaginário, onde se aglutina pois, rigorosamente, o memorial rural e a “inscrição originária” camponesa e seus objectos comuns – ou, mais simplesmente, os cenários da vida animal doméstica. Poder-se-ia ficar tentado a dizer que o jogo da linguagem remete-nos ao registo pulsional. É o instinto tornado linguagem. Mas é preciso compreender que o destino do pulsional é a linguagem? Ela não reflecte o uso que faz o sujeito? Vem a propósito, por exemplo, a relação entre espremer a teta da vaca – ordenhar – e a escrita.
O gado retrai-se
deita-se no feno…
A carteira é grande demais
os pés balançam e o tinteiro
de porcelana fica longe
Bebo o cheiro a tinta
escrevo duas frases
estou no fim do quadro
Tudo é negro
expelindo sol
como é bom, beber-te
Ao ordenhares
que leio a lição
fico atiçado
hélio e áureo
desconsertado
como o giz
caio (p.53-54)
Esconjurações
Retomemos por agora o tema das esconjurações que é, entretanto, poéticamente fecundo. Abre a possibilidade porém, neste ponto, de um desenvolvimento da dimensão catártica. Porque hoje os traços distintivos da sociedade assentam na telemática: as estruturas constitutivas da tecnologia da informática e da telecomunicação (pro ou contra resgatamos o ciberespaço). Cada sujeito é chamado , pois, de facto, a fundir-se e a dissolver-se no ar.
Esconjuro a besta apocalíptica das missões
Prefiro o rastro empacotado das
urtigas
Tomemos nota dessa declaração
à mansidão telemática da inércia
A bazófia do candelabro, jactância em surdina
répteis defendendo a sua pedra
Vou de aviada, nenhum sacro! (p.22)
De tudo isso é necessário pelo menos concluir que a quintessência das metanarrativas cederam lugar a informações e dados pontuais (a uma forma abstracta de desterritorialização). Mas este processo de alheamento do elemento primeiro e primordial – Geia (ou Gaia), a Terra – é contrabalançado pelas exigências e potencialidades da comunicação através de redes. Paul Virillio deu-se conta de que a imediatidade, filha da velocidade tecnológica , impõe a sua ditadura, em todo o lado, cada vez mais. A indiferença e o indiferente impuseram-se: o profano.
Constância da morte
O que principalmente importa guardar destas páginas é, em primeiro lugar, a noção crucial de irreversível (entenda-se aqui a morte, que mostra, segundo as regras estabelecidas, a transitoriedade da nossa condição). Outro ponto importante a reter é o facto de que só o homem tem consciência da sua morte. De certo modo, porém, esta consciência está ligada, por conseguinte, à nossa faculdade de imaginação, que nos permite projectar-nos no futuro. Tudo isso tem consequências importantes. O que importa ter presente, antes de tudo, é que todos seguimos o mesmo caminho. Somos, por certo, os únicos animais que dispõem de notários e oficiais de diligências. É este o tema que Aurelino Costa desenvolve num poema dedicado ao desaparecido bibliotecário e (nosso comum) amigo Manuel Lopes:
Perturba-me a ideia de morreres
-disse-lhe. Respondeu-me:
Como queiras, a morte é igual à vida
Silenciosamente “a gente” há-de amar noutra quietude.,
noutro espaço…
Não te importes, a chuva cairá e tu
Escreverás até morreres (p.44)
Primeira infância e tópos
Todo um circuito de textos remetem-nos, de maneira significativa, às emoções primitivas e arcaicas. Um mundo opaco onde se descobre ou restabelece a primeira infância, que supõe essencialmente uma intersecção testemunhal. Consideremos, antes do mais, o quadro de uma poética que supõe a habitual preferência situacional pelos mundos interiores – preestabelecidos do sujeito humano tout court – e um continuum de lugares (tópos) onde se alojam os hábitos, a vida encenada, a concretude do vivente, os episódios da ruralidade, e onde a exacerbação do simulacro torna-se agora metamorfose.
Regresso nu ao estábulo
Onde
vitelo indomável
apascento
a sede do belo
morri (p.34)
Esta poemática à rebours oscila continuamente entre o tom elegíaco ou o ímpeto algo melancólico. Tocamos, aqui, no reconhecimento de nossa dependência e vulnerabilidade. Não se pode perder de vista o importante facto de que somos seres únicos e irrepetíveis – intrinsecamente feitos de ilusões e – havemos de concordar – falíveis – permeáveis aos erros – (in)finitos. Aqui se interpela a zona do esquecido ou recalcado – e não só o absurdo, o malum, a morte.
Pouco adiante, meu amigo.
As vestes douraram os espaços
comigo já não enrolarás tabaco.
Posto isto, suspira como um vulto parado
À espera de Peter Pan. (p. 61)
Sermo urbanus e plebeius
Os versos de Aurelino Costa surgem, por assim dizer, como a (ir)reconciável projecção de êxtases peculiares, a sucessão – em campos visuais – de as palavras sob as palavras. Uma escrita assente numa arqui-linguagem com a qual podemos relatar ou descrever impressões face a um mundo da contradição lógica e em última instância imprevisível. Com efeito:estâncias entre o sermo urbanus e sermo plebeius, que, a rigor, se associam à finitude, mas também à nostalgia e ao irreversível.
Tudo o que mais haja, não é nada
a despedida fatal.
as amoras, os muros
quadrúpepedes veneram as marcas dos alçapões leiloados
em pleno inverno
matizes rascas empoleiram-se nas traves velhas de carvalho
que existem de ambos os lados
Até ver. (p.51)
Porto, 16 de Maio, 2018
edições do buraco, 2005); “Non Omnis Confundar” (Porto, incomunidade,
2006); “Até quando o incêndio em Sepharad” (Porto, incomunidade, 2007);
“Barros Basto – A Miragem Marrana” (Ladina, 2007), “A voz do Emerso
/Voix de l´Émergé” (Edições Extrapolar, 12010). É membro da Direcção da Ladina – Associação de Cultura Sefardita e da Society for Crypto-Judaic Studies.