Gabriel Nascente ou a libertação da metáfora

 

ADELTO GONÇALVES


Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de são Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp)/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


I

Para marcar uma trajetória literária de mais de meio século, o poeta goiano Gabriel Nascente (1950) lançou, em 2019, Galáxia dos dias, uma caixa com quatro volumes com mais de mil páginas cada um, com poemas de toda uma vida, revisados e até ampliados. Publicada pela Editora Kelps, de Goiânia, a coletânea reúne a obra do poeta em verso e prosa de 1966 até 2019, ao menos aquela publicada em livros, inclusive os primeiros que estavam esgotados e não são encontrados nem mesmo em alfarrábios, ainda que de fora tenham ficado muitos poemas esparsos que saíram em revistas, jornais e antologias.

Enfim, trata-se de uma extensa coletânea que vai de Os gatos (1966) até Nunca lhe direi adeus (2018), que marcam a produção de quem fez da poesia um “instrumento para melhor compreender o mundo, dissecá-lo, fazendo-o avançar ou retroceder  às origens clássicas, com deuses e deusas, mas sempre dando ao homem a sua exata dimensão”, como bem observa no prefácio ao primeiro volume o professor Adovaldo Fernandes Sampaio, linguista e ensaísta, autor de Letras e memória – uma breve história da escrita (São Paulo, Ateliê, 2010), entre outras obras.

É de se lembrar que, para comemorar os seus 40 anos de poesia, Gabriel Nascente já havia lançado Inventário poético (2005), pela Editora Alternativa, também de Goiânia, em bem cuidada edição que reuniu o melhor de sua produção até então, de acordo com seleção feita por Aidenor Aires e Vera Maria Tietzmann Silva, que também foi responsável pela organização e pelo texto introdutório. Ao mesmo tempo, lançou com o apoio cultural da Central dos Concursos, de Goiânia, Um poeta em ação (2005), que contém sua biografia e fortuna crítica, com o qual chegou a sua 40ª obra publicada, o que resulta na média impressionante de um livro editado por ano de atividade literária.

Não se sabe de outro poeta que tenha alcançado tamanho volume de trabalho. Quinze anos depois, o balanço registra 49 livros de poesia, aos quais se deve acrescentar mais 14 de outros gêneros. Sem contar ainda os ensaios críticos sobre a sua obra escritos pelo grande escritor português Joaquim de Montezuma de Carvalho (1927-2008), reunidos em A poesia de Gabriel Nascente, publicado em 2008 pela Editora Kelps.

É verdade que quantidade não significa qualidade, mas esta é uma observação injusta quando se trata do fazer poético de Gabriel Nascente, marcado principalmente por uma preocupação existencial extravasada por um lirismo não muito comum na literatura brasileira. E que já se constata em suas primeiras manifestações poéticas, como se pode comprovar com o poema “Antes do abismo”, de Os gatos: Deste muro/ mal acabado pelos séculos,/ desta calçada estreita/ fechada pelo lodo,/ eu saí à procura/ da rosa sedutora,/ atordoado de medo,/ mas airoso de Cristo/ em mim,/ (de chutar pedras/ na cara do mundo)./ Fui crescendo/ na medida dos homens. / Fui diminuindo/ na ausência de Deus./ Mostrei/ meu reboque de amor./ Mostrei/ minha alma/ de amar estrela.

II

Na produção de Gabriel Nascente, em muitos poemas, a natureza assume reações humanas, valendo-se o autor de uma figura de linguagem, a prosopopeia ou personificação, que só grandes mestres da literatura sabem como utilizar em seu maior grau de transcendência, atribuindo qualidades humanas a personagens não-humanos, ao transferir para árvores seus próprios traços psicológicos, como se vê nos versos de “A palmeira de Morrinhos”, que faz parte do livro Os passageiros (1979): “(…) A palmeira de Morrinhos/ tem silêncio de que dormiu/ com as águas. O rosto sempre virado/ para os lábios da brisa”.

Ou  nos versos de “As bananeiras”, que consta do livro Ventania (1995): “(…) As bananeiras estão fartas e amarelas de fadiga./ Mas quando nas madrugadas as ventanias/ são impiedosas a ponto de maltratá-las,/ elas ficam a chorar de inveja dos telhados,/ porque abaixo dos telhados há corações,/ relógios e cobertores./ E por baixo das bananeiras, não (…)”.

Ou ainda nos versos de “O rio é uma flauta”, que faz parte de Cora, a pitonisa da ponte (Kelps, 2006), livro em homenagem a poeta Cora Coralina (1889-1985): “Ali é onde o rio/ vai à forca./ O parto de suas águas/ vem do oco das pedras./ E o rio, como um pulmão,/ arma seus abismos/ das vidas sem retorno. O rio é estrela rolando/ como o viver/ é pesado e fundo e leve/ na carne dos cardumes./ Manso como a sandália/ ou a casca de uma fruta/ o rio é ermo, espremido./ E suspira longo/ num corredor de terra./ O mistério de suas águas/ é tão leve como a cinza:/ o rio é levado pelas asas/ de outro rio (…)”.

Por aqui se vê que, a exemplo do que notou o professor Leodegário A. de Azevedo Filho (1927-2011) no opúsculo “Fernando Pessoa, seus heterônimos e a emergência do novo” (Porto, 2008), em relação ao heterônimo Álvaro de Campos, a poesia de Gabriel Nascente busca assumir a libertação plena da metáfora, “ao sabor das mais desencontradas sensações subjetivas”, o que o faz buscar dar vida às “personagens” não-humanas, com a prevalência do verbo sentir sobre o verbo pensar. Obviamente, Gabriel Nascente como poeta tem numerosas faces, como poderá comprovar quem fizer a longa travessia por estes quatro volumes, mas, seja como for, o que da imensa maioria destes versos sairá sempre será essa simultaneidade de sensações que, a rigor, caracteriza o seu ideal poético.

III