JOÃO PEREIRA DE MATOS
Cara amiga,
foi com palavras infelizes e insignificantes que te disse o quanto gostava de ti. Sabes, sempre tive o sonho de seduzir, de seduzir uma bela rapariga como tu, apenas com a minha verve. Sabes? Um pouco como Kafka fazia. Com o seu discurso epistolar envolvente, hipnótico em diferido, por carta, tecendo um compêndio amoroso com a sua mestria estranha, onde o sentido se via insensivelmente torcido e retorcido até não restar outra hipótese às suas pobres correspondentes que não fosse apaixonarem-se. Eu não tenho essa ventura. É, justamente, o contrário. Quanto mais digo mais afasto. Quanto mais insisto mais incomodo.
Desfaço-me em confusão como um Chandos citadino e pós-moderno. Ou recaio em silêncios como um Bartleby qualquer.
Talvez esteja a ser demasiado exigente comigo mesmo. A literatura está tão saturada do tema amoroso que quase se poder dizer que a sua história é uma longa troca epistolar entre amantes. Os mais exímios artífices da palavra, os grandes génios, aplicaram-se laboriosamente para ergueram florestas de tomos cujo poder sedutor fascinou gerações de jovens amantes, enamorados pela ideia de amor, e de velhos que assim podiam rememorar melhor o fulgor de outros tempos. Que esperança tenho eu, desajeitado e titubeante, de pretender superar essa longa e brilhante tradição? Esmagado por ela, ensaio e erro, funâmbulo entre dois abismos. Se reproduzo os topoi mais afamados despenho-me até ao solo do lugar comum. Se tento inovar descerei até ao inferno da minha inépcia. Por isso, minha querida, faltam-me as forças. Tento dizer mas calo-me ante o impasse, tento calar-me mas a insistência da paixão é um aguilhão no lombo, empurrando-me para as fórmulas desastradas que te fazem rir, estou certo. E fazem rir-te de mim. O que é pior. Assim, em vez de te provocar o fascínio que te fará cair nos meus braços, deixam as minhas palavras a mui pouco erótica comicidade de um homenzinho ridículo que não tem nem graça nem vivacidade, nem estilo nem fervor, nem elegância nem grandeza, nem domina a linguagem nem lhe presta singela submissão porque se presume poeta.
Poderias perguntar, por que não te diriges directamente a mim? Ah, mas se tenho uma timidez toda física, minha pomba, como poderia conquistar-te de outra maneira senão por escrito? Além do mais, deixei-me encantar pela ideia da sedução à distância. Pela força do manejo da escrita como o caminho mais directo ao coração. Isso significaria muitas coisas para mim, espero que me perdoes a ingénua admissão da minha vaidade. Primeiro, porque assim poderia ter a certeza de ser um grande e bom escritor. Segundo, não teria de enfrentar o embaraço da corte, digamos, presencial. Terceiro, iria assegurar, acredito, o mais verdadeiro amor, aquele que não depende só do desejo da carne mas que prospera na comunhão do espírito, antegozo delicado para todo o prazer venal.
Mas, deixa-me dizer-te, sou tímido e ser tímido é um modo de ser imperfeito. Pelo contrário, a confiança na força própria é caracter dos audazes, e ser afoito é estar mais próximo dos deuses. E quem não quer, por sua vez, estar um pouco mais perto dos atributos divinos e então querer para si um homem que também deles comungue?
Por desgraça, não sou assim. Magoa-me a rejeição, mesmo aquela hipotética ou potencial. Por conseguinte, não arrisco. Preservo-me. Defendo aquela réstia de amor próprio e ninguém pode amar outrem sem um módico daquele. Mas se pelo verbo pudesse ser audaz, então teria toda a felicidade reservada a esses homens heróicos sem ter de enfrentar os meus fantasmas e traumas, memória aziaga de uma desanimada biografia. Ter-te-ia a ti minha querida, teria o respeito de todos, teria a admiração de toda aquela gente que me desprezou e recriminou.
Até daqueles que tiveram pena de mim.
Por isso não desisto. Por isso não posso desistir. E se me disseres que o incómodo destas missivas é muito maior do que possas suportar, que sou repelente e iníquo, então não só destruirás este amor imenso que te dedico, não só retirarás o mais essencial sentido que me anima – e crê que te sou fiel em gestos e pensamentos como um mastim ao seu dono – mas ainda que farás cair por terra o desejo ilimitado de dominar esta arte tão dura, exigente ao ponto de ser lâmina, cruel e fria. Obsidiante e, para aqueles como eu que andam perdidos nela, implacável. Serás, pois, como ela e eu que só procuro um caminho, para chegar a ti através dela, eu que busco a benevolência de uma amante enamorada, eu que sinto que vós ambas serão, para sempre, inacessíveis. Bem vês, doçura, não tenho outro remédio senão persistir e o que te peço é que me toleres, que recebas com um pouco de interesse todas as linhas que te ofertar, que tenhas a paciência de ouvir o que te digo e que, de vez em quanto, me faças saber se progrido, na retórica e no afecto. Terei tempo. Apesar de não saber quantos meses ou anos continuarei a habitar nesta terra debaixo do Sol sei, com a convicção dos lúcidos ou dos simples, que não posso deixar de te amar nem de te escrever, para que um dia me ames, mesmo que essa revelação te atinja depois de eu já não existir. Querendo a tua felicidade não temas, aceitarei tudo. Menos a crueldade.
Eu sei. Eu sei que tudo o que te disse agora pode levar-te a pensar que sou ingénuo ou manipulador ou egomaníaco. Não sou nada dessas coisas ou, porventura, um bocadinho de cada uma mas sem que nenhuma se sobreponha e represente o todo que sou. Mas como? Ingénuo porque te estou a dar a cifra desta mesma carta e, como num bom número de prestidigitação, o artista nunca pode revelar o segredo sob pena de se quebrar o sortilégio. Todavia, só se fosse destro o suficiente poderia guardar para mim as tramas invisíveis com que te quero enredar. Mas não sou. Assim, contento-me em expor, nos limites estreitos destas débeis forças, as minhas aspirações. Optar por ser transparente é provavelmente a única opção para chegar a ti.
Podes pensar, pelo contrário, que toda a minha candura é falsa e que é uma estratégia fria para te apiedares de mim. Mostrando que sou sensível e até frágil significa que sou fidedigno quando, na verdade, poderia ser manha de refinado vigarista. Devo protestar. Tal não é verdade. E, contudo, devo confessar que, como acredito que se for completamente sincero te possa mover contra as objecções que tanta sinceridade te possa inspirar, há nesta estratégia um grãozinho de malícia.
Por último, deves estar a perguntar-te o porquê desta carta de amor só ter tratado, até agora, da minha inépcia? Pois, mais uma vez, tenho de admitir que haverá um fumo de verdade nessa dimensão egóica. Deveria estar apenas louvando a excelência das tuas qualidades que, aliás, são abundantes e variadas e, exactamente, excelentes. Mas, disse-te já, tenho medo de cair no ridículo e por isso pareço tão distante. Tão pouco apaixonado. Ao mesmo tempo admito que todo este escrúpulo é por gostar demasiado e por gostar demasiado é que me aterroriza a rejeição tua e porque ela seria da ordem do pesadelo é que me entorpece a mão quando te escrevo, se seca o poço da inspiração, e me faz sentir que não tenho outra hipótese senão a da verdade. Se fosses uma qualquer poderia ainda ensaiar uns elogios de pacotilha, umas fórmulas gastas mas de reconhecido préstimo retiradas de um qualquer canhenho amarelecido no esquecimento de todos e, pelo desusado dessas muletas, passar por original e artista. Mas eis que chega o medo, o pânico que percebas o embuste e quero-te demais para isso.
Só para uma objecção não encontro resposta. É que me consideres demasiado barroco e não queiras, de modo nenhum, um homem barroco. Mas, ao invés, só toleres um homem moderno. Acontece a muita gente. Quase até à bonomia, coisa que acho incompreensível, há excessiva paciência com aqueles tipos grosseiros que, vendo-se a milhas que são escroques, ainda assim granjeiam fama de conquistadores, de heróis românticos só porque seguem as modas com um discernimento horológico. Não te estou a menosprezar. Com certeza sabes ver à transparência tais criaturas. O que estou a dizer é que, na minha experiência, muito mais depressa se tolera um desses facínoras. Esses que parecem uma caricatura de algo que não se sabe bem o que é. Em compensação, alguém com uma aura de inactual e ultrapassado ou que não segue moda nenhuma porque é demasiado modesto ou não sabe como as seguir é tratado com desusado rigor. Pois bem, sei que sou antiquado e que ser barroco é um sinal disso. Mas, haverá algo melhor que o barroco que signifique o gosto imoderado pelo ornamento? E não é isso o que significa o erótico? Essa suspensão da palavra no dizer do desejo não é o que melhor o intensifica? Eros é o deus da máxima intensidade, transfigurador de toda a forma até que se chegue ao absoluto dela, à essência do objecto amado na sua mais plena subjectividade. E deixa que te diga. És essa plenitude. Na graça do teu sorriso, na frescura da tua pele, na inteligência do teu olhar, exiges o barroco, a explosão do ornato que, como numa fuga, vai acrescentando camadas de sentido, de metáforas e de figuras de estilo até que esse acumular seja finalmente o símbolo absoluto de tanto esplendor. Sem o excesso nada do que te poderia dizer faria jus à sedução que exalas como se te fosse tão fácil quanto respirar. Bem vês, até neste trecho que quis chão não fui capaz de resistir à hipérbole. Como queres, então, que prescinda desse rendilhado derivativo e elegante que é o modo exclusivo de falar de ti sob o filtro do meu amor? Se te dissesse de um modo directo isto que te quero dizer, soaria não mais do que um elogio fútil com ulteriores interesses, e portanto, este modo gratuito estaria corrompido pelo cálculo. Eu não quero isso. Quero que o prazer que sintas quando lês o que te escrevo seja, antes de mais nada, literário e depois que esteja à altura do fascínio que causas.
De outro modo, sentir-me-ia traidor, a ti e à ideia de beleza que só tu corporizas.